Espiritismo no Brasil e a crítica aos espíritas

Muito temos falado sobre a grande distância entre o Espiritismo, ou a ciência espírita, e aquilo que aprende e divulga o Movimento Espírita no Brasil, cada dia mais contaminado por distorções e misticismo. Não creio necessário repetir os fatos a esse respeito. Limitamo-nos a recomendar o leitor aos artigos A distância entre o Espiritismo e o Movimento Espírita, Profecia do Espírito da Verdade, O Canal Espírita e o Espiritismo, O rapaz e o oásis: uma fábula de esperança, Um diálogo interessante, Um convite à autocrítica do Movimento Espírita, dentre outros.

Podemos, porém, acrescentar o pensamento de Kardec, em O Livro dos Médiuns:

Há, por fim, os espíritas exaltados. A espécie humana seria perfeita, se preferisse sempre o lado bom das coisas. O exagero é prejudicial em tudo. No Espiritismo ele produz uma confiança cega e frequentemente pueril nas manifestações do mundo invisível, fazendo aceitar muito facilmente e sem controle aquilo que a reflexão e o exame demonstrariam ser absurdo ou impossível, pois o entusiasmo não esclarece, ofusca. Esta espécie de adeptos é mais nociva do que útil à causa do Espiritismo. São os menos capazes de convencer, porque se desconfia com razão do seu julgamento. São enganados facilmente por Espíritos mistificadores ou por pessoas que procuram explorar a sua credulidade. Se apenas eles tivessem de sofrer as consequências o mal seria menor, mas o pior é que oferecem, embora sem querer, motivos aos incrédulos que mais procuram zombar do que se convencer e não deixam de imputar a todos o ridículo de alguns. Isso não é justo nem racional, sem dúvida, mas os adversários do Espiritismo, como se sabe, só reconhecem como boa a sua razão e pouco se importam de conhecer a fundo aquilo de que falam.

KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns, Lake, 23a Edição. Grifos nossos.

É evidente seu posicionamento: os descuidados que, com entusiasmo (e vaidade) acreditam em tudo cegamente, promovem mais mal do que bem à Doutrina.

Exageros, dizem alguns

É da opinião de alguns, que temos exagerado. Segundo eles, devemos “respeitar” a fé de cada um, limitando-nos a realizar o nosso trabalho. Em primeiro lugar, precisamos demonstrar que não existe desrespeito à fé de ninguém. Cada um tem o livre-arbítrio e o direito de acreditar no que quiser, racionalmente ou não. Mas, aqui, tratamos da ciência espírita, e aqui nasce o maior problema da ideia dessas pessoas: o não conhecimento dessa ciência. Basta ler a Revista Espírita e as demais obras de Kardec e verá não apenas ele, mas também os bons Espíritos, frequentemente destacando a necessidade de se expor os erros e, sobretudo, os charlatães e os inimigos da Doutrina Espírita que, vestindo suas ideias sob a roupagem do Espiritismo, voluntariamente ou não promovem o erro que alimenta o descrédito geral no Espiritismo, tal como se fosse mais uma religião nascida das ideias de alguém. Já demonstramos suficientemente o porquê o Espiritismo é uma ciência, e não uma religião.

O Espiritismo chegou distorcido ao Brasil

O fato é que o Espiritismo já se instalou no Brasil adulterado pelo Movimento Espírita iniciante ((fatos fartamente apresentados em Ponto Final, de Wilson Garcia)) e, na FEB (Federação Espírita Brasileira), autodenominada “casa mater” do Espiritismo brasileiro, longe de encontrar terreno para sua restauração, foi substituído pela doutrina de Roustaing, totalmente fundamentada nos velhos dogmas religiosos. Essa instituição, que acabou ditando os rumos do Espiritismo brasileiro por muito tempo, nunca se dedicou a recuperar a ciência espírita e o método necessário para a continuidade da Doutrina, sendo que as evocações particulares (e mesmo nos centros espíritas), ferramenta imprescindível para o estudo científico, foram abandonadas. Sem o método de Kardec, e pelo interesse na impressão e na venda de obras mediúnicas, qualquer ideia vinda de qualquer Espírito passou a ser veiculada e, assim, formou lentamente a crença geral do Movimento Espírita, hoje completamente perdido em ideias que, na verdade, são fundamentalmente antidoutrinárias.

Precisamos reconhecer, é claro, que parte dessas ideias fundamentou-se antes mesmo da vinda do Espiritismo ao Brasil, com a adulteração das obras O Céu e o Inferno (principalmente) e a A Gênese, após a morte de Kardec. Infelizmente, a FEB é a primeira a defender a ideia de que essas obras não tenham sido adulteradas, fato que, principalmente com relação à O Céu e o Inferno, é suficientemente evidenciado e irrefutável.

Falar em adulteração é criar descrença?

Aqui, enfim, chegamos a outra crítica de certas pessoas: “dizer que houve adulteração seria jogar lama em Kardec, suscitar descrença no Espiritismo”. “Aliás”, dizem elas, “que Doutrina é essa que os Espíritos permitem tal coisa, sem aviso?”. É um pensamento completamente ilógico.

Começamos lembrando que as palavras do próprio Cristo foram adulteradas e distorcidas em favor dos dogmas religiosos, e esse fato foi justamente o que levou à descrença de incontável número de pessoas no cristianismo. Voltaire foi um dos mais evidentes expoentes dessa descrença, que ainda hoje prevalece. Perguntamos: seria “lançar lama” em Jesus destacar as adulterações? Seria “suscitar descrença” no cristianismo, destacar as distorções, ao mesmo tempo em que se demonstra as ideias originais? Evidente que não. Se o problema aconteceu, precisamos encará-lo de frente (uma atitude científica e verdadeiramente kardeciana), e não varrê-lo para baixo do tapete, enquanto perduram seus efeitos avassaladores.

À ideia de que “os Espíritos não teriam permitido as adulterações”, opomos a forte recomendação de estudo da Doutrina, o que evidentemente não foi realizado por essas pessoas. Os Espíritos alertaram várias vezes sobre as tramas dos inimigos da Doutrina, como demonstramos em Profecia do Espírito da Verdade. Baseado nos alertas e nas evidências, Kardec também previa o futuro do Espiritismo, conforme destacou na Revista Espírita de dezembro de 1863, no artigo “Período de Lutas”:

A luta determinará uma nova fase do Espiritismo e levará ao quarto período, que será o período religioso. Depois virá o quinto, o período intermediário, consequência natural do precedente e que, mais tarde, receberá sua denominação característica. O sexto e último período será o da renovação social, que abrirá a era do século vinte. Nessa época, todos os obstáculos à nova ordem de coisas desejadas por Deus para a transformação da Terra terão desaparecido. A geração que surge, imbuída das ideias novas, estará em toda a sua força e preparará o caminho da que deve inaugurar a vitória definitiva da união, da paz e da fraternidade entre os homens, confundidos numa mesma crença, pela prática da lei evangélica.

KARDEC, Allan. Revista Espírita, dezembro de 1863.

Infelizmente, a previsão do sexto período está atrasada em mais de um século, por diversos fatos imprevisíveis àquela época, quais o abandono do Espiritualismo Racional e da Ciência Espírita, além da adulteração das obras citadas. Depois, as guerras, o esquecimento da Doutrina na França e na Europa e sua instalação no Brasil, completamente distorcido.

Os Espíritos não impedem o livre-arbítrio humano

Lembramos, para terminar, que o cerne da Doutrina Espírita, sempre demonstrado pelos Espíritos, é o livre-arbítrio, ao qual os Espíritos não podem se interpor. Podem aconselhar, mas não podem tolher a vontade humana. Assim fizeram: aconselharam largamente sobre a necessidade de cuidado que, infelizmente, faltou àqueles que deveriam cuidar do legado do mestre. Parece que o Movimento Espírita francês ficou muito confortável com o direcionamento de Kardec e, quando isso deveria mudar, a partir de meados de 1869 (conforme exposto na Revista Espírita de dezembro de 1868, “Constituição transitória do Espiritismo”) Kardec morreu, e todos ficaram sem rumo. Assumindo Leymarie a direção da Sociedade Espírita, desvirtuou o propósito da Revista Espírita, admitindo a doutrina roustainguista a troco de dinheiro, e o resto o leitor pode conhecer através da leitura das obras O Legado de Allan Kardec, de Simoni Privato, Nem Céu, Nem Inferno, de Paulo Henrique de Figueiredo e Ponto Final, de Wilson Garcia.

O bem em meio aos enganos

Muitos dizem: “o Movimento Espirita, em meio a muitos enganos, ainda assim produz um bem. Não é de todo errado”. Não poderíamos discordar disso. Não dizemos que há erro ou engano em tudo e que nenhum bem se produz. Um romance mediúnico, por mais que seja repleto de ideias erradas, pode ser a porta de entrada para o indivíduo questionador ir atrás de mais informações, terminando por conhecer as obras de Kardec, enfim. Mas, perguntamos: não seria melhor que o Espiritismo fosse apresentado como ele é, simples e racional, sem os absurdos que produzem tantos contratempos e que muito frequentemente conduzem à descrença? Não podemos deixar de destacar que, quando se abre espaço para um engano, dentro de uma ciência, e esse engano não é remediado pela teoria e pelos fatos doutrinários, ele dá margem a muitos outros. É o que tem acontecido.

Restauração

É chegada a hora de restaurar o Espiritismo, o que já começou no Brasil e se espalhará pelo mundo. O primeiro passo é aprender o Espiritismo como ele verdadeiramente é, afastando-se dos erros. Aqueles que, ditos “espíritas”, não desejarem fazer assim, integrarão uma nova religião, se o quiserem, tão dogmática quanto as demais. Deixemos que o tempo se encarregue deles, mas nem por isso deixemos de fazer a nossa parte, apresentando os erros, frente à Doutrina Espírita, sem personalismo. Depois, virá o tempo da restauração do método de Kardec. Esses dois passos darão a possibilidade do sexto período previsto por Kardec: o da renovação social.

Não podemos deixar de recomendar como leitura essencial a obra Autonomia – A História Jamais Contada do Espiritismo, de Paulo Henrique de Figueiredo.

Faça parte dessa jornada, que é coletiva e somente se dará pela colaboração de muitos.




A mais forte evidência de adulteração de O Céu e o Inferno, de Allan Kardec

São fatos jurídicos incontestes as adulterações de A Gênese e O Céu e o Inferno, pela mera questão de terem sido lançadas edições, com alterações, após a morte do autor e sem o depósito legal – assim afirmam ao menos quatro operadores jurídicos especializados: Simoni Privato, Júlio Nogueira, Lucas Sampaio e Marcelo Henrique. Esse fato legal está acima de qualquer cogitação e, por conta disso, federações espíritas de outros países, em respeito à lei, voltaram à terceira edição da obra. Infelizmente, a Federação Espírita Brasileira, tendo muito a recapitular ao tomar essa atitude (já que os textos original de O Céu e o Inferno e A Gênese contraditam uma infinidade de erros que povoam a generalidade das publicações por ela editadas e impressas) ainda reluta contra esses fatos, baseando-se em argumentações de leigos em matéria de direito autoral.

Além do fato jurídico e do necessário respeito à lei, pelo estudo, acabamos de identificar mais uma evidência, talvez a mais determinante de todas, da adulteração de O Céu e o Inferno, obra de Allan Kardec, justamente na parte que exprimia a filosofia doutrinária em sua mais clara e pura face.

Em O Livro dos Espíritos, Kardec trata da questão dos Espíritos que escolheram sempre o caminho do bem (tratamos disso também no artigo “Reforma Íntima e Espiritismo“:

Existem Espíritos que sempre escolheram o caminho do bem

121. Por que é que alguns Espíritos seguiram o caminho do bem e outros o do mal?

“Não têm eles o livre-arbítrio? Deus não criou Espíritos maus; criou-os simples e ignorantes, isto é, tendo tanta aptidão para o bem quanta para o mal. Os que são maus, assim se tornaram por vontade própria.”

133. Têm necessidade de encarnação os Espíritos que desde o princípio seguiram o caminho do bem?

“Todos são criados simples e ignorantes e se instruem nas lutas e tribulações da vida corporal. Deus, que é justo, não podia fazer felizes a uns, sem fadigas e trabalhos, conseguintemente sem mérito.”

a) — Mas, então, de que serve aos Espíritos terem seguido o caminho do bem, se isso não os isenta dos sofrimentos da vida corporal?

Chegam mais depressa ao fim. Ademais, as aflições da vida são muitas vezes a consequência da imperfeição do Espírito. Quanto menos imperfeições, tanto menos tormentos. Aquele que não é invejoso, nem ciumento, nem avaro, nem ambicioso, não sofrerá as torturas que se originam desses defeitos.”

O Livro dos Espíritos. Grifos nossos.

Confirmados pelos Espíritos, existem aqueles que sempre escolheram o caminho do bem, o que não os livra da necessidade de encarnar, para seu desenvolvimento. Assim, não têm o que expiar, dado que a expiação é a escolha consciente de provas e oportunidades que lhes ajudem a desapegar de imperfeições conscientemente adquiridas (lembrando que errar, meramente, não é adquirir imperfeições, desde que o erro seja superado pelo aprendizado. O que gera imperfeições é a repetição consciente do erro).

Além disso, é mais que lógico que aquele que tenha superado, através da expiação, uma imperfeição adquirida, não tem mais o que expiar, exceto caso desenvolva novas imperfeições. Ainda assim, ele pode necessitar nascer em um planeta como a Terra, simplesmente porque suas necessidades atuais demandam ou porque escolha encarnar em missão. O próprio Jesus Cristo é o exemplo máximo desse último caso e, mesmo sendo um Espírito puro, ainda assim enfrentou as vicissitudes da matéria, sem ter nada o que expiar. Vejam aonde leva a admissão dessas falsas ideias: ao dogma de Espíritos criados à parte e que nunca estiveram, em realidade, entre nós (um dogma sustentado por Roustaing)!

Forte evidência da adulteração de O Céu e O Inferno

E aqui chegamos à mais forte evidência da adulteração de O Céu e O Inferno, que, na edição lançada após a morte de Kardec, introduziu dois itens no capítulo VIII (que se tornou capítulo VII):

9.º — Toda falta cometida, todo mal realizado, é uma dívida contraída que deve ser paga; se não o for numa existência, sê-lo-á na seguinte ou nas seguintes, porque todas as existências são solidárias umas das outras. Aquele que a quita na existência presente não terá de pagar uma segunda vez.

10.º — O Espírito sofre a pena de suas imperfeições, seja no mundo espiritual, seja no mundo corporal. Todas as misérias, todas as vicissitudes que suportamos na vida corporal são decorrentes de nossas imperfeições, expiações de faltas cometidas, seja na existência presente, seja nas precedentes.

O Céu e o Inferno, quarta edição. FEB. Grifos meus.

Esses dois itens, repito, não existiam na terceira edição da obra, lançada e impressa por Kardec em vida. Admitir que Kardec tenha incluído esses itens nessa edição, em especial o item 10, seria admitir que Kardec entrou em contradição com tudo o que havia desenvolvido até então.

Para dar suporte a essa falsa ideia, os seguintes parágrafos foram removidos na adulteração, no capítulo IX (antigo capítulo X):

Nos primeiros estágios de sua existência, os espíritos estão sujeitos à encarnação material, que é necessária ao seu desenvolvimento, até que tenham chegado a um certo grau. O número das encarnações é indeterminado, e subordina-se à rapidez do progresso, que ocorre na razão direta do trabalho e da boa vontade do espírito, que age sempre em função de seu livre-arbítrio. Aqueles que, por sua incúria, negligência, obstinação ou má vontade permanecem mais tempo nas classes inferiores, sofrem disso as consequências, e o hábito do mal dificulta-lhes a saída desse estado. Um dia, porém, cansam-se dessa existência penosa e dos sofrimentos daí decorrentes. É então que, ao comparar sua situação à dos bons espíritos, compreendem que seu interesse está no bem, procurando então melhorar-se, mas o fazem por vontade pró- pria, sem que a isso sejam forçados. Estão submetidos à lei do progresso por conta de sua aptidão a progredir, mas não o fazem contra a própria vontade. Fornece-lhes Deus incessantemente os meios de progredir, mas são livres para se aproveitarem destes ou não. Se o progresso fosse obrigatório, nenhum mérito os espíritos teriam, e Deus quer que tenham todos o mérito de suas obras, não privilegiando ninguém com o primeiro lugar, posto franqueado a todos, mas que o alcançam somente através dos próprios esforços. Os anjos mais elevados conquistaram sua posição percorrendo, como os demais, a rota comum. Todos, do topo à base, pertenceram ou pertencem ainda à humanidade.

Os homens são, assim, espíritos encarnados mais ou menos adiantados, e os espíritos são as almas dos homens que deixaram seu invólucro material. A vida espiritual é a vida normal do espírito. O corpo não é senão uma vestimenta temporária, apropriada às funções que devem exercer na Terra, tal como o guerreiro veste a armadura e a cota de malha para o momento do combate, delas despindo-se após a batalha, para eventualmente vesti-las de novo quando chegada a hora de uma nova luta. A vida corporal é o combate que os espíritos devem enfrentar para avançar, para o que se revestem dessa armadura que é para eles ao mesmo tempo um instrumento de ação, mas também um embaraço.

Ao encarnarem, os espíritos trazem suas qualidades inerentes. Os espíritos imperfeitos constituem, portanto, os homens imperfeitos; aqueles mais adiantados, bons, inteligentes, instruídos, são os homens instintivamente bons, inteligentes e aptos a adquirir com facilidade novos conhecimentos. Da mesma forma, os homens, ao morrer, fornecem ao mundo espiritual espíritos bons ou maus, adiantados ou atrasados. O mundo corporal e o mundo espiritual suprem-se assim constantemente um ao outro.

Entre os maus espíritos há os que têm toda a perversidade dos demônios, aos quais pode-se aplicar perfeitamente a imagem que se faz desses últimos. Quando encarnados, constituem os homens perversos e astuciosos que se comprazem no mal, parecendo criados para a desgraça de todos os que são atraídos para sua intimidade, e dos quais pode-se dizer – sem que isso constitua ofensa – que são demônios encarnados.

Tendo alcançado um certo grau de purificação, os espíritos recebem missões compatíveis com seu adiantamento, desempenhando dessa forma todas as funções atribuídas aos anjos de diferentes ordens. Como Deus criou desde sempre, também desde sempre houve espíritos suficientes para atender a todas as necessidades do governo do Universo. Uma só espécie de seres inteligentes, submetidos à lei do progresso, é, portanto, suficiente para tudo. Essa unidade na criação, juntamente à ideia de que todos têm uma mesma origem comum, o mesmo caminho para percorrer, e que se elevam todos por seu mérito próprio, corresponde muito melhor à justiça de Deus do que à criação de espécies diferentes, mais ou menos favorecidas por dons naturais, equivalentes a privilégios.

O Céu e o Inferno – Editora FEAL

Mais evidências da ideia original

Apresento, a seguir, mais alguns trechos da obra de Kardec que evidenciam o verdadeiro entendimento sobre o assunto (a encarnação não é resultado exclusivo da expiação):

“Segundo um sistema que tem algo de especioso à primeira vista, os Espíritos não teriam sido criados para se encarnarem e a encarnação não seria senão o resultado de sua falta. Tal sistema cai pela mera consideração de que se nenhum Espírito tivesse falido, não haveria homens na Terra, nem em outros mundos. Ora, como a presença do homem é necessária para o melhoramento material dos mundos; como ele concorre por sua inteligência e sua atividade para a obra geral, ele é uma das engrenagens essenciais da Criação. Deus não podia subordinar a realização desta parte de sua obra à queda eventual de suas criaturas, a menos que contasse para tanto com um número sempre suficiente de culpados para fornecer operários aos mundos criados e por criar. O bom-senso repele tal ideia.”

KARDEC. Revista espírita — 1863 > junho > Do príncipio da não-retrogradação do Espírito. Grifos nossos.

Nesse artigo, nesse trecho, Kardec está evidentemente refutando, de maneira firme, a mesma ideia transmitida nos Quatro Evangelhos de Roustaing (que somente seria lançado em 1865), de que a encarnação se daria apenas para expiação, isto é, quando o Espírito é “culpado”:

A ideia da encarnação como castigo, dissemos, é uma ideia totalmente ligada aos dogmas de Roustaing:

N. 59. Que é o que devemos pensar da opinião que se formula assim: “Do mesmo modo que, para o Espírito em estado de formação, a materialização nos reinos mineral e vegetal e nas espécies intermediárias e igualmente a encarnação no reino animal e nas espécies intermediárias é uma necessidade e não um castigo resultante de falta cometida, também, para o Espírito formado, que já tem inteligência independente, consciência de suas faculdades, consciência e liberdade de seus atos, livre arbítrio e que se encontra no estado de inocência e ignorância, a encarnação, primeiro, em terras primitivas, depois, nos mundos inferiores e superiores, até que haja atingido a perfeição, é uma necessidade e não um castigo”?

Não; a encarnação humana não é uma necessidade, é um castigo, já o dissemos. E o castigo não pode preceder a culpa.

O Espírito não é humanizado, também já o explicamos, antes que a primeira falta o tenha sujeitado à encarnação humana. Só então ele é preparado, como igualmente já o mostramos, para lhe sofrer as conseqüências.

ROUSTAING, Jean B. Quatro Evangelhos, Tomo I

É fácil observar a semelhança dessa ideia com aquele introduzida na 4a edição de O Céu e o Inferno: a de que a encarnação somente se dá quando o Espírito é culpado de um erro anterior.

Continuemos com as evidências da ideia original de Kardec e da Doutrina:

132. Qual o objetivo da encarnação dos Espíritos?

“Deus lhes impõe a encarnação com o fim de fazê-los chegar à perfeição. Para uns, é expiação; para outros, missão. Mas, para alcançarem essa perfeição, têm que sofrer todas as vicissitudes da existência corporal: nisso é que está a expiação […]

O Livro dos Espíritos

Para uns, é expiação; para outros, missão. “Para alcançarem essa perfeição, têm que sofrer todas as vicissitudes da existência corporal: nisso é que está a expiação“, ou seja, a expiação, tratada no meio religoso como um processo de remissão de pecados pelos castigos divino, aqui, para o Espiritismo, é apenas o processo de aprendizado e de desenvolvimento do Espírito.

Contudo, a fatalidade não é uma palavra vã. Existe na posição que o homem ocupa na Terra e nas funções que aí desempenha, em conseqüência do gênero de vida que seu Espírito escolheu como prova, expiação ou missão. Ele sofre fatalmente todas as vicissitudes dessa existência e todas as tendências boas ou más, que lhe são inerentes.

O Livro dos Espíritos

O Espírito sofre as vicissitudes da exisência escolhida pelo Espírito, como prova, expiação ou missão.

  1. É um castigo a encarnação e somente os Espíritos culpados estão sujeitos a sofrê-la?

A passagem dos Espíritos pela vida corporal é necessária para que eles possam cumprir, por meio de uma ação material, os desígnios cuja execução Deus lhes confia. É-lhes necessária, a bem deles, visto que a atividade que são obrigados a exercer lhes auxilia o desenvolvimento da inteligência. Sendo soberanamente justo, Deus tem de distribuir tudo igualmente por todos os seus filhos; assim é que estabeleceu para todos o mesmo ponto de partida, a mesma aptidão, as mesmas obrigações a cumprir e a mesma liberdade de proceder. Qualquer privilégio seria uma preferência, uma injustiça. Mas, a encarnação, para todos os Espíritos, é apenas um estado transitório. É uma tarefa que Deus lhes impõe, quando iniciam a vida, como primeira experiência do uso que farão do livre-arbítrio. Os que desempenham com zelo essa tarefa transpõem rapidamente e menos penosamente os primeiros graus da iniciação e mais cedo gozam do fruto de seus labores. Os que, ao contrário, usam mal da liberdade que Deus lhes concede retardam a sua marcha e, tal seja a obstinação que demonstrem, podem prolongar indefinidamente a necessidade da reencarnação, caso em que ela se lhes torna um castigo. — S. Luís. (Paris, 1859.)

KARDEC. O Evangelho segundo o Espiritismo > Capítulo IV — Ninguém poderá ver o reino de Deus se não nascer de novo > Instruções dos Espíritos. > Necessidades da encarnação. > 25. Grifos nossos.

Evidentemente, os Espíritos demonstram que a encarnação é necessária a todos, de maneira que, enquanto se desenvolvem, fazem sua parte na Criação.

Os exemplos de castigos imediatos são menos raros do que se crê. Se se remontasse à fonte de todas as vicissitudes da vida, ver-se-ia aí, quase sempre, a conseqüência natural de alguma falta cometida. O homem recebe, a cada instante, terríveis lições das quais infelizmente bem pouco aproveita.

Revista Espírita, 1864

Quase sempre as fontes de todas as vicissitudes da vida remontam à consequencia natural de alguma falta cometida.

[O homem de bem] Sabe que todas as vicissitudes da vida, todas as dores, todas a decepções, são provas ou expiações, e as aceita sem murmurar.

O Evangelho Segundo o Espiritismo

Todas as vicissitudes da vida são provas ou expiações. Prova: tudo aquilo que nos serve ao aprendizado, todas as dificuldades da vida. Expiação: certos gêneros de provas, escolhidas para o exercício de desapego de uma imperfeição adquirida.

“Esta pergunta dos discípulos “É o pecado deste homem a causa de nascer cego” indica a intuição de uma existência anterior. Caso contrário, não teria sentido, porque o pecado que seria a causa de uma enfermidade de nascença deveria ter sido cometido antes do nascimento e, por consequência, em uma existência anterior. Se Jesus tivesse visto aí uma ideia falsa ele teria dito: “Como esse homem teria podido pecar antes de estar entre nós?” Em lugar disso ele lhes disse que, se o homem é cego, não significa que tenha pecado, mas, a fim de que o poder de Deus brilhe nele; é como dizer que ele devia ser o instrumento de uma manifestação do poder de Deus. Se isso não era uma expiação do passado, é uma prova de que devia servir a seu progresso, porque Deus, que é justo, não poderia lhe impor um sofrimento sem compensação.”

KARDEC, Allan. A Gênese. 4a edição. “Cego de Nascença”. Grifos nossos.

Nesse trecho, onde Kardec trata da cura da cegueira, feita por Jesus, ele faz a seguinte observação: “Se isso não era uma expiação do passado, é uma prova de que devia servir a seu progresso“. Ora, isso quer dizer que, para ele, e de acordo com o Espiritismo, as vicissitudes não se dão apenas como expiação, mas também como ferramenta de aprendizado. Esse trecho consta inclusive da 5a edição de A Gênese (a edição adulterada), e Kardec não pode ter se contradito em suas ideias em cada uma das obras. Esse não é o Kardec que conhecemos.

Motivo da adulteração

Todo aquele que está investigando o assunto seriamente, e que investigou também a adulteração de A Gênese, perceberá algo em comum entre as duas adulterações: o princípio do dogma da encarnação como o resultado do castigo pelo pecado – dogma fortemente limitador e aprisionante, repercutido por Roustaing e ensinado pelos Espíritos mistificadores que com ele se comunicavam, através da médium Emilie Collignon. Contra a sua teoria, existe um simples detalhe: Jesus.

Jesus, o Espírito mais evoluído que já encarnou entre nós, não tinha nada a “pagar”, posto que era Espírito puro. Como resolver esse problema? Dizendo que Jesus não encarnou, mas que, em verdade, foi um agênere, isto é, um Espírito materializado, que simplesmente nos enganou ao longo de sua trajetória.

O ponto é que, em O Céu e o Inferno, foram removidas as ideias doutrinárias que demonstravam a encarnação como necessária a todos, bons e maus, e foi acrescentada a ideia de que tudo o que passamos é fruto de expiações de erros de vidas passadas (item 10, cap. 7, Código Penal da Vida Futura); já na adulteração de A Gênese, não por acaso, o item 67 do capítulo XV foi removido, e, como demonstra Henri Netto,

[…] a renumeração do item 68 como se fosse o 67, oculta a apreciação lógica (ainda que em termos de suposições) sobre o destino do envoltório corporal de Yeshua, após o seu sepultamento. Qual seria a razão de Kardec, depois de repelir a tese docetista (“corpo fluídico” de Jesus), e afirmar a sua natureza humana, para suprimir suas judiciosas considerações acerca do tema?

NETTO, Henri. À procura da dúvida: onde está a verdade? Publicado no site Espiritismo com Kardec – ECK, em 24/12/2023. Disponível em comkardec.net.br/a-procura-da-duvida-onde-esta-a-verdade-por-henri-netto

Ou seja: em A Gênese, para dar suporte às adulterações de O Céu e o Inferno, atacou-se a ideia que demonstra, pelo exemplo inequívoco, que a encarnação não serve apenas para expiação (acrescentando-se aqui que expiação é o ato consciente da escolha de provas visando o retorno ao bem, para os Espíritos que, em minoria, escolheram o apego ao erro e, assim, desenvolveram imperfeições). Removeu-se uma ideia doutrinária, ainda que a recomendação do Espírito, que se comunicou a Kardec sobre o assunto da nova edição, tenha sido de não remover absolutamente nada que fosse relacionado às ideias doutrinárias.

Conclusão

De duas, uma: ou Kardec fez essa alteração, ou ele não fez essa alteração. Se ele mesmo fez essa alteração, então contradisse todo seu entendimento anterior e, além disso, demonstra um estado de saúde mental alterado, já que contradisse essa ideia n’A Gênese, inclusive em sua quinta edição, como demonstramos acima.

Ora, sabendo que Kardec deixa muito claro seu entendimento de que a encarnação não pode ser resultado exclusivo da expiação e conhecendo seu estado de saúde mental sadio, até o dia de sua morte, podemos chegar a apenas uma conclusão: essa obra foi adulterada.

A alteração é muito clara: “Todas as misérias, todas as vicissitudes que suportamos na vida corporal são decorrentes de nossas imperfeições, expiações de faltas cometidas”. Isso é claramente a ideia de Roustaing, e a essência desse capítulo foi perdida com a alteração, para implantar os mesmos dogmas que esse senhor aceitava e defendia:

“Não; a encarnação humana não é uma necessidade, é um castigo, já o dissemos. E o castigo não pode preceder a culpa”.

ROUSTAING, Jean B. Quatro Evangelhos, Tomo I, item 59

Muitos dirão, ainda, que o item 16 do cap. VII de O Céu e o Inferno (a versão adulterada) encerra o mesmo princípio removido do item 8, original:

16.º — O arrependimento é o primeiro passo para o aperfeiçoamento; mas sozinho não basta; são precisas ainda a expiação e a reparação.

Arrependimento, expiação e reparação são as três condições necessárias para apagar os traços de uma falta e suas consequências.

O arrependimento suaviza as dores da expiação, dando esperança e preparando as vias da reabilitação; mas somente a reparação pode anular o efeito, destruindo a causa; o perdão seria uma graça e não uma anulação.

Contudo, perguntamos: em que se torna a arrependimento, a expiação e a reparação, quando submetidas às ideias inseridas pelas adulterações, senão no cumprimento de uma sentença ou de um castigo? Em que se torna o erro, parte do aprendizado, senão em uma condenação? E, vendo sob esse ângulo, perguntamos: o indivíduo que é levado a pensar dessa maneira, como age ante à vida? Age austeramente, buscando superar o erro, ou, crendo-se condenado, se submete à inação ou, pior, descamba por mais erros ainda? E ante ao próximo, que sofre as vicissitudes da vida? Vê nele um irmão que requer o nosso apoio, um ser capaz de superar suas dificuldades pelo aprendizado, ou vê nele mais um condenado, sobre o qual nada se pode fazer, já que cumpre sua sentença? Finalmente: tudo isso leva ao estado de cooperação, em busca do progresso, ou leva ao materialismo e ao egoísmo?

São perguntas que cada um se deve fazer, de posse do conhecimento que, para mim, demorou três anos para ser clarificado e estabelecido. Quem sabe, com tudo isso, eu possa ajudar a diminuir esse tempo para você.

Inimigos do bem se esforçam por retardá-lo

É muito evidente que o capítulo mais importante de O Céu e o Inferno, justamente aquele que continha a essência da filosofia doutrinária, foi propositadamente adulterado. As ideias originalmente estabelecidas foram completamente remodeladas segundo dogmas ligados à ideia da queda pelo pecado, atrasando, por mais de 150 anos, o desenvolvimento do Espiritismo na face da Terra. Chega. Agora é hora de recuperar e de estudar. Recomendamos a leitura das nossas Obras Recomendadas.

Os esforços daqueles que tentam obter o domínio da verdade estão ligados às concepções de velho mundo. São Espíritos ainda incapazes de compreender a essência do Espiritismo e que, conscientemente ou não, lutam contra suas ideias de autonomia e de liberdade. Como diria Kardec, deixemos que o tempo se encarregue deles.

Dizem eles terem provado sumariamente a não adulteração e, assim, refutado todas as evidências em contrário. Assim sendo, peço a esses indivíduos que expliquem essa alteração ilógica e contraditória a toda a doutrina.

Como agem os sacerdotes

Para Leymarie, os fatos e a discussão sobre eles não importavam. Para manter a sua versão, visava dominar a verdade com subterfúgios diversos. Tentava tomar domínio da opinião espírita e escondia tudo o que pudesse depor contra suas ideias. Assim agem, também, aqueles que contrariam os fatos da adulteração com o “canto de sereia”, como diria Marcelo Henrique.

Há poucos dias, comentei no vídeo ” O Livro A Gênese foi mesmo adulterado?”, publicado no canal Grupo Espírita Revelare, no Youtube:

Não por acaso, meus comentários não aparecem para mais ninguém, pois estou oculto no canal.




Os problemas da crença no nada (niilismo) e no castigo

A crença no castigo, mesmo dentro do Espiritismo (ou do Movimento Espírita) e a crença no nada levam o homem a duas situações muito complicadas. Vejamos:

Quando se crê no nada, o homem se concentra sobre o desfrute do presente, a qualquer custo. Isso é o que Kardec nos demonstra em O Céu e o Inferno (editora FEAL):

“Há algo mais desesperador do que a ideia da destruição absoluta? As afeições sagradas, a inteligência, o progresso, o conhecimento laboriosamente adquirido, tudo seria desfeito, tudo estaria perdido! Qual a necessidade do esforço para nos tornarmos melhores, para reprimirmos as paixões, para enriquecermos nosso espírito, se daí não devemos colher fruto algum, sobretudo ante a ideia de que amanhã, talvez, isso não nos servirá mais para nada? Se assim fosse, a sorte do homem seria cem vezes pior do que a do selvagem, que vive inteiramente no presente, na satisfação de seus apetites materiais, sem aspirações com relação ao futuro. Uma secreta intuição nos diz que isso não é possível.

Pela crença no nada, o homem inevitavelmente concentra seu pensamento na vida presente. Não haveria, com efeito, por que se preocupar com um futuro do qual nada se espera. Essa preocupação exclusiva com o presente o leva naturalmente a pensar em si antes de tudo; é, portanto, o mais poderoso estímulo ao egoísmo. O incrédulo é coerente quando chega à conclusão: “Desfrutemos enquanto aqui estamos, desfrutemos o máximo possível, pois, depois de nós, tudo estará acabado; gozemos depressa, porque não sabemos quanto tempo durará”, assim como a esta outra, bem mais grave aliás para a sociedade: “Desfrutemos, não importa à custa de quem; cada um por si; a felicidade, cá embaixo, é do mais astuto”. Se o escrúpulo religioso restringe a ação de alguns, que freio terão aqueles que em nada creem? Para estes, a lei humana somente alcança os tolos, e por isso dedicam seu talento a maneiras de dela se esquivarem. Se há uma doutrina nociva e antissocial, é certamente a do neantismo ((Doutrina do nada, niilismo)), porque rompe os verdadeiros laços de solidariedade e de fraternidade, alicerce das relações sociais.”

KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno, Editora FEAL.

Algo diametralmente oposto ao pensamento niilista, glorificado em Nietzsche:

A descoberta da moral cristã é um acontecimento que não tem igual, uma verdadeira catástrofe. O pretexto sagrado de tornar melhor a humanidade surge como a astúcia para esgotar a própria vida, para a tornar anêmica. O conceito de além foi inventado para desvalorizar o único mundo que existe – para destituir a nossa realidade terrena de todo o fim, de toda a razão, de todo o propósito! O conceito de alma, de espírito, finalmente ainda de alma imortal, inventou-se para desprezar o corpo. Por fim – e é o mais terrível – no conceito de homem bom, toma-se o partido de tudo o que é fraco, doente, falhado, do que em si mesmo é passivo, de tudo o que deve perecer – a lei da seleção natural é contrariada, e faz-se um ideal a partir da oposição ao homem altivo e bem-sucedido, ao homem que diz sim, ao homem que garante e está certo do futuro – este torna-se agora o mau… E em tudo isto se acreditou como moral.

NIETZSCHE, 2008, p. 99-100

Por outro lado, quando o homem acredita na ideia da queda pelo pecado ou na vida humana como uma forma de “pagar dívidas”; em outras palavras: quando ele acredita na ideia do castigo divino, ele se torna inapto a lidar pró-ativamente com seus problemas. Uma mulher que, por exemplo, viva com um mau companheiro, que a agrida, física ou moralmente, pode crer (e muitos lhe afirmam isso) que está vivendo um “resgate” de vidas passadas. Deve, portanto, se submeter às condições desumanas, para, segundo dizem, “quitar seus débitos”.

Essa maneira de pensar é frequentemente ensinada desde os primeiros passos da criança, quando esta é submetida ao castigo, ao invés de ser instigada ao desenvolvimento pela sua própria autonomia racional. Já tratamos disso no artigo “O castigo irrita e impõe. Não educa pela razão.


O fanatismo da credulidade cria incrédulos, porque nada responde. Tira o indivíduo do controle sobre sua responsabilidade: se comete o mal, é culpa do diabo; se faz o bem, é graça divina.

O fanatismo da incredulidade, por outro lado, vai na mesma direção e produz a mesma coisa que o primeiro: o indivíduo, se faz o mal ou se faz o bem, é por conta do seu DNA.

Ambos transformam o ser em um autômato a quem resta, apenas, os prazeres mundanos, ante à perspectiva do nada ou da condenação eterna. A via intermediária, em sua excelência racional, é o Espiritualismo Racional e o Espiritismo (em sua origem). Veja esse estudo: https://www.youtube.com/watch?v=OCD2_iAQySw.


Recomendamos a todos o estudo seguinte:




A história do Espiritismo e o Movimento Espírita

O Espiritismo na atualidade, ou, antes, aquilo que o Movimento Espírita conhece e transmite dele está muito longe de ser realidade, e isso é muito sério, pois é justamente por essas distorções que criaram-se as falsas ideias que repelem os indivíduos e criam brigas, não somente internas, mas também com as religiões espiritualistas.

Um caso muito conhecido é o da Umbanda, que foi criada por conta de um indivíduo ter sido proibido de “receber” um Espírito de um “preto velho” num centro espírita. Não somente isso: na atualidade, pessoas de quaisquer religiões que tenham algum interesse pelo Espiritismo são levadas à questão: “preciso abandonar minha religião para ser espírita?”. Isso porque “ser espírita”, na modernidade, é frequentar um centro espírita que, segundo falsos conceitos, é onde “mora” o Espiritismo.

Estou aqui para demonstrar o quão erradas estão essas concepções e que, longe de uma disputa de verdades, é possível haver união e que, em verdade, foi assim que se desenvolveu o Espiritismo.

A história do Espiritismo como quase ninguém conheceu

É lógico dizer que, antes que o Espiritismo se estabelecesse como doutrina, ninguém era espírita. Como foi possível, então, formar essa ciência, de aspecto filosófico e consequências morais?

Erra quem diz ou pensa que foi Allan Kardec quem criou o Espiritismo. Não: o Espiritismo está na natureza, assim como as demais ciências. Caberia a alguém estudar, com metodologia científica e seriedade, os princípios dessa ciência, e foi o que Kardec fez. Ele nunca se deu o direito de tomar para si a verdade, simplesmente porque, como cientista honesto, sabia que a ciência não lida com verdades, mas sim com teorias que mais se aproximam da verdade.

Assim, Kardec dedicou-se a estudar os fenômenos e as comunicações dos Espíritos, pela principal ferramenta disponível: as evocações, através dos médiuns. E ele não fez isso sozinho: naquela época, os grupos de estudos espalhavam-se pela França e outros países próximos e, em verdade, precederam Kardec nas evocações. Quando ele se interessou pelo Espiritismo, já haviam diversas evocações registradas em papel, por ele reunidas, analisadas e organizadas, o que deu origem à primeira edição de O Livro dos Espíritos, com cerca de metade do tamanho que teria em sua segunda edição.

Rapidamente Kardec percebeu que esse esforço inicial na Doutrina necessitaria de um desenvolvimento, como toda ciência. Assim, em 1858, nasceu a Revista Espírita — Jornal de Estudos Psicológicos, periódico mensal onde ele apresentava ao público resultados dos estudos sobre as evocações e as comunicações espontâneas no âmbito da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, além de conteúdos pertinentes, enviados por outros grupos. Também utilizava a Revista para reforçar a verdadeira face do Espiritismo, frequentemente apresentando contrapontos a opiniões e artigos carregados de desconhecimento e, por vezes, maldade.

Falamos em metodologia científica: bem, o Espiritismo nasceu como toda ciência: de uma observação sistemática e controlada sobre fatos verificáveis (embora não sob a nossa vontade), de onde se criaram hipóteses. Das hipóteses, se criou uma teoria, que então foi submetida a experimentos (evocações). Dos experimentos, verificaram-se os resultados e, daí, avaliava-se as hipóteses: se eram corroboradas, eram incorporadas à teoria; se não, eram reavaliadas e novas observações eram realizadas.

Inverdades

Uma das maiores inverdades que reinam sobre o Movimento Espírita atual é a de que as evocações não devem ser realizadas, o que está em oposto às características históricas do Espiritismo. Quem estuda o primeiro ano da Revista Espírita entende o quanto elas são indispensáveis para a ciência espírita, que, por ser uma ciência, não deve ser tomada como um conteúdo sagrado, que deva ficar intocado. Pelo contrário: o Espiritismo carece de desenvolvimento, mas esse desenvolvimento somente pode ser feito através da metodologia científica, que depende necessariamente da retomada das evocações. Um exemplo de uma prática ausente de método, ou tomada por falsos princípios, é a de que basta evocar um ou mais Espíritos, em um grupo isolado, e a ele perguntar (ou ouvir) sobre tudo, fazendo disso princípio doutrinário.

Outra grande inverdade é a suposição de que a mediunidade pertence à Doutrina Espírita. Tanto é, que demonstramos que o Espiritismo nasceu pelo esforço conjunto de grupos que não poderiam ser espíritas, já que a doutrina ainda não existia. Naquela época, pessoas de várias crenças e religiões praticavam a mediunidade em seus lares, em grupos pequenos, e colhiam bons ou maus resultados das evocações conforme seus empenhos em raciocinar sobre as comunicações. Kardec cita, na Revista, que os adeptos do Espiritismo contavam entre eles católicos, protestantes, muçulmanos, budistas, etc., realizando evocações e estudos e muitas vezes enviando-as à Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, onde, junto a outros colaboradores, eram avaliadas, analisadas e separadas aquelas que poderiam representar um interesse para o público geral.

Aqui, temos mais duas inverdades do Movimento Espírita moderno: aquela que diz que a mediunidade somente pode ser praticada no centro espírita e aquela que diz que devemos ficar apenas aguardando a livre comunicação dos Espíritos. Dessas, nasce talvez o maior erro dos espíritas e adeptos modernos: a aceitação cega e não raciocinada de tudo o que dizem os Espíritos.

Outra inverdade, que não podemos deixar de citar, é a que diz que o Espiritismo seja uma religião. Já demonstramos que ele é uma ciência e que só pode ser tomado como religião no sentido filosófico da religião natural, abordada de maneira metafísica e moral pelo Espiritualismo Racional, do qual já falaremos. Esse é o motivo de encontrar, na época de Kardec, adeptos entre as religiões, que não deixavam suas religiões, com suas particularidades, para praticar o Espiritismo. Sobre isso, fique conosco até o final, pois a compreensão é sobremaneira importante.

Infelizmente, o Movimento Espírita apagou a ciência e transformou o Espiritismo em uma religião, que passou a criar falsas ideias e dogmas que, se agradam alguns, agradam por algum tempo, mas não podem enfrentar a razão nos momentos mais críticos da vida, criando, assim, descrentes. Esqueceram que os Espíritos não se tornam sábios por deixarem o corpo material e que, dentre eles, existem bons e maus, sábios e ignorantes, etc., e que é sobretudo quando se coloca apenas à disposição, sem diálogo, que se apresenta qualquer um.

Existem inúmeras falsas ideias, que alimentam o Movimento Espírita e adeptos em geral, que não passaram pelo crivo necessário, que não foram investigadas e questionadas, ainda que fossem opostas àquilo que, com metodogia, foi transformado em princípio pela observação psicológica de milhares de Espíritos, de todos os “tipos”.

Convidamos o leitor, se ainda não fez, a iniciar o estudo da Revista Espírita de 1858 e 1859 (ela vai até maio de 1869). Essa publicação, que deve ser tomada como um laboratório onde se pode acompanhar o desenvolvimento da Doutrina Espírita, através do método destacado anteriormente, e não como uma ideia final em cada artigo, demonstra o que de fato é o Espiritismo e o quanto nossa sociedade está longe dessa realidade.

Notem que dizemos inverdades, e não “mentiras”, pois a maioria dos que as divulgam, falam do que foram ensinados. Mas de onde vieram essas inverdades?

A virada materialista do século XIX

O Espiritismo não nasceu do nada. O terreno foi muito bem preparado antes disso e, no início do século XIX, nascia o movimento conhecido como Espiritualismo Racional, que, baseados na metafísica, buscava estudar a psiquê humana pelo seu mais elementar e indissociável aspecto: a alma. Autores como Maine de Biran, Victor Cousin e Paul Janet foram seus principais expoentes.

Provavelmente você não sabe, mas o Espiritualismo Racional definiu as Ciências Morais francesas em meados desse século, fazendo parte do ensino francês e definindo sua estrutura. Deixarei informações na descrição. Mas o ER abordava esse estudo apenas pela metafísica, e não de forma prática. Como Espiritismo, que foi o seu desenvolvimento, nasce a Psicologia Experimental (e agora você sabe o porquê do subtítulo da Revista Espírita). Não entrarei em muitos detalhes, que podem ser encontrados no livro “Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo”, de Paulo Henrique de Figueiredo. A questão aqui é outra.

No final do século XIX, a filosofia materialista alemã sobrepujou a filosofia espiritualista francesa que, segundo alguns governantes, teria sido a razão do fracasso da França na guerra. O Espiritualismo Racional foi varrido para baixo do tapete e o Espiritismo, que já sofria com adulterações (já falaremos sobre isso) tomou o golpe final, sendo praticamente esquecido na França, na Europa e, depois, no mundo. Novos ícones da filosofia do nada e da psicologia materialista (por mais paradoxal que seja essa ideia), como Nietzche e Freud, foram tomados como ídolos, substituindo a psicologia espiritualista racional pela perspectiva da nulidade de esforços morais e do egoísmo.

Adulterações no Espiritismo

Detalhes muito interessantes sobre os acontecimentos após a morte de Allan Kardec podem ser colhidos nos livros “O Legado de Allan Kardec”, de Simoni Privato, e “Ponto Final”, de Wilson Garcia. Resumindo: o fatídico e inesperado evento abalou os espíritas por toda a parte, que custaram por retomar alguma força. Junto a isso, vieram guerras e, na Sociedade Espírita, o sucessor de Kardec, Pierre Gaetan Leymarie, colocava abaixo os princípios científicos doutrinário, expulsava velhinhos, em pleno inverno, de lares criados por Kardec para espíritas pobres, queimava correspondências cuidadosamente guardadas pelo Professor e, por interesses pessoais, admitia na Revista Espírita conteúdos oriundos da ideologia de Roustaing, já falecido, que se considerava o revelador das verdades, acreditando cegamente em um ou mais Espíritos obsessores que se comunicavam através de uma médium. Acabou-se o cuidado com a racionalidade, com a concordância geral das comunicações espíritas e, para jogar a última pá-de-cal no Espiritismo francês, Leymarie foi levado a julgamento por publicar conteúdos provenientes de um charlatão, naquilo que ficou conhecido como “Processo dos Espíritas”.

Por conta de todo esse cenário, o Espiritismo fortaleceu-se no Brasil já distorcido. As origens da FEB, instituição, que tomou a liberdade de se proclamar dirigente geral do Espiritismo no Brasil, aliás, são completamente ligadas a essas distorções. A FEB foi fundada e guiada pelos princípios de Roustaing por longo tempo (leia Ponto Final, de Wilson Garcia). Esse é o principal motivo das distorções do Movimento Espírita brasileiro.

Somado a isso, a Revista Espírita somente veio ser traduzida na década de 1950. Aqui, formaram-se diversas falsas ideias, sendo, como demonstramos, o pressuposto de não julgar as comunicações e não evocar Espíritos para investigações as mais danosas delas.

A retomada

Quando falamos em retomar o Espiritismo, falamos em retomá-lo como ciência. Para isso, é necessário conhecimento, nascido do estudo, seriedade, vontade, propósito e colaboração. A mediunidade, que não pertence à Doutrina Espírita nem ao Movimento Espírita, pode ser praticada por todos, fora dos centros espíritas, inclusive. As evocações são necessárias e salutares, mas, aqui, precisamos alertar sobre alguns princípios da ciência dos Espíritos.

A Doutrina Espírita, como ciência, tem o mérito de ter produzido um conhecimento sobre a observação dos fenômenos e das comunicações dos Espíritos, espalhadas pelo mundo. Não nasceu do cérebro de Kardec, mas, sim, de milhares de evocações e de fatos, analisados de maneira científica. Repetimos muito isso, pois esse entendimento é substancial.

Já no tempo de Allan Kardec, a mediunidade era praticada por toda parte. De início, com muitos erros; depois, conforme o conhecimento foi se estabelecendo, cada vez tomou mais seriedade e mais racionalidade, restando apenas dissidentes e renitentes que, não querendo observar os princípios científicos e levados pelo amor-próprio, insistiam em erros banais, que quase sempre os levavam a obsessões. Citamos, há pouco, Roustaing, que, preferindo acreditar cegamente nas palavras de Espíritos que lhe alimentavam o ego, prontamente se virou contra Kardec quando este buscou alertá-lo. É como Ícaro, que, alertado de que não poderia se aproximar do sol sem se queimar, alimentado de ego por suas asas, ignorou os alertas e terminou queimado.

Esse alerta geral vem em encontro à finalização deste importante chamamento: o Espiritismo precisa ser retomado, e isso depende de conhecimento e de cuidados. As evocações precisam ser retomadas. A doutrina dos Espíritos precisa voltar a ser desenvolvida pelos pequenos grupos, cooperando entre si. Esse era o rumo que Kardec buscava dar à ao Espiritismo, pouco antes de sua morte (leia Revista espírita — 1868 > Dezembro > Constituição transitória do Espiritismo), onde o Espiritismo passaria a ser desenvolvido pelos grupos espalhados, coordenados entre si, observando os princípios já estabelecidos pelo método. Pessoas de quaisquer religiões podem fazê-lo, pois a mediunidade não pertence ao Movimento Espírita. O centros precisam voltar a ser centros de estudos, sérios, controlados. Ao retomar as evocações, é evidente que enfrentaremos desafios diferentes; é lógico supor que muitos encontrarão dificuldades e outros tantos cairão no erro da vaidade e do personalismo, lutando para estabelecerem falsas ideias, como já acontece. Infelizmente, os encontraremos sobretudo no Movimento Espírita. Mas são desafios que serão enfrentados e, se o forem com o conhecimento doutrinário já existente, serão rapidamente superados, se é que virão a existir.

Vislumbremos um novo futuro, onde não se briga entre religiões, mas onde indivíduos e grupos cooperam com a restauração das evocações com um propósito maior: o da retomada do desenvolvimento do Espiritismo. Retomaremos o Espiritismo nos lares, como na época de Kardec, onde evocações familiares consolavam, ensinavam e, por vezes, representavam interesse doutrinário. Serão espíritas, ou seus adeptos, pessoas de quaisquer religiões, quaisquer credos, ou mesmo descrentes, que, com o firme propósito de aprender e com a plena consciência de não serem os detentores da verdade, buscarão, pelas evocações e pela colaboração, restaurar o caminho momentaneamente interrompido do Espiritismo, doutrina capaz de revolucionar ideias e, assim, transformar indivíduos, famílias, grupos e, por fim, o mundo. A verdade não pertence a ninguém, mas as teorias que mais se aproximam dela poderão ser encontradas por aquela máxima expressa por Allan Kardec, representando o método científico no Espiritismo:

Generalidade e concordância no ensino, esse o caráter essencial da doutrina, a condição mesma da sua existência, donde resulta que todo princípio que ainda não haja recebido a consagração do controle da generalidade não pode ser considerado parte integrante dessa mesma doutrina. Será uma simples opinião isolada, da qual não pode o Espiritismo assumir a responsabilidade.

Essa coletividade concordante da opinião dos Espíritos, passada, ao demais, pelo critério da lógica, é que constitui a força da doutrina espírita e lhe assegura a perpetuidade.

Allan Kardec – A Gênese

Contamos com seus comentários abaixo.




Espiritismo e Ciência: superando desafios e erros modernos

O Espiritismo, como ciência de aspecto filosófico e consequências morais ((O Espiritismo somente pode ser visto como religião do ponto de vista filosófico, disse Kardec, justamente se baseando na filosofia de então, o Espiritualismo Racional, de onde o Espiritismo se desenvolveu.)), formada através do método científico, vive desafios de todos os lados. Colocado em figura, parece-se com a mais bela flor, do mais suave perfume e das maiores propriedades curativas, abafadas pelos espinhos e pelas ervas-daninhas.

Surgem de todos os lados as mais diversas dificuldades, nascidas principalmente de uma falta de empenho, de zelo e de cuidado. Sob essa nomenclatura, admitem quaisquer tipos de ideias, provenientes da boca ou da intermediação mediúnica de indivíduos tornados ícones inquestionáveis. Não bastasse isso, ausentes de conhecimento sobre o que seja ciência e sobre o necessário método científico, responsável justamente pela força inatacável da Doutrina nascida dos estudos coordenados por Allan Kardec, a maioria dos pesquisadores modernos promove, no meio espírita, novas ideias, novas teorias, distraindo-se do ponto essencial: as evocações, produzindo ensinamentos concordantes entre si, então submetidos à análise racional, frente à ciência humana e frente àquilo que já havia sido construído pelo mesmo método.

Método Científico

Retomemos, por um momento, a questão da definição do método científico, exemplificado na figura em anexo. Para quem se dedicou a estudar pelo menos o primeiro ano da Revista Espírita (1858), ficará muito fácil identificar os mesmos passos tomados por Kardec:

  • a observação sistemática e controlada de certos fenômenos e, depois, das evocações;
  • a verificação de fatos identificados;
  • a investigação de hipóteses, que formam uma teoria, coesa em si mesma, de onde se obtêm implicações, conclusões e previsões;
  • a realização de experimentos, através das evocações, de onde se obtém novas observações, analisadas racional e logicamente;
  • daí, a observação de novos fatos, que corroborarão ou não com a teoria;
  • por final, agregar os resultados dessas observações à teoria científica, se corroborarem com ela, ou reciclar hipóteses, realizando novas observações e percorrendo, novamente, o mesmo método.
Exemplificação do método científico

Um fato muito notável, que denota o rigor científico de Kardec e o seu compromisso indissolúvel com a ciência verdadeira, é que ele nunca se apegou a qualquer ideia no estudo do Espiritismo. Quem passou sobre o estudo da Revista Espírita de 1858 e 1859 já compreende isso muito bem. Um exemplo disso é o estudo tratado principalmente a partir da RE de julho de 1859, iniciando no artigo O Zuavo de Magenta e concluído (pelo menos de momento) nos artigos do mês seguinte. Destacamos o estudo no artigo Materialidade de Além-Túmulo.

E é justamente nesse ponto, o do apego às ideias, somados à ausência do método necessário, que erra a imensa maioria dos pesquisadores modernos do Espiritismo.

O erro do movimento espírita moderno

O grande problema surge a partir do momento em que, abandonando o método científico indispensável para a ciência espírita, o Movimento Espírita passou a admitir teorias contrárias aos princípios já solidificados pelo mesmo método, tais como as ideias de colônias espirituais, umbral, etc., caindo no erro mais básico do espírita empolgado: crer cegamente nas opiniões dos Espíritos.

Não dizemos que o Espiritismo, estudado por Kardec, já tenha observado tudo o que há para ser observado. É claro que não. O que dizemos é que o movimento espírita moderno criou um grande conjunto de teorias que não podem enfrentar o método científico, porque não passaram por ele!

Encontramos, muito frequentemente, mesmo aqueles pesquisadores dedicados e de boa vontade — não tomaremos deles esse ímpeto verdadeiro — que, contudo, apegam-se às mais diversas ideias e que muito rapidamente se mostram irritado pela contradita daquilo que, cientificamente, faz parte dos princípios doutrinários do Espiritismo.

A base da metodologia indispensável no Espiritismo

Retomemos, aqui, o que está destacado em nossa página inicial – uma citação de Allan Kardec em A Gênese:

Generalidade e concordância no ensino, esse o caráter essencial da doutrina, a condição mesma da sua existência, donde resulta que todo princípio que ainda não haja recebido a consagração do controle da generalidade não pode ser considerado parte integrante dessa mesma doutrina. Será uma simples opinião isolada, da qual não pode o Espiritismo assumir a responsabilidade.

Essa coletividade concordante da opinião dos Espíritos, passada, ao demais, pelo critério da lógica, é que constitui a força da doutrina espírita e lhe assegura a perpetuidade.

Allan Kardec — A Gênese

A afirmação acima destacada, feita por Kardec, não é mero fruto de uma sistematização pessoal. Muito pelo contrário: ela representa o método científico necessário para o estudo e o desenvolvimento do Espiritismo. Não basta que um mesmo princípio seja consagrado pela generalidade (o que requer o emprego das evocações, porque não basta que apenas nos coloquemos no papel de ouvir e aceitar o que dizem os Espíritos); não: é necessário, além disso, que essa coletividade concordante da opinião dos Espíritos seja passada pelo critério da lógica, o que quer dizer confrontá-la frente à ciência humana e o método científico, para que, apenas assim, possa ser tomada como princípio do Espiritismo.

Note, ademais, o termo “opinião” utilizado por Kardec, não por acaso: o que dizem os Espíritos, através das comunicações mediúnicas, são opiniões próprias, nascidas de seus conhecimentos e suas próprias observações, quando não são frutos de uma deliberada intenção de mistificar, isto é, promover falsas ideias. Acontece nos melhores grupos. As opiniões dos Espíritos, como as opiniões dos seres humanos, podem estar carregadas de crenças, falsas ideias, pouco conhecimentos, ilusões, etc. Como, então, analisá-las de forma científica? Através da observação psicológica dessas comunicações.

As nuances em uma ciência psicológica

Quem já estudou pelo menos os dois primeiros anos da Revista Espírita nota que, ainda ao final do segundo ano, Kardec continua frequentemente questionando ao Espírito comunicante como ele chegou ali, como ele se apresenta, como ele vê outros Espíritos, etc. Se uma resposta destoar da teoria científica ou trouxer novos fatos, será investigado pelas evocações e segundo o método científico — o que não é realizado hoje em dia.

Kardec investigou, dentre tantas coisas, a questão da dor no Espírito. Houve aqueles que afirmaram sentirem frio ou calor; dores; fome; vermes roendo seu corpo, etc. Foi pelo estudo dedicado, pela análise racional nas nuances psicológicas dessas comunicações, que Kardec chegou a diversos princípios científicos doutrinários. Um exemplo disso é a comunicação do Espírito do assassino Lemaire na RE de março de 1858:

6. Imediatamente após a tua execução, tiveste consciência de tua nova existência? — Eu estava mergulhado numa perturbação imensa, da qual ainda não saí. Senti uma grande dor; parece que meu coração a sentiu. Vi qualquer coisa rolar ao pé do cadafalso. Vi o sangue correr e minha dor tornou-se mais pungente.

Kardec poderia facilmente, não fosse seu rigor científico, admitir que o Espírito sofria materialmente de uma dor no coração. Mas ele investiga:

7. Era uma dor puramente física, semelhante à causada por uma ferida grave, como, por exemplo, a amputação de um membro? — Não. Imagina um remorso, uma grande dor moral.

Poderíamos citar uma enorme diversidade de casos que ilustram esse princípio científico, mas deixamos a cargo da curiosidade sadia do leitor o propósito de estudar a Doutrina que abraça.

O Espiritismo precisa de defesa

Deixar de lado o método científico é um grande erro da maior parte dos pesquisadores modernos do Espiritismo, que visa construir novos princípios doutrinários sem passar por esse processo, quando deveria estar não só praticando as evocações, frente ao estudo dedicado da Revista Espírita, como também deveria estar a todo tempo incitando o movimento espírita a fazê-lo.

Por não fazê-lo, jogam mais uma pá de cal sobre o Espiritismo, produzindo, dele, uma má impressão e uma falsa ideia ante o meio científico, que não o reconhece como algo nascido da ciência, mas como uma mera crendice supersticiosa ou uma religião. Não são raras as vezes em que me deparo com alegações de pessoas que, não tendo tido a chance de conhecer o que realmente seja o Espiritismo, dele se afastaram por não poder admitir, pela razão, que, por exemplo, um Espírito tenha que tomar um ônibus voador para se locomover.

Temos muito a fazer e você já deve ter percebido que o primeiro passo é estudar.




Cidades no mundo Espiritual: Materialidade do Além-Túmulo

Recentemente, uma série de estudos da Revista Espírita nos suscitaram um interessante aprendizado, que vai diretamente de encontro com as ideias de cidades no mundo espiritual, que muitos acreditam e divulgam. O estudo foi realizado sobre os seguintes artigos da Revista Espírita:

  • Julho de 1859:

    • O zuavo de Magenta;

      • Um oficial superior morto em Magenta

  • Agosto de 1859:
    • Mobiliário de além-túmulo;
    • Pneumatografia ou escrita direta;
    • Um espírito serviçal;
    • O guia da senhora Mally

Além disso, utilizamos a conclusão de Kardec em A Gênese (Editora FEAL) — Natureza e Propriedade dos Fluidos.

Vamos destacar os pontos principais do estudo, onde relacionamos nossos comentários entre colchetes ([comentário]).

O zuavo de Magenta

45. ─ Sabeis a razão pela qual nos vedes, ao passo que nós não vos podemos ver?

─ Acredito que vossos óculos estão muito fracos.

[Ele não sabe. Por isso, usa uma metáfora ou figura de linguagem.]

46. ─ Não seria por essa mesma razão que não vedes o general em seu uniforme?

─ Sim, mas ele não o veste todos os dias.

47. ─ Em que dias o veste?

─ Ora essa! Quando o chamam ao palácio.

[Os Espíritos, ignorantes de certas coisas, expressam-se como podem, e veem o mundo dos Espíritos conforme suas ideias, assim como uma criança, utilizando imagens mentais para descrever algo que ela não compreende, fala de coisas que imputamos apenas à imaginação, mas que, no fundo, tem seu significado. O erro, aqui, seria tomar o “palácio” como uma expressão da verdade espiritual permanente.]

48. ─ Por que estais aqui vestido de zuavo se não vos podemos ver?

─ Simplesmente porque ainda sou zuavo, mesmo depois de cerca de oito anos, e porque entre os Espíritos conservamos essa forma durante muito tempo. Mas isso apenas entre nós. Compreendeis que quando vamos a um mundo muito diferente, como a Lua ou Júpiter, não nos damos ao trabalho de fazer essa toalete toda.

[Isso aqui é muito interessante. O que entendemos é que ele está se referindo ao fato de Espírito adotar uma forma perispiritual de acordo com o mundo onde vai e de acordo com a existência de uma personalidade nesse mundo, sem nem perceberem. Se tivesse vivido em um mundo distante como, por exemplo, um vendedor de animais, ao ser lá evocado, se apresentaria dessa forma. Ao se deslocar no espaço, sem ser evocado, não toma forma específica, ou seja, “não precisa fazer essa toalete toda”.]

49. ─ Falais da Lua e de Júpiter. Porventura já lá estivestes depois de morto?

─ Não. Não estais me entendendo. Depois da morte nos informamos de muitas coisas. Não nos explicaram uma porção de problemas da nossa Terra? Não conhecemos Deus e os outros seres muito melhor do que há quinze dias? Com a morte, o Espírito sofre uma metamorfose que não podeis compreender.

[Ele está tentando explicar o pensamento anterior, sem saber como fazê-lo.]

Um oficial superior morto em Magenta

13. ─ No momento da morte vos reconhecestes imediatamente?

─ Reconheci-me quase que imediatamente, graças às vagas noções que tinha do Espiritismo.

14. ─ Podeis dizer algo a respeito do Sr… também morto na última batalha?

─ Ele ainda está nas redes da matéria. Tem mais trabalho em se desvencilhar. Seus pensamentos não se tinham voltado para este lado.
OBSERVAÇÃO: Assim, o conhecimento do Espiritismo auxilia no desprendimento da alma após a morte e abrevia o período de perturbação que acompanha a separação. Isto é compreensível, pois o Espírito conhecia antecipadamente o mundo em que se encontra.

[Se esse conhecimento é tão importante, como conceber que justamente no momento em que o Espiritismo era estudado cientificamente, no melhor momento possível, nada foi falado a respeito dessa materialidade que hoje domina as comunicações?]

Mobiliário de além-túmulo

Até aqui nenhuma dificuldade no que concerne à personalidade do Espírito. Sabemos, porém, que se apresentam com roupagens cujo aspecto mudam à vontade; por vezes mesmo têm certos acessórios de toalete, joias, etc. Nas duas aparições citadas no começo, uma tinha um cachimbo e produzia fumaça; a outra, uma tabaqueira e tomava pitadas. Note-se, entretanto, o fato de que este Espírito era de uma pessoa viva e que sua tabaqueira era em tudo semelhante à de que se servia habitualmente, e que tinha ficado em casa. Que significam, então, essa tabaqueira, esse cachimbo, essas roupas e essas joias? Os objetos materiais que existem na Terra teriam uma representação etérea no mundo invisível? A matéria condensada que forma tais objetos teria uma parte quintessenciada, que escapa aos nossos sentidos?

Eis um imenso problema, cuja solução pode dar a chave de uma porção de coisas até aqui não explicadas. Foi essa tabaqueira que nos pôs no caminho, não apenas do fato, mas do fenômeno mais extraordinário do Espiritismo: o fenômeno da pneumatografia ou escrita direta, de que falaremos a seguir.

[Posição do verdadeiro cientista, em busca da verdade, sem nada descartar.]

3. ─ Essa tabaqueira tinha a forma daquela que ele usa habitualmente, e que estava em sua casa. O que era essa tabaqueira entre as mãos do Espírito?

─ Sempre aparência. Era para que as circunstâncias fossem notadas, como o foram, e para que a aparição não fosse tomada por uma alucinação produzida pelo estado de saúde da vidente. O Espírito queria que essa senhora acreditasse na realidade de sua presença e tomou todas as aparências da realidade.

4. ─ Dizeis que é uma aparência, mas uma aparência nada tem de real; é como uma ilusão de óptica. Eu gostaria de saber se essa tabaqueira não era senão uma imagem irreal, como, por exemplo, a de um objeto que se reflete num espelho.

(Um dos membros da Sociedade, o Sr. Sanson, faz observar que na imagem reproduzida pelo espelho há qualquer coisa de real. Se a imagem não fica no espelho, é que nada a fixa, mas se for projetada sobre uma chapa do daguerreótipo, deixa uma impressão, prova evidente de que é produzida por uma substância qualquer e que não é apenas uma ilusão de óptica).

4 (continuação) – A observação do Sr. Sanson é perfeitamente justa. Teríeis a bondade de nos dizer se existe alguma analogia com a tabaqueira, isto é, se existe algo de material nessa tabaqueira?
─ Certamente. É com o auxílio desse princípio material que o perispírito toma a aparência de vestimenta semelhante às que o Espírito usava quando vivo.

[Sabemos, hoje, o princípio da imagem refletida em um espelho e sua fixação em uma fotografia: o comportamento de ondas. A luz, como energia eletromagnética, reflete no espelho e impressiona o dispositivo de fotografia, seja ele qual for. Parece que é a esse mesmo princípio (de onda) que o Espírito se refere.]

OBSERVAÇÃO: Evidentemente o vocábulo aparência deve aqui ser tomado no sentido de imagem, de imitação. A tabaqueira real lá não estava. A que o Espírito tinha era apenas uma reprodução. Comparada à original, era apenas uma aparência, conquanto formada por um princípio material.

A experiência nos ensina que não devemos tomar ao pé da letra certas expressões usadas pelos Espíritos. Interpretando-as segundo as nossas ideias, expomo-nos a grandes equívocos, por isso devemos aprofundar o sentido de suas palavras, sempre que existe uma ambiguidade mínima. Eis uma recomendação feita constantemente pelos Espíritos. Sem a explicação que provocamos, o vocábulo aparência, repetido continuamente em casos análogos, poderia dar lugar a uma falsa interpretação [Pois “aparência” poderia dar lugar à ideia de algo que não existe.].

5. ─ Haveria um desdobramento da matéria inerte? Haveria, no mundo invisível, uma matéria essencial, revestindo a forma dos objetos que vemos? Numa palavra, esses objetos teriam o seu duplo etéreo no mundo invisível, como os homens aí são representados em Espírito?

OBSERVAÇÃO: Eis uma teoria como qualquer outra, e que era pensamento nosso. O Espírito, no entanto, não a levou em consideração, o que absolutamente não nos humilhou, porque sua explicação nos pareceu muito lógica e porque ela repousa sobre um princípio mais geral, do qual encontramos muitas explicações.

─ Isto não se passa dessa maneira. O Espírito tem sobre os elementos materiais disseminados em todo o espaço, na nossa atmosfera, um poder que estais longe de suspeitar. Ele pode, à vontade, concentrar esses elementos e lhes dar uma forma aparente, adequada a seus projetos.

6. ─ Faço novamente a pergunta de maneira categórica, a fim de evitar qualquer equívoco. As roupas com que se cobrem os Espíritos são alguma coisa?

─ Parece que a minha resposta anterior resolve a questão. Não sabeis que o próprio perispírito é alguma coisa?

7. ─ Resulta desta explicação que os Espíritos fazem a matéria eterizada sofrer transformações à sua vontade e que, assim, no caso da tabaqueira, o Espírito não a encontrou perfeitamente acabada; ele mesmo a fez no momento em que dela necessitava, e depois a desfez. O mesmo deve acontecer com todos os outros objetos, tais como vestimentas, joias, etc.

─ Mas é evidente.

8. ─ Essa tabaqueira foi tão perfeitamente visível para a senhora R… a ponto de iludi-la. Poderia o Espírito tê-la tornado tangível?

─ Poderia.

9. ─ Nesse caso, a senhora R… poderia tê-la tomado nas mãos, julgando pegar uma autêntica tabaqueira?

─ Sim.

10. ─ Se a tivesse aberto teria provavelmente encontrado rapé. Se o tivesse tomado, ele a teria feito espirrar?

─ Sim.

11. ─ Pode então o Espírito dar não somente a forma, mas até propriedades especiais?

─ Se o quiser; é em virtude deste princípio que respondi afirmativamente às questões precedentes. Tereis provas da poderosa ação que o Espírito exerce sobre a matéria e que, como já vos disse, estais longe de suspeitar.

[Sabemos, hoje, que a Criação está longe de ser um “cada um por si”, e que, na verdade, é um “um por todos e todos por um”, sendo que aqueles mais inferiores são sempre “conduzidos” pelos mais elevados.]

12. ─ Suponhamos então que ele tivesse querido fazer uma substância venenosa e que uma pessoa a tivesse tomado. Esta teria sido envenenada?

─ Poderia, mas não teria feito, porque não teria tido permissão para fazê-lo.

13. ─ Teria podido fazer uma substância salutar e própria para curar, em caso de moléstias? Já houve esse caso?

─ Sim; muitas vezes.

OBSERVAÇÃO: Um fato desse gênero será encontrado com uma explicação teórica muito interessante no artigo que damos a seguir sob o título Um Espírito serviçal.

14. ─ Assim também poderia ele fazer uma substância alimentar; suponhamos que tivesse feito um fruto ou um petisco qualquer. Poderia alguém comê-lo e sentir-se alimentado?

─ Sim, sim. Mas não procureis tanto para encontrar aquilo que é fácil de compreender. Basta um raio de sol para tornar perceptíveis aos vossos órgãos grosseiros essas partículas materiais que enchem o espaço em cujo meio viveis. Não sabeis que o ar contém vapor d’água? Condensai-o e o levareis ao estado normal. Privai-o do calor e eis que suas moléculas impalpáveis e invisíveis se tornarão corpo sólido e muito sólido. Outras matérias existem que levarão os químicos a vos apresentar maravilhas ainda mais assombrosas. Só o Espírito possui instrumentos mais perfeitos que os vossos: a sua própria vontade e a permissão de Deus. 

OBSERVAÇÃO: A questão da saciedade é aqui muito importante. Como uma substância que tem apenas existência e propriedades temporárias e, de certo modo, convencionais, pode produzir a saciedade? Por seu contato com o estômago, essa substância produz a sensação de saciedade, mas não a saciedade resultante da plenitude. Se tal substância pode agir sobre a economia orgânica e modificar um estado mórbido, também pode agir sobre o estômago e produzir a sensação da saciedade. Contudo, pedimos aos senhores farmacêuticos e donos de restaurantes que não tenham ciúmes, nem pensem que os Espíritos lhes venham fazer concorrência. Esses casos são raros e excepcionais e jamais dependem da vontade. Do contrário, a alimentação e a cura seriam muito baratas.

15. ─ Do mesmo modo poderia o Espírito fabricar moedas?

─ Pela mesma razão.

16. ─ Desde que tornados tangíveis pela vontade do Espírito, poderiam esses objetos ter um caráter de permanência e de estabilidade?

─ Poderiam, mas isto não se faz. Está fora das leis.

17. ─ Todos os Espíritos têm esse mesmo grau de poder?

─ Não, não.

[Porque apenas os Espíritos superiores poderiam fazê-lo (resposta seguinte).]

18. ─ Quais os que têm mais particularmente esse poder?

─ Aqueles a quem Deus o concede, quando isto é útil.

19. ─ A elevação de um Espírito influi nesse caso?

─ É certo que quanto mais elevado o Espírito, mais facilmente obtém esse poder. Isto, porém, depende das circunstâncias. Espíritos inferiores também podem obtê-lo.

[E, nesse caso, são supridos pela assistência de Espíritos superiores, muitas vezes sem nem saberem disso. Ver O Livro dos Médiuns ou guia dos médiuns e dos evocadores > Segunda parte — Das manifestações espíritas > Capítulo V — Das manifestações físicas espontâneas > Arremesso de objetos.]

20. ─ A produção dos objetos semimateriais resulta sempre de um ato da vontade do Espírito, ou por vezes ele exerce esse poder malgrado seu?

─ Isso frequentemente acontece malgrado seu.

[Quer dizer: ele nem percebe, conscientemente, que faz o que faz.]

21. ─ Seria então esse poder um dos atributos, uma das faculdades inerentes à própria natureza do Espírito? Seria, de algum modo, uma das propriedades, como a de ver e ouvir?─ Certamente. Mas por vezes ele mesmo o ignora. Então outro o exerce por ele, malgrado seu, quando as circunstâncias o exigem. O alfaiate do zuavo era justamente o Espírito de que acabo de falar e ao qual ele fazia alusão na sua linguagem chistosa.

OBSERVAÇÃO: Encontramos um exemplo dessa faculdade em certos animais, como, por exemplo, no peixe-elétrico, que irradia eletricidade sem saber o que faz, nem como, e que nem ao menos conhece o mecanismo que a produz. Nós mesmos por vezes não produzimos certos efeitos por atos espontâneos dos quais não nos damos conta? Assim, pois, parece-nos muito natural que o Espírito opere nessa circunstância por uma espécie de instinto. Ele opera por sua vontade, sem saber como, assim como nós andamos sem calcular as forças que colocamos em jogo.

OBSERVAÇÃO: Esse era, por exemplo, o caso da rainha de Oude, cuja evocação consta do nosso número de março de 1858, que ainda se julgava coberta de diamantes.

23. ─ Dois Espíritos podem reconhecer-se mutuamente pela aparência material que tinham em vida?

─ Não é por esse meio que eles se reconhecem, pois não tomarão essa aparência um para o outro. Se, porém, em certas circunstâncias, se acham em presença um do outro, revestidos dessa aparência, por que não se haveriam de reconhecer?

[Isto aqui é importante! Nos romances mediúnicos, o mundo fantástico criado é todo material ou materialista, e a forma, nesses contos, é fundamental. Aqui, temos novamente a confirmação já feita antes que a forma não é importante para os Espíritos em geral, embora seja predominante para os Espíritos ainda muito presos à matéria (ou seja, de pensamento muito apegado). Decorre daí que faria sentido um Espírito em perturbação “se ver” numa condição como aquela do umbral de André Luiz, mas o mesmo não poderia se dar quando já desapegado dessas ideias, o que não parece ser algo tão distante, conforme o relato de vários Espíritos, dados a Kardec.]

24. ─ Como podem os Espíritos reconhecer-se no meio da multidão de outros Espíritos, e sobretudo como podem fazê-lo quando um deles vai procurar em lugar distante e muitas vezes em outros mundos, aqueles que chamamos?

─ Isto é uma pergunta cuja resposta levaria muito longe. É necessário esperar.

Não estais suficientemente adiantados. No momento contentai-vos com a certeza de que assim é, pois disso tendes provas suficientes.

25. ─ Se o Espírito pode tirar do elemento universal os materiais para fazer todas essas coisas e dar a elas uma realidade temporária, com suas propriedades, também pode tirar dali o necessário para escrever. Consequentemente, isto nos dá a chave do fenômeno da escrita direta((A escrita direta acontece quando um Espírito, pela vontade e com a utilidade em fazê-lo, faz aparecer, sobre um papel, uma escrita real, ora em grafite, ora em tinta, ora em formato de impressão. Recomendamos a leitura do artigo seguinte, “Pneumatografia ou escrita direta”, assim como do artigo de mesmo título, em maio de 1860, e também do Capítulo XII de O Livro dos Médiuns  — “Da pneumatografia ou escrita direta”. 

Pneuma: entre os antigos pensadores gregos, sobretudo os estoicos, designativo do espírito, sopro animador ou força criadora, usada pela razão divina para vivificar e dirigir todas as coisas.)).

─ Finalmente o compreendeis.

[amadurecimento científico]

26. ─ Se a matéria de que se serve o Espírito não é permanente, como não desaparecem os traços da escrita direta?

─ Não julgueis pelas palavras. Desde o início eu nunca disse jamais. Nos casos estudados, tratava-se de objetos materiais volumosos; aqui se trata de sinais que convém conservar e são conservados.

[Entendo que S. Luis afirma que essa matéria não é impermamente, e que ela se desfaz quando é “condensada” apenas por um efeito passageiro, por Espíritos inferiores. No caso da escrita direta, se há interesse em conservá-la, ela é conservada. O Cap. VI – Uranografia Geral – n’A Gênese, dá a chave para esse entendimento.]

A teoria acima pode resumir-se assim: O Espírito age sobre a matéria; tira da matéria primitiva universal os elementos necessários para, à vontade, formar objetos com a aparência dos diversos corpos existentes na Terra. Também pode operar sobre a matéria elementar, por sua vontade, uma transformação íntima que lhe dá determinadas propriedades. Essa faculdade é inerente à natureza do Espírito, que muitas vezes a exerce, quando necessário, como um ato instintivo, que não chega a perceber.

[É importante notar que, depois, parece ficar claro que essa interação sobre a matéria nunca é direta, mas que necessita do fluido perispiritual do encarnado para acontecer.]

Os objetos formados pelos Espíritos têm uma existência temporária, subordinada à sua vontade ou à necessidade. Ele pode fazê-los e desfazê-los à vontade. Em certos casos, aos olhos das pessoas vivas, esses objetos podem ter todas as aparências da realidade, isto é, tornar-se momentaneamente visíveis e até tangíveis. Há formação, mas não criação, visto que o Espírito nada pode tirar do nada. (O Livro dos Médiuns, questões 130 e 131).

O guia da senhora Mally

O artigo “Um espírito serviçal”, do mesmo número, apresenta o caso da senhora Mally, onde, ao seu redor, muitos fatos interessantes acontecem. Desde cedo tinha a capacidade de visão de Espíritos. Certas vezes, via seu Espírito guia; outras, via aparições desagradáveis, que tinham o intuito de chamar sua atenção para manter-se vigilante. Chegou a haver a materialização de um Espírito (agênere).

“Em 1856, a terceira filha da Senhora Mally, de quatro anos de idade, caiu doente. Foi em agosto. A criança estava continuamente mergulhada num estado de sonolência, interrompido por crises e convulsões. Durante oito dias eu mesmo [o correspondente] vi a criança, que parecia sair do seu abatimento, tomar uma expressão sorridente e feliz, de olhos semicerrados, sem olhar para os que a cercavam; estender a mão em gesto gracioso, como para receber alguma coisa; levá-la a boca e comer; depois agradecer com um sorriso encantador. Durante esses oito dias a menina foi sustentada por esse alimento invisível e seu corpo readquiriu a aparência de frescura habitual.”

[O artigo é interessante e recomendamos a leitura. Vamos seguir para a evocação do guia da Sra. Mally.]

A evocação inicia-se com o estabelecimento das relações daquele Espírito com a sra Mally: tinham uma relação de simpatia antiga. O Espírito era o de um menino de oito anos, falecido há muito tempo. Kardec pergunta se era sempre ele quem aparecia para ela, e ele diz que não, mas assevera que é ele mesmo quem produzia certos fenômenos materiais *:

13. ─ Então você tem o poder de se tornar visível à vontade?

─ Sim, mas eu disse que não era eu.

14. ─ Você também não tem nada a ver com as outras manifestações materiais produzidas na casa dela?

─ Perdão! Isto sim. Foi o que eu me impus, junto a ela, como trabalho material, mas faço para ela outro trabalho muito mais útil e muito mais sério.

* Kardec diz, no artigo anterior: “Por outras manifestações ele revela o seu estado moral. Esse Espírito tem um caráter pouco sério, entretanto, ao lado de sinais de leviandade, deu provas de sensibilidade e dedicação.”

16. ─ Você poderia tornar-se visível aqui, a um de nós?

─ Sim, se pedirdes a Deus para que isso aconteça. Eu posso, mas não ouso fazê-lo.

17. ─ Se você não quer tornar-se visível, poderia pelo menos dar-nos uma manifestação, como por exemplo trazer qualquer coisa para cima desta mesa?

─ Certamente, mas qual seria a utilidade? Para ela é assim que eu testemunho a minha presença, mas para vós isto seria inútil, pois estamos conversando.

18. ─ O obstáculo não seria a falta de um médium, necessário para produzir essas manifestações?

─ Não, isto é um pequeno obstáculo. Não vedes frequentemente aparições súbitas a pessoas sem nenhuma mediunidade?

19. ─ Então todo mundo é apto a ver aparições espontâneas?

─ Sim, pois todo ser humano é médium.

20. ─ Entretanto, o Espírito não encontra no organismo de certas pessoas uma facilidade maior para comunicar-se?

─ Sim, mas eu vos disse ─ e vós deveis sabê-lo ─ que os Espíritos têm o poder por si mesmos. O médium nada é. Não tendes a escrita direta? É necessário médium para isso? Não, mas apenas a fé e um ardente desejo. E ainda às vezes isto se produz a despeito dos homens, isto é, sem fé e sem desejo.

[Aqui, Kardec está aprofundando os estudos. Não podemos tomar isso como conclusivo, pois, talvez, o que diz esse Espírito não seja a verdade, mas apenas o que ele compreende. Contudo, não é difícil pensar que, se a Matéria forma-se pelo pensamento dos Espíritos puros, formas materiais muito simples possam ser formadas, sob essa influência e por sua utilidade, por Espíritos menos elevados.]

21. ─ Você acha que as manifestações, como a escrita direta, por exemplo, se tornarão mais comuns do que são hoje?

─ Certamente. Como compreendeis, então, a vulgarização do Espiritismo?

22. ─ Você pode explicar-nos o que é que a filha da senhora Mally pegava na mão e comia quando estava doente?

Maná, uma substância criada por nós, que encerra o princípio contido no maná ordinário e a doçura do confeito.

23. ─ Essa substância é formada da mesma maneira que as roupas e os outros objetos que os Espíritos produzem por sua vontade e pela ação que exercem sobre a matéria?

─ Sim, mas os elementos são muito diferentes. Os ingredientes que formam o maná não são os mesmos que eu arranjava para criar madeira ou roupa.

[“Não devemos tomar ao pé da letra certas expressões usadas pelos Espíritos”. Sigamos, antes de formar ideias]

24. ─ (A São Luís) Os elementos utilizados pelo Espírito para formar seu maná eram diferentes dos que ele tomava para formar outras coisas? Sempre nos disseram que há um só elemento primitivo universal, do qual os diferentes corpos são simples modificações.

[Aqui, por haver dúvida ou imprecisão na resposta daquele Espírito, Kardec questiona a São Luis, Espírito guia do grupo. É o princípio que demonstramos em nosso artigo recente]

─ Sim. Isto significa que esse elemento primitivo está no espaço, aqui sob uma forma, ali sob outra. É o que ele quer dizer. Ele obtém o seu maná de uma parte desse elemento, que supõe diferente, mas que é sempre o mesmo.

25. ─ A ação magnética pela qual se pode dar propriedades especiais a uma substância, como à da água, por exemplo, tem relação com a do Espírito que cria uma substância?

─ O magnetizador não emprega nada além da sua vontade. É um Espírito que o ajuda, que se encarrega de preparar o remédio.


Análise sobre passagem em “Nosso Lar”

Em Nosso Lar, vemos a seguinte passagem. Analisemo-la:

A mensageira do bem fixou o quadro, compreendeu a gravidade do momento e acrescentou:

– Não temos tempo a perder.

Antes de tudo, aplicou passes de reconforto ao doente, isolando-o das formas escuras, que se afastaram como por encanto. Em seguida, convidou-me com decisão:

– Vamos à Natureza.

Acompanhei-a sem hesitação e ela, notando-me a estranheza, acentuou:

– Não só o homem pode receber fluidos e emiti-los. As forças naturais fazem o mesmo, nos reinos diversos em que se subdividem. Para o caso do nosso enfermo, precisamos das árvores. Elas nos auxiliarão eficazmente.

Admirado da lição nova, segui-a, silencioso. Chegados a local onde se alinhavam enormes frondes, Narcisa chamou alguém, com expressões que eu não podia compreender.

[É claro que os Espíritos não falavam pela boca. Isso é uma figura de linguagem. A expressão é do pensamento, e André Luiz não conseguia compreender esses pensamentos, ainda.]

Daí a momentos, oito entidades espirituais atendiam-lhe ao apelo. Imensamente surpreendido, vi-a indagar da existência de mangueiras e eucaliptos. Devidamente informada pelos amigos, que me eram totalmente estranhos, a enfermeira explicou:

– São servidores comuns do reino vegetal, os irmãos que nos atenderam.

[Os mais elevados, SERVEM. Não são “duendes”. São Espíritos, ocupando suas atividades na natureza. Não vivem em meio à mata, mas se ocupam desse reino, como outros Espíritos se ocuparão de outros. Talvez não sejam mais adiantados que nós, mas são mais adiantados que aqueles que ainda estão na posição do Princípio Inteligente. Por isso, servem ao seu propósito. As obras mediúnicas precisam, com base no Espiritismo, ser relidas e, se ainda restar dúvida, esses Espíritos devem ser EVOCADOS!]

E, à vista da minha surpresa, rematou:

– Como vê, nada existe de inútil na Casa de Nosso Pai. Em toda parte, se há quem necessite aprender, há quem ensine; e onde aparece a dificuldade, surge a Providência. O único desventurado, na obra divina, é o espírito imprevidente, que se condenou às trevas da maldade.

[Aqui, ela reforça o ensinamento, asseverando que o Espírito (portanto, consciente) que voluntariamente se condenou à trevas, isto é, que voluntariamente se apegou à imperfeição, é o único que se afasta do “caminho”, que é a relação constante dos Espíritos, aprendendo, cooperando e ensinando, em direção ao bem.]

Narcisa manipulou, em poucos instantes, certa substância com as emanações do eucalipto e da mangueira [“[o] elemento primitivo está no espaço, aqui sob uma forma, ali sob outra”] e, durante toda a noite, aplicamos o remédio ao enfermo, através da respiração comum e da absorção pelos poros.


Continuando: O guia da senhora Mally

26. ─ (Ao guia) Há tempos relatamos fatos curiosos de manifestações de um Espírito por nós designado com o nome de Duende de Bayonne. Você conhece esse Espírito?

─ Particularmente, não, mas acompanhei o que fizestes a seu respeito e foi dessa forma que tomei conhecimento dele.

27. ─ Ele é um Espírito de ordem inferior?

─ Inferior quer dizer mau? Não. Quer dizer, simplesmente: não inteiramente bom, pouco adiantado? Sim.

[Espírito inferior não é sinônimo de Espírito imperfeito, porque a imperfeição é algo adquirido pelo hábito e pela vontade. Na Escala Espírita, isso fica claro.

Tudo isso está sendo fantástico! Poder verificar, na RE, a confirmação, dada por toda parte, daquilo que se conclui nas obras finais. Mal sabem, os resistentes, a riqueza que existe nesse estudo!]

28. ─ Agradecemos pela bondade de ter vindo, e pelas explicações que nos deu.

─ Às vossas ordens.

OBSERVAÇÃO: Oferece-nos esta comunicação um complemento àquilo que dissemos nos dois artigos precedentes sobre a formação de certos corpos pelos Espíritos. A substância dada à criança, durante a doença, evidentemente era preparada por eles e objetivava restaurar a saúde. De onde tiraram os seus princípios? Do elemento universal, transformado para o uso desejado. O fenômeno tão estranho das propriedades transmitidas por ação magnética, problema até aqui inexplicado, e sobre o qual se divertiram os incrédulos, está agora resolvido. Com efeito, sabemos que não são apenas os Espíritos dos mortos que agem, mas que os dos vivos também têm a sua parte de ação no mundo invisível. O homem da tabaqueira dá-nos a prova disso. Que há, pois, de admirável em que a vontade de uma pessoa, agindo para o bem [Lei], possa operar uma transformação da matéria primitiva e dar-lhe determinadas propriedades? Em nossa opinião, aí está a chave de muitos efeitos supostamente sobrenaturais, dos quais teremos oportunidade de falar.

É assim que, pela observação, chegamos a perceber as coisas que fazem parte da realidade e do maravilhoso. Mas quem diz que esta teoria é verdadeira? Vá lá! Ela tem pelo menos o mérito de ser racional e de estar perfeitamente em concordância com os fatos observados. Se algum cérebro humano achar outra mais lógica do que esta dada pelos Espíritos, que sejam comparadas. Um dia talvez nos agradeçam por termos aberto o caminho ao estudo racional do Espiritismo.

Certo dia alguém nos dizia: “Eu bem que gostaria de ter um Espírito serviçal às minhas ordens, mesmo que tivesse de suportar algumas travessuras que me fizesse.”

É uma satisfação que a gente desfruta sem o perceber, porque nem todos os Espíritos que nos assistem se manifestam de maneira ostensiva, mas nem por isso deixam de estar ao nosso lado e, pelo fato de ser oculta, sua influência não é menos real.

A Gênese (FEAL) > Natureza e Propriedade dos Fluidos

Como já foi demonstrado, o fluido cósmico universal é a matéria elementar primitiva da qual as modificações e transformações constituem a inumerável variedade de corpos da natureza. Como princípio elementar do Universo, ela apresenta dois estados distintos: o de eterização ou de imponderabilidade que se pode considerar como o estado primitivo, e o de materialização ou de ponderabilidade, que vem a ser, de alguma forma, sua consequência. O ponto intermediário é o de transformação do fluido em matéria tangível. Mas, ainda aí, não existe transição brusca, pois pode-se considerar nossos fluidos imponderáveis como um ponto intermediário entre os dois estados ((Para compreender as afirmações de Allan Kardec é fundamental considerar que havia em seu tempo, na Física, a teoria de que a matéria seria constituída por duas classes: matéria comum, tangível ou ponderável, e matéria imponderável ou átomos representativos da luz, da eletricidade, do calor, etc. (são os fluidos luminoso, elétrico, calórico, etc.). Os fluidos psíquicos ou espirituais (tema deste capítulo) seriam, então, estados ainda mais sutis do fluido cósmico universal do que desses fluidos imponderáveis então aceitos. Haveria, então, numa sequência de maior para menor sutiliza: matéria comum, matéria imponderável, matéria psíquica. Atualmente sabemos que a hipótese da substância imponderável é falsa, e esses fenômenos são explicados como ondas eletromagnéticas. Transpondo o raciocínio de Kardec para a Física Moderna, poderíamos concluir que a matéria psíquica ou espiritual estaria acima da luz. Mas essa hipótese leva a questões e implicações mais complexas no atual paradigma científico para as quais não temos nesta obra os desenvolvimentos que permitam resolvê-las. (N. do E.) )).

Os Espíritos agem sobre os fluidos espirituais, não os manipulando como os homens manipulam os gases, mas com a ajuda do pensamento e da vontade, que são, para o Espírito, o que a mão é para o homem. Pelo pensamento, eles imprimem no fluido essa ou aquela direção; eles os aglomeram, combinam ou dispersam e formam conjuntos com uma aparência, uma forma, uma cor determinada; mudam suas propriedades, como um químico muda as de um gás ou de outros corpos, combinando-os segundo certas leis. É a grande oficina ou laboratório da vida espiritual.

Algumas vezes, essas transformações são o resultado de uma intenção, mas frequentemente são o produto de um pensamento inconsciente, pois basta o Espírito pensar numa coisa para que ela seja feita.

É assim, por exemplo, que um Espírito se apresenta à vista de um encarnado, dotado da vista espiritual, sob a aparência que tinha quando estava vivo, na época em que o conheceu, embora já tenha tido várias outras encarnações. Ele se apresenta com as vestes, os sinais externos, enfermidades, cicatrizes, membros amputados, etc. que tinha; um decapitado se apresentará sem a cabeça. Não digo que tenham conservado tais aparências; não, certamente, porque, como Espírito, ele não é coxo nem maneta, nem caolho nem decapitado. Mas seu pensamento, se reportando à época em que era assim, seu perispírito toma instantaneamente essa aparência, a qual muda também instantaneamente. Se ele havia sido uma vez negro e outra vez branco, ele se apresentará como negro ou como branco, de acordo com qual das duas encarnações ele seja evocado e para onde vá seu pensamento.

Por um efeito análogo, o pensamento do Espírito cria fluidicamente os objetos que estava habituado a utilizar. Um avaro manejará ouro; um militar terá suas armas e seu uniforme; um fumante, seu cachimbo; um trabalhador, sua charrua e seus bois; uma velha mulher, sua roca.

Esses objetos fluídicos são tão reais para o Espírito quanto seriam no estado material para o homem encarnado. Mas, pelo fato de serem criados pelo pensamento, sua existência é tão efêmera quanto ele [aqui Kardec faz referência ao artigo abordado anteriormente, Mobiliário de além-túmulo].

Observações nossas

  • O Espírito materializa, pela ação do pensamento, os fluidos, de acordo com sua elevação, seus apegos e suas ideias. Essa materialização pode ir de simples objetos a, provavelmente, amplos cenários, formados em grupo.
  • Espíritos às vezes pouco elevados, mas já desprendidos dos apegos materiais, demonstram não estar envolvidos nessa materialidade, tão predominante em outros.
  • Espíritos pouco esclarecidos formam imagens mentais para descrever algo que eles não compreendem, assim como crianças podem fazer. O papel de um estudioso da psicologia, em ambos os casos, é ir além das imagens e das figuras para entender o fundo do que dizem. 
  • O erro está em se apegar à palavra, de forma literal.
  • Longe de descartarmos como tolice, precisaremos estar prontos para, havendo uma retomada do Espiritismo científico, sabermos filtrar os diversos atavismos que os Espíritos, dominados por essas ideias amplamente disseminadas, poderão utilizar.
  • Como destacamos em artigo recente, é um grave erro formar sistemas sobre metáforas, retiradas de seu contexto e não entendidas corretamente. Para se desfazer desses erros, necessário será retomar o Espiritismo cientificamente, da mesma forma que Kardec realizou.
  • A “codificação” apresenta todos os elementos para entender que a materialidade do mundo espiritual está diretamente ligada ao materialismo dos Espíritos. Aqueles que são mais “espiritualizados”, não necessariamente esclarecidos, não a apresentam, enquanto aqueles que encontram-se em estado de perturbação, causado por imperfeições, frequentemente apresentam ideias de apego à matéria. São fartos esses exemplos. Perguntamos: como, justamente no momento mais importante do Espiritismo, essa suposta realidade de cidades e colônias, que seria tão importante, já que seria imediata à nossa morte, não ficou claramente estabelecida para Kardec? Já tratamos dessas questões em artigo recente, e não vamos repetí-la.



CSI do Espiritismo: o órgão oficial da Verdade

CSI do Espiritismo, de Carlos Seth, tornou-se órgão oficial da Verdade.

por Paulo Degering R. Junior


Ao contrário de respeitar a lei mundial, no que tange ao direito moral do autor e que classifica, peremptoriamente, sob ponto de vista jurídico, a quarta edição de O Céu e o Inferno e a quinta edição de A Gênese como adulterações fácticas, indiscutíveis, o grupo conhecido como CSI do Espiritismo, através de uma argumentação repleta de furos e falta de lógica, dando palavras finais sobre o assunto e atropelando o ordenamento jurídico, diz que não houve adulterações.

Lá, no CSI do Espiritismo, de Carlos Seth, Adair Ribeiro e Luciana Farias, não se discute mais sobre o assunto. Apesar de o registro legal da publicação da quinta edição de A Gênese datar apenas de 1872, como eles encontraram um (só um) suposto exemplar dessa edição, mas com a data de 1869, numa biblioteca da Suíça (não da França, mas da Suíça), logo ligaram esse exemplar perdido ao fato de Kardec ter declarado estar preparando uma nova versão — como se isso pudesse ser utilizado como prova de conclusão e de correspondência. E, no balaio, junto vai a afirmação de que a grotesca — e evidente — adulteração de O Céu e o Inferno não existiu!

A lógica da Verdade absoluta (CSI do Espiritismo) é esta: se Kardec declarou estar preparando uma nova edição de A Gênese e se um exemplar, datado de 1869, com alterações no mínimo estranhas, foi encontrado (na Suíça), então é evidente que ele só pode ter sido publicado pelas mãos de Kardec (apesar dos problemas, logo na capa), e mente quem disser o contrário!

É claro que aqui existe um detalhe: o fato de que, tendo o Depósito Legal da 5.ª edição sido realizado apenas em 1872, quase três anos após a morte de Kardec, isso, per se, classifica uma questão legal importante — a de que qualquer alteração realizada após a morte de um autor implica em adulteração. Mas é claro que o Ministério da Verdade tem a resposta: o exemplar único, sabe-se lá por que, esquecido numa biblioteca suíça (e não francesa) é a prova cabal contra a questão jurídica (não é)!

Tem também o fato de a esposa de Kardec ter assinado a ata de 1873 (se não me engano) onde estaria dando ciência da publicação daquela edição… Mas que ela tenha sido colocada de lado por Leymarie, como demonstra Simoni Privato, e que essa edição não tenha sido publicada na França, nos primeiros anos, é claro que não vem ao caso. Parece-nos que foi tudo pensado para que essa adulteração não ficasse em evidência no território francês.

Seria lógico, para um pensador incauto, imaginar que o fato de não ser possível encontrar, na França, exemplares dessa nova edição, “Revisada, Corrigida e Aumentada”, deva-se ao fato de que, na França, isso poderia ser considerado uma contravenção — já que ela não tinha depósito legal — mas não para quem aceita a Verdade Inquestionável.

Como eles encontraram diversas evidências de que Kardec, antes de morrer, havia encomendado uma nova edição de A Gênese; como encontraram evidências de que essa nova edição havia começado a ser impressa; como eles verificaram que a própria viúva de Kardec, três anos depois, assinou um documento dando ciência sobre a distribuição dessa nova edição, eles concluíram, é claro, que seria absolutamente impossível que alguém tomasse os tipos móveis, após a morte de Kardec, e produzisse uma segunda versão, apresentando cada uma conforme conveniência, ou que tivessem dado sumiço na versão alterada por Kardec, ficando apenas com uma versão adulterada. Não, nada disso pode ter acontecido, segundo o CSI do Espiritismo.

Evidências, agora, são suporte para dar a palavra final sobre algo que não pode ser provado — e que eles afirmam que não pode ser provado. O que precisamos entender e aceitar, “de nosso lado”, é que Kardec ficou — ele que me perdoe — gagá, nos seus últimos anos! Que, apesar de ter realizado obras tão profundas e sábias, em termos científicos e filosóficos — O Céu e o Inferno e A Gênese — pouco após isso, deve ter tido algum tipo de síncope que o deixou lesado, a ponto de ir contra a direção dos Espíritos, que diziam que a obra estava ótima e que NADA deveria ser removido.

Minha opinião é que não há absolutamente nada de doutrina a ser retirado; tudo aí é útil e satisfatório sob todos os aspectos

[…]

É necessário deixar intactas todas as teorias que aparecem pela primeira vez aos olhos do público”.

No caso, além da demonstração jurídica da adulteração de A Gênese, também esta comunicação reforça o fato em razão das alterações doutrinárias identificadas na obra, com a supressão de diversos trechos em que Kardec critica a moral heterônoma do fanatismo religioso, dentre outras manipulações.

Ainda nesta comunicação, o espírito sugeriu também que ele trabalhasse sem pressa e sem dedicar muito tempo:

Sobretudo, não se apresse demais. (…) Comece a trabalhar imediatamente, mas não de forma exagerada. Não se apresse”.

AUTONOMIA. NCNI – Conselhos sobre A Gênese. Disponível em: https://espirito.org.br/autonomia/ncni-conselhos-sobre-a-genese/. Acesso em: 24 abr. 2023.

Kardec não só removeu pontos importantíssimos das obras, como o prefácio da nova edição de OCI (afinal, quem é que precisa de um prefácio explicando o caráter da obra e a propriedade que ela tem, como resultado do estudo da ciência espírita?), como fez um verdadeiro frankenstein de AG, trocando ideias fundamentais antes declaradas e fazendo até mesmo referências a postulados que haveria de remover na nova edição de OCI. Logo ele, que, com uma habilidade assustadora, era capaz de conduzir uma linha de pensamentos perfeitamente encadeada entre vários números da Revista Espírita! Removeu um capítulo de OCI e transformou em lei do pós-morte aquilo que outrora dizia não ser possível tomar como lei — sem dar nenhuma explicação sobre isso!

Coitado do Kardec, deve ter soltado um parafuso de tanto falar com Espíritos. Segundo essa linha de pensamentos — a da Verdade Inquestionável — ele, por pouco, poderia ter se tornado um novo discípulo de Roustaing!

Pior: além de gagá, Kardec ficou MEDROSO. Ora, é a única coisa que podemos depreender da inquestionável verdade do CSI do Espiritismo, já que fez, n’A Gênese, pesadas assertivas sobre os adversários do Espiritismo, para depois removê-las na nova edição.

Dizer que a humanidade está madura para a regeneração não significa que todos os indivíduos estejam no mesmo degrau, mas muitos têm, por intuição, o germe das ideias novas que as circunstâncias farão desabrochar. Então, eles se mostrarão mais avançados do que se possa supor e seguirão com empenho a iniciativa da maioria. Há, entretanto, os que são essencialmente refratários a essas ideias, mesmo entre os mais inteligentes, e que certamente não as aceitarão, pelo menos nesta existência; em alguns casos, de boa-fé, por convicção; outros por interesse. São aqueles cujos interesses materiais estão ligados à atual conjuntura e que não estão adiantados o suficiente para deles abrir mão, pois o bem geral importa menos que seu bem pessoal — ficam apreensivos ao menor movimento reformador. A verdade é para eles uma questão secundária, ou, melhor dizendo, a verdade para certas pessoas está inteiramente naquilo que não lhes causa nenhum transtorno. Todas as ideias progressivas são, de seu ponto de vista, ideias subversivas e, por isso, dedicam a elas um ódio implacável e lhe fazem uma guerra obstinada. São inteligentes o suficiente para ver no Espiritismo um auxiliar das ideias progressistas e dos elementos da transformação que temem e, por não se sentirem à sua altura, eles se esforçam por destruí-lo. Caso o julgassem sem valor e sem importância, não se preocupariam com ele. Nós já o dissemos em outro lugar: “Quanto mais uma ideia é grandiosa, mais encontra adversários, e pode-se medir sua importância pela violência dos ataques dos quais seja objeto”.

KARDEC, Allan. A GÊNESE, 4.ª EDIÇÃO — EDITORA FEAL

Vai ver Kardec recebeu alguma carta ameaçadora — mais ameaçadora que as dezenas que deveria receber com ameaças. Ou então Kardec notou, enfim, seu erro em julgar que o Espiritismo fosse assim tão potente a ponto de despertar esse ódio implacável ao qual se referiu.

Bem, além de aceitarmos a Verdade Inquestionável do CSI do Espiritismo, aprendendo a deixar de lado esse negócio de “razão”, precisamos também aprender a enterrar certos autores, que nem sequer são citados pelo órgão representativo da verdade divina na Terra. Podemos até mesmo criticá-los, como fez Carlos Seth, mas não podemos, de forma alguma, utilizar seus vastos trabalhos de anos de pesquisa sobre Magnetismo, Espiritualismo Racional e Espiritismo. Jamais! Ao criticá-los, não devemos nem sequer citar nomes – vai que as pessoas despertem o interesse em ler as insanidades que diz esse tal “Paulo Henrique de Figueiredo”. Afinal, esse autor tem a ousadia de questionar o Ministério da Verdade, utilizando essa tal da “razão” e, afirmando que não consegue ver um Kardec tresloucado, diz que encontrou a plena concordância das ideias tratadas nas obras e na Revista Espírita com as primeiras edições dessas obras — edições essas que também não devem ser citadas.

Passemos uma régua por cima de todo esse imbróglio, e não mais falemos sobre isso. As evidências do “outro lado”, esse que “acredita” numa adulteração, devem ser sumariamente esquecidas, junto aos seus autores. Diferentemente do que dizia Kardec — que não podemos dar palavra final sobre aquilo que não pode ser provado — nós devemos aceitar a palavra final do CSI do Espiritismo. Desde que as evidências por eles encontradas tornaram-se expressão final da verdade inquestionável, todos — repito: todos — os argumentos do “outro lado” tornam-se automaticamente nulos! Aquele “caminhão” de argumentos trazidos por Simoni Privato em “O Legado de Allan Kardec”? N-U-L-O, pois diz Carlos Seth Investiga: “Nós demonstramos com FATOS que TODAS as evidências utilizadas para provar que “A Gênese” poderia ter sido adulterada NÃO se sustentaram”. Há quem discorde.

Ah, o FATO de Leymarie ter adulterado uma comunicação espiritual, em Obras Póstumas, removendo justamente o trecho em que o Espírito recomendava que Kardec não retirasse nenhuma ideia na nova edição de A Gênese também foi prontamente anulado pelas evidências do órgão da Verdade Inquestionável.

Também não devemos nem sequer trazer à tona esses argumentos contrários, pois do que é que vale, contra algumas evidências materiais, uma enorme quantidade de argumentos lógicos e o fato de que o registro, após a morte do autor, de uma edição alterada, configura adulteração? ? Absolutamente nada!

É claro que isso traz um “pequeno” problema, já que o Espiritismo não pode ser provado senão por meio da racionalidade, mas não devemos temer: o Ministério da Verdade com certeza terá uma solução para isso. Assim que o Espiritismo estiver um tanto mais minado pela desconfiança colocada sobre Kardec (quem, lembre-se, ficou gagá) e pela descoberta de “fofocas da época”, obtidas através de opiniões dos médiuns dissidentes, encontradas em documentos antigos, poderemos, quem sabe, passar um rodo sobre o Espiritismo “de Kardec” e fundar uma nova era de estudos históricos.

Mas não é tudo: devemos, além de declarar a nulidade de qualquer argumento em contrário, sem apresentá-los ao público, combater também qualquer ideia que venha da direção contrária, criticando obras sem nenhuma necessidade de compromisso científico. Se cometermos falácias, não tem problema. Afinal, estaremos combatendo a mentira e, para isso, devemos usar todas as armas.

Diz Carlos Seth, do CSI do Espiritismo:

Em meados de 1890 houve a consolidação da divisão entre o Espiritismo consolador e o Espiritismo científico, conforme já apontou o colega John Monroe.

A história se repetiu entre 2016 e 2020 agora no campo da moral, com o lançamento de livros que procuraram trazer pensamentos de Kant, Maine de Biran e Victor Cousin para dentro do Espiritismo, mesmo que para isso precisassem deturpar as ideias de Allan Kardec.

BASTOS, Carlos Seth. Bônus adicional – O final. Espíritos sob investigação. Disponível em: <https://www.luzespirita.org.br/leitura/pdf/L193.pdf>. Acesso em: 15/04/2023.

Sem sombra de dúvidas, Seth não leu absolutamente nada do que esse povo doido está falando por aí sobre o Espiritualismo Racional, nem leu a Revista Espírita, que é onde está firmada a base científica do Espiritismo, que ele parece criticar. Justamente na Revista Espírita, onde Kardec parece ter “perdido a cabeça”, ao afirmar o Espiritismo sendo um desenvolvimento do Espiritualismo Racional! Interessante é que a leitura e o cuidado em não se falar do que não se sabe faz ser evidente que o Espiritualismo Racional deu base ao Espiritismo, havendo um grande intercâmbio entre essas duas ciências, sendo que o Espiritismo vem dar a chave para aquilo que o ER não tinha como responder. Mas é aí que mora o problema: esse assunto é tratado por um autor cujo nome o Ministério da Verdade (CSI do Espiritismo) não permite nem sequer que seja citado — esse tal “Figueiredo”. Cito até a obra: “Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo”. Mas, por favor, não leiam esse livro, repleto de sandices! Devemos apenas colocá-la na sombra da inexistência, junto ao seu autor que, segundo o Ministério, está causando uma divisão no Espiritismo, “agora no campo moral”!

Se a Verdade Inquestionável age assim, é porque tem um motivo muito sério: é que esse autor pode dar aval às subversivas ideias da adulteração. Mostrando suas intenções malévolas e colocando seus livros no esquecimento, através de algumas inofensivas e nada levianas afirmações falaciosas, age a Verdade em nome do Bem. Essas ideias de autonomia e Espiritualismo Racional — “racional” — se são tratadas por esse autor, ou são fruto de erro, ou devem apenas serem esquecidas, a fim de que, repetimos, não levem as pessoas a lerem as obras proibidas.

Preste muita atenção: a controvérsia sobre a adulteração das obras O Céu e o Inferno e A Gênese se mostrou inexistente! Sim, porque, para nós que aceitamos a Verdade Inquestionável do CSI do Espiritismo, o outro lado nem sequer existe! Como aceitamos evidências como provas (embora ciência seja sobre teorias, e não provas) e fazemos uma inferência que para muitos pode parecer forçada — mas o Ministério da Verdade afirma que não é — todo o restante torna-se automaticamente nulo. Apaguemos também a história, que nem sequer devemos citar. Sobre os autores que corroborem essa ideia de um complô ao redor de Kardec, não podemos fazer nada mais do que mostrá-los como são — impulsivos e levianos, embora tenham se dedicado a longos anos de pesquisas — para que, enfim, possamos guiar as pessoas pelo caminho correto — o da Verdade Inquestionável — não pela razão, mas pela coerção, já que a maioria é incapaz de pensar por si própria. Aquela história de deixar ao tempo e ao público julgar o que é correto — essas ideias malucas de Kardec — caem por terra, pois temos evidências que podem ser tomadas como provas cabais, segundo nossas teorias.

Aqueles, enfim, que não aceitam a Verdade Inquestionável, devemos tratá-los como são: resistentes e de mente fechada, que não aceitam as evidências que lhes apontamos. Preferem acreditar que Kardec jamais poderia ter realizado tais alterações, pois, dizem eles, não são racionais nem condizem com o método que ele teria utilizado por anos, nem muito menos com o restante da obra. Balela! Declaremos guerra a essas ideias sem nenhum nexo e proibamos, o quanto possível, que sejam sequer suscitadas, pois causam um mal gigantesco ao atiçarem, no povo, essa vontade absurda de pensar pela razão — tão absurda que não aceitam as evidências históricas como fato irrefutável da não adulteração. Aliás, devemos nomeá-los como tal: negacionistas, de modo que sejam desmoralizados onde quer que falem e não despertem a curiosidade de ninguém.

Ficam, assim, definidos alguns passos a serem seguidos para o restabelecimento da Verdade, segundo o CSI do Espiritismo:

  • Utilizar todo espaço possível, nas redes sociais e nos canais do Youtube, para afirmar que todos os argumentos contrários foram vencidos, sem nenhuma intenção de diálogo.
  • Escrever documentos e artigos mostrando uma série de evidências materiais que corroboram a tese, digo, a prova evidencial da Verdade — novamente, sem cogitar de apresentar argumentos contrários.
  • Escrever artigos que desmereçam autores e ideias em contraste à posição do Ministério do CSI do Espiritismo, sem se aventurar a conhecê-los, o que é óbvio, e sem nenhuma preocupação em cometer falácias. Lembre-se: tudo pelo Bem!
  • Criar espaços para estudos. Do Espiritismo? Não. De seu contexto científico? Muito menos! Para estudar as cartas antigas e investigar quem foram os médiuns que Kardec insistentemente dizia que não deviam ser colocados em relevância.
  • Ante qualquer discussão sobre a forma de ação do Ministério da Verdade, conduzir rápida e habilmente o assunto para a questão da adulteração, onde temos o total controle, já que o outro lado, já desmoralizado pelo enquadramento no negacionismo, não poderá sustentar fiabilidade ante o público.

Dizem eles que manchamos a imagem de Kardec e o próprio Espiritismo ao agir assim. Ora, a busca é pela Verdade, e tudo aquilo que sustente aquilo que temos como certeza, desde o início, deve ser exaltado, doa a quem doer. Mas chega desse assunto, pois não o discutiremos mais, agora que estamos de posse da Verdade Inquestionável.


Prezado leitor,

É claro que, se você estuda Kardec e nos acompanha, notou que o texto é apenas uma crítica, em tom de sátira, ao comportamento absurdo adotado por algumas pessoas que decidiram tomar, para elas, a verdade, deixando fatos importantes de lado. Sinto por ter te feito ler tudo isso. De nossa parte, não desejamos impor a nossa verdade ou as nossas conclusões. Deixamos a cada um a liberdade de julgar por si mesmo, de posse de evidências e fazendo uso da própria razão. O que nos entristece é que muitos, deixando-se conduzir, abstraem-se totalmente de conhecer obras como as de Paulo Henrique de Figueiredo e de Simoni Privato, que têm trazido uma contribuição ímpar para a compreensão do Espiritismo.

Qual é o cerne da questão, enfim? É que a 5.ª edição, com alterações, tem depósito legal realizado apenas em 1872. Isso, legalmente, configura adulteração. O restante, as evidências encontradas pelo “CSI do Espiritismo”, apontam apenas para o fato de que Kardec preparava uma nova versão, mas não prova que essa versão chegou a ser impressa. Constituem inferências forçadas todos os esforços no sentido de apontar que aquele único exemplar encontrado na Suíça corresponde a essa nova edição, apenas porque corresponde ao exemplar referente ao depósito legal de 1872, da 5.ª edição, feito por Leymarie. Esse é o ponto.

O que temos por segurança, sem nenhuma sombra de dúvida: Kardec realizou uma edição de A Gênese, da qual encomendou quatro reimpressões, sendo que cada uma delas configurava uma nova edição, embora iguais à primeira. A prova disso está no fato de ele não ter realizado depósito legal para as demais edições.

Também é um fato que Kardec preparava uma nova edição dessa obra e de O Céu e o Inferno. Mas não existe prova que de ele as concluiu, sendo outra inferência forçada afirmar que o pedido de reimpressão de dois mil exemplares de A Gênese, feito em fevereiro de 1869, refira-se à impressão dessa nova edição. Pode ser que sim, pode ser que não. Se sim, pode ser que essa edição tenha sido destruída, para, então, alguém realizar uma adulteração. Para o argumento sobre o tempo hábil para fazê-lo, basta lembrar que, naquele tempo, as pessoas tinham muito mais tempo que nós temos hoje e que, além disso, não existe prova de que a versão adulterada não tenha sido impressa apenas mais tarde; para o argumento da necessidade de convencimento do impressor, basta supor que seria necessário apenas dizer, por exemplo, que foi um pedido de Kardec, feito pouco antes de morrer, e que, não sendo aquilo uma edição final, mas apenas uma edição para avaliação e correções, não seria necessário o depósito legal (o que é um fato).

Um ponto importante, aliás: qual é o sentido de Kardec mudar o título de sua obra (A Gênese), inserindo o subtítulo “revisada, corrigida e aumentada”, se nunca fez isso antes, para nenhuma das outras obras? A meu ver, mais parece algo feito, por um adulterador, no sentido de reforçar que aquela edição seria uma importante “alteração”.

A comunicação espiritual, onde o Espírito afirma, através do médium Sr. M. Desliens, que Kardec não deveria remover nada, mas apenas condensar aquilo que possivelmente tenha ficado claro em outros pontos (que você pode conferir aqui), foi adulterada por P. G. Leymarie, quando foi incluída com cortes e alterações em Obras póstumas, organizada por ele, e publicada em 1890: segunda parte, capítulo: “A minha iniciação no Espiritismo”, item: “Minha nova obra sobre A Gênese” (onde “Minha” seria uma referência a Kardec, falando de si mesmo).

Ora, por que essa sanha de Leymarie em dar suporte, por intermédio de uma flagrante adulteração, à ideia de que a 5.ª edição de A Gênese foi produzida por Kardec?

Enfim, deixemos cada um a seu tempo e as suas escolhas, mas não nos ausentemos de apresentar a real proposta da ciência espírita, totalmente autônoma e libertadora e, conforme concluímos, muito afastada dos conceitos transformados em “Código Penal da Vida Futura”, naquilo que, para nós, somente pode ser configurado como uma adulteração.

Fato é que Carlos Seth, na busca por tudo o que possa suportar sua ideia, tem distorcido, ele mesmo, ideias e palavras, utilizando de falácias e argumentos lógicos, algumas vezes inválidos, para forçar conclusões. Foi leviano e deselegante ao afirmar, com grande desconhecimento, que “certo autor” estaria provocando uma divisão no Espiritismo, “agora no campo moral”, ao trazer, para dentro da Doutrina, o Espiritualismo Racional (já tratamos disso no artigo Espiritualismo Racional e Espiritismo – uma nova divisão no meio Espírita?) e é igualmente deselegante ao utilizar seus meios de comunicação para denegrir aqueles que, pela razão e pelos fatos, concluem diferentemente dele, imputando a eles os termos “negacionistas”.

Ademais, apresentamos um argumento final: o próprio Carlos Seth afirma que não tem prova de que as obras não foram adulteradas. Resta, portanto, espaço para alguma dúvida e, assim sendo, não seria muito mais prudente ficar com a primeira edição dessas obras, de quando Kardec era vivo, onde temos a total confiança de que tudo, absolutamente tudo o que existe ali, foi produzido por suas mãos? Isso, é claro, sem tratarmos as outras edições como inexistentes, pois elas servem, a nosso ver, justamente para demonstrar o tom das alterações e o que foi que elas removeram ou inseriram no pensamento de Kardec.

Deixamos ao leitor a reflexão.




Umbral e a base doutrinária

“O que é umbral?”; “quem vai para o umbral?”; “qual é o significado de umbral?”; “o que o Espiritismo diz do umbral?”. Os adeptos do movimento espírita estão tão preocupados com algo que, em verdade, não tem razão de ser – não como eles imaginam que seja.

Penso que se perde muito tempo sobre esse assunto, o “Umbral”, que é ponto pacífico na Doutrina (portanto, resultado do método científico de pesquisa): não passa de criação mental de Espíritos apegados, em sofrimento, quando não são ideias intencionalmente cultivadas e transmitidas com o fim de atrasar. Tanto isso é fato, que, antes do Espiritismo, o Espírito se diria sofrendo no fogo do inferno e, antes do catolicismo, diria estar no Tártaro. Não são locais, são estado de alma e, se você busca fazer o bem, com todas as suas forças e com todo o seu entendimento, não deve se preocupar com esse sofrimento moral.

Portando, a pergunta “o que é o umbral” fica assim respondida: é uma alegoria, uma figura de linguagem, representando um estado de alma. Também pode ser uma alegoria para representar essa camada espiritual mais densa, dos Espíritos mais ligados à matéria. Esse é o significado de “umbral” e, “quem vai para o umbral”, é todo aquele que esteja apegado às imperfeições, à materialidade, sabendo, contudo, que essa é uma ideia alegórica para ilustrar um estado anterior.

Quando se foca no que se quer, por ideias prévias, deixa-se passar os detalhes importantes da obra. Eis o que vamos demonstrar. Este é um trabalho simplório de análise do artigo “Umbral, há base doutrinária para sustentá-lo?”, de Paulo da Silva Neto Sobrinho, por Paulo Degering Rosa Junior.

O estudo de Paulo Neto sobre o umbral

No estudo apresentado por Paulo Neto, “Umbral, há base doutrinária para sustentá-lo?”, há alguns problemas iniciais. Verifiquemos, por exemplo, as diferenças muito sensíveis entre a primeira edição de O Céu e o Inferno e a edição utilizada por ele. Na primeira edição:

Na maioria dos casos, ele é infeliz neste mundo por sua própria culpa, mas, se é imperfeito, é porque já o era antes de vir para a Terra, onde expia não apenas as faltas atuais, mas as faltas anteriores que não foram reparadas, sofre numa vida de provas o sofrimento imposto a outros numa outra existência. As vicissitudes que o homem experimenta são simultaneamente um castigo temporário e uma advertência quanto às imperfeições de que se deve desfazer para evitar desditas futuras e progredir para o bem.

KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno, 1868 (edição original).

Já na edição citada por Paulo Neto:

[…] Na maior parte das vezes ele [o homem] é infeliz por sua própria culpa; porém, se é imperfeito, é porque já o era antes de vir à Terra, expiando não somente faltas atuais, mas faltas anteriores não reparadas. Sofre em uma vida de provações o que fez sofrer a outrem em anterior existência. As vicissitudes que experimenta são, ao mesmo tempo, uma correção temporária e uma advertência quanto às imperfeições que lhe cumpre eliminar de si, a fim de evitar males futuros e progredir para o bem. […].

NETO, Paulo. Umbral: Há base doutrinária para sustentá-lo?. Disponível em: http://www.paulosnetos.net/artigos/send/6-ebook/806-umbral-ha-base-doutrinaria-para-sustenta-lo. Acesso em: 20 abr. 2023.

Consegue notar que a diferença no emprego do verbo expiar causa toda uma mudança de ideias? Na primeira versão, de Kardec, é claro que o homem expia na Terra. Na versão utilizada por Neto, é possível depreender que a expiação começa antes de vir à Terra, o que não seria verdade, segundo as conclusões doutrinárias.

Não só: essa edição, de Paulo Neto, não condiz nem sequer com a 4a edição em francês, já adulterada:

Le plus souvent, il est malheureux ici-bas par sa propre faute ; mais s’il est imparfait, c’est qu’il l’était avant de venir sur la terre ; il y expie non seulement ses fautes actuelles, mais les fautes antérieures qu’il n’a point réparées ; il endure dans une vie d’épreuves ce qu’il a fait endurer aux autres dans une autre existence. Les vicissitudes qu’il éprouve sont à la fois un châtiment temporaire et un avertissement des imperfections dont il doit se défaire pour éviter les malheurs futurs et progresser vers le bien.


Na maioria das vezes, ele é infeliz aqui embaixo por sua própria culpa; mas se ele é imperfeito, é porque o era antes de vir à terra; ele expia ali não apenas suas faltas atuais, mas as antigas faltas que não reparou; ele suporta em uma vida de provações o que fez os outros suportarem em outra existência. As vicissitudes que ele experimenta são ao mesmo tempo um castigo temporário e um aviso das imperfeições das quais ele deve se livrar para evitar futuros infortúnios e progredir para o bem.

KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno ou A Justiça Divina Segundo o Espiritismo. 4ª ed. Rio de Janeiro: FEB, 2019. Disponível em: https://kardecpedia.com/roteiro-de-estudos/886/o-ceu-e-o-inferno-ou-a-justica-divina-segundo-o-espiritismo. Acesso em: 20 abr. 2023.

É evidente notar que Kardec, na primeira edição e também na quarta, reafirma que a expiação se dá na Terra, e depreender o contrário seria supor que o Espírito expie, materialmente, no mundo espiritual, o que está intrinsecamente ligado às ideias de inferno, purgatório, umbral e etc.

Sigamos.

Revista Espírita

Um dos artigos mais interessantes da RE é o “Sobre os Espíritos que se creem ainda vivos”, da Revista Espírita de 1864:

Nem tudo é prova na existência; a vida do Espírito continua, como já vos foi dito, desde seu nascimento até o infinito; para uns, a morte não é senão um simples acidente que não influi em nada sobre o destino daquele que morre. Uma telha caída, um ataque de apoplexia, uma morte violenta, muito frequentemente, não fazem senão separar o Espírito de seu envoltório material; mas o envoltório perispiritual conserva, pelo menos em parte, as propriedades do corpo que acaba de sucumbir. Num dia de batalha, se eu pudesse vos abrir os olhos que possuis, mas dos quais não podeis fazer uso, veríeis muitas lutas continuarem, muitos soldados subir ainda ao assalto, defender e atacar os redutos; vós os ouviríeis mesmo produzir seus hurras! e seus gritos de guerra, no meio do silêncio e sob o véu lúgubre que segue um dia de carnagem; o combate acabou, eles retornam aos seus lares para abraçar seus velhos pais, suas velhas mães que os esperam. Algumas vezes, esse estado dura muito tempo para alguns; é uma continuação da vida terrestre, um estado misto entre a vida corpórea e a vida espiritual. Por que, se foram simples e sábios, sentiriam o frio do túmulo? Por que passariam bruscamente da vida para a morte, da claridade do dia à noite? Deus não é injusto, e deixa aos pobres de Espírito esse gozo, esperando que vejam seu estado pelo desenvolvimento de suas próprias faculdades, e que possam passar com calma da vida material à vida real do Espírito.

Temos, em O Livro dos Espíritos, a conhecida questão 1012, que, a meu ver, Neto desconsiderou em total para focar apenas em “já respondemos essa pergunta”, fazendo uma suposição de que ela se referiria à questão 87. Essa questão, por sua vez, interpretou como quis, não levando em consideração a linguagem muitas vezes figurativa utilizada pelos Espíritos:

1012. Haverá no universo lugares circunscritos para as penas e gozos dos Espíritos, segundo seu merecimento? “Já respondemos a essa pergunta. As penas e os gozos são inerentes ao grau de perfeição dos Espíritos. Cada um tira de si mesmo o princípio de sua felicidade ou de sua desgraça. E como eles estão por toda parte, nenhum lugar circunscrito ou fechado existe especialmente destinado a uma ou outra coisa. Quanto aos encarnados, esses são mais ou menos felizes ou desgraçados, conforme seja mais ou menos adiantado o mundo em que habitam.”

a) — De acordo, então, com o que vindes de dizer, o inferno e o paraíso não existem, tais como o homem os imagina?

“São simples alegorias: por toda parte há Espíritos ditosos e desditosos. Entretanto, conforme também já dissemos, os Espíritos de uma mesma ordem se reúnem por simpatia; mas podem reunir-se onde queiram, quando são perfeitos.”

A localização absoluta das regiões das penas e das recompensas só na imaginação do homem existe. Provém da sua tendência a materializar e circunscrever as coisas, cuja essência infinita não lhe é possível compreender.

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 1ª ed. Rio de Janeiro: FEB, 2019. Disponível em: https://kardecpedia.com/roteiro-de-estudos/2/o-livro-dos-espiritos. Acesso em: 20 abr. 2023.

87. Ocupam os Espíritos uma região determinada e circunscrita no espaço?

“Estão por toda parte. Povoam infinitamente os espaços infinitos. Vós os tendes de contínuo a vosso lado, observando-vos e sobre vós atuando, sem o perceberdes, pois que os Espíritos são uma das potências da natureza e os instrumentos de que Deus se serve para a execução de seus desígnios providenciais. Nem todos, porém, vão a toda parte, pois há regiões interditas aos menos adiantados.”

Recorrendo à questão 87, note: “Os Espíritos estão por toda parte. Povoam infinitamente os espaços infinitos”. Espaço não é Universo. O Espaço é infinito; o Universo, não. Universo é material, cíclico, tem começo e tem fim, assim como a matéria. O Espaço, não.

Quando, ao final, ele assevera que “há regiões interditas aos menos adiantados“, Neto tomou uma frase figurativa por uma frase literal. Ainda assim, se considerarmos o fato de que os menos adiantados não se desprendem do cenário material com facilidade, podemos facilmente supor a dificuldade de viver em regiões materiais que dão lugar a encarnações de Espíritos mais adiantados.

De volta à RE, temos em 1858, “O Tambor de Berezina”:

28. ─ Vês outros Espíritos ao teu redor?

─ Sim, muitos.

29. ─ Como sabes que são Espíritos?

─ Entre nós, vemo-nos tais quais somos.

30. ─ Com que aparência os vês? ─ Como se podem ver Espíritos, mas não pelos olhos.

31. ─ E tu, sob que forma aqui estás?

─ Sob a que tinha quando vivo, isto é, como tambor.

32. ─ E vês os outros Espíritos com as formas que tinham em vida?

─ Não. Nós não tomamos uma aparência senão quando somos evocados. Fora disso vemo-nos sem forma.

Ainda no mesmo ano, em “Palestras de além-túmulo — Senhora Schwabenhaus. Letargia Extática”:

29. ─ Sob que forma estais entre nós?

─ Sob minha última forma feminina.

30. ─ Vós nos vedes tão distintamente quanto se estivésseis viva?

─ Sim. 31. ─ Desde que aqui vos encontrais com a forma que tínheis na Terra, é pelos olhos que nos vedes?

Não, o Espírito não tem olhos. Só me encontro sob minha última forma para satisfazer às leis que regem os Espíritos quando evocados e obrigados a retomar aquilo a que chamais perispírito.

Na Revista Espírita de março de 1860, Kardec, conversando (via médiuns) com três Espíritos distintos, questiona um deles, o Espírito de Charles Dupont, aquele envolvido na “História de um Danado”, Espírito inferior, bastante atrasado e muito ligado ainda à matéria. Kardec pergunta sobre como ele vê o Espírito do Dr. Vignal, pessoa viva, evocado para aquele estudo:

53. ─ Vedes o Espírito do doutor, com o qual conversamos?

─ Sim.

54. ─ Como o vedes?

─ Vejo-o com um envoltório menos transparente que o dos outros Espíritos.

55. ─ Como percebeis que ele ainda está vivo?

Os Espíritos comuns não têm forma aparente. Este tem uma forma humana; está envolto numa matéria semelhante a uma névoa, que repete sua forma humana terrena. O Espírito dos mortos não tem mais esse envoltório, pois está desprendido dele.

Ou seja: os Espíritos continuam afirmando que, para eles, a forma não é nada. No último caso, o Espírito de Charles Dupont, sendo inferior, ele mesmo afirma o mesmo princípio: os Espíritos comuns (desapegados) não têm forma aparente. Kardec percebe, baseado em tudo isso, que, quando afirmam em contrário, estão em estado de sofrimento. Sempre. O grande erro, me permita repetir, é querer dizer que, fora do estudo metodológico, basta colher algo que se diga em todo canto e isso se torna verdadeiro. Fosse assim, deveríamos incluir duendes, fadas e sereias na Doutrina Espírita.

Não basta e não podemos simplesmente acreditar nos Espíritos

Daí em diante, Paulo Neto passa a catalogar diversas afirmações de Espíritos, após Kardec — dentre eles André Luiz — e outras conclusões de Espíritas ou Espiritualistas que, colocando de lado a Doutrina, ficaram com suas conclusões parciais.

É um problema muito grande pressupor que basta a comunicação universal dos Espíritos para a aceitação de uma nova ideia doutrinária. Não: ela deve também atender à razão e respeitar aquilo que já foi galgado pelo mesmo método. Assim, quando muita gente lê um livro que fala em “umbral”, muita gente passa a aceitar essa ideia, que se torna ilusão no pós morte; que se torna ilusão em “desdobramentos”; que o médium insere, enfim, pelas próprias ideias, ao traduzir um pensamento de um Espírito, durante uma comunicação.

É notável constatar que, no meio espírita, existe grande preocupação se, ao morrer, vai-se para “Nosso Lar” ou para o “Umbral”. Como “Nosso Lar” não poderia suportar bilhões de Espíritos em seus leitos e lares, logo surgiram centenas de novas “colônias”, cada uma situada, asseveram, sobre certas cidades ou regiões da Terra. O espírita deixou de estar preocupado com sua moral, mediante seu progresso espiritual, para estar preocupado se será castigado com o umbral ou premiado com uma cama confortável e sopa quente em Nosso Lar ou em outra “colônia” qualquer!

Neto interpreta de forma incorreta os conceitos de expiação e punição. Digo isso com segurança, porque Kardec e os Espíritos estavam se utilizando de conceitos presentes naquela época, galgados no Espiritualismo Racional, para se expressarem.

Quando o autor cita o artigo “O Dia de Todos-os-Santos”, na RE de 1862, temos um trecho destacado em negrito: “[…] infelizes Espíritos que suportam as angústias da punição e do isolamento”. Acontece que “punição” era considerada a consequência legítima do mal, e não uma ação externa de uma força punitiva. A punição do pai irresponsável, por exemplo, é ver seu filho amado seguir um mau caminho. Se o pai é responsabilizado pela justiça humana e preso por sua irresponsabilidade, isso, talvez, para ele não signifique absolutamente nada, frente à real punição que ele próprio sofre. A punição não é algo externo, imposto, senão pela decorrência da Lei natural. Entendemos, assim, o Espiritismo sob outro ponto de vista, muito mais congruente.

Por não entender essa ideia fundamental, Neto infere que sofrimento ou prazer, no mundo espiritual, é uma condição externa, materialista, como já demonstrei.

Em seguida, Neto dá enfase ao trecho seguinte:

“Meu caro irmão, que horríveis tormentos para todos esses [aqueles que escolheram o caminho do materialismo]! É exatamente como diz a Escritura: “Haverá choro e ranger de dentes”. Eles serão mergulhados no abismo profundo das trevas. Esses infelizes são vulgarmente chamados os danados e, posto seja mais exato chamá-los os punidos, nem por isso sofrem menos as terríveis torturas que se atribuem aos danados em meio às chamas. Envoltos nas mais espessas trevas de um abismo que lhes parece insondável, posto não seja circunscrito, como vos ensinam, experimentam sofrimentos morais indescritíveis, até abrirem o coração ao arrependimento.”

Nesse trecho, Neto se atém à ideia de “abismo profundo de trevas”, sem se atentar para o fato de que esse abismo, se lhes parece insondável e não é circunscrito, não pode existir senão como criação mental de Espíritos sofredores, sendo, portanto, efêmero. Evoquemos esses Espíritos e lhes auxiliemos a entender que suas dores são morais, e não físicas, e desaparecem os abismos, a lama, etc., para dar lugar à consciente compreensão de seu estado, à reflexão e, por conseguinte, à escolha pela expiação, onde terão a nova oportunidade de trabalharem sobre seus apegos passados.

Você sabia que existem Espíritos que se colocam em tais circunstâncias por terem cometido um erro e por acreditarem na Doutrina do Pecado? Sim. Pode, por exemplo, um indivíduo ter matado outro, porque acreditou que o outro vinha lhe tirar a vida. Crê que isso é um pecado e, assim, se submete mentalmente a esse sofrimento, que externaliza em criações fluídicas (que não são matéria como a nossa, mas, sim, algo muito mais sutil, formada pela “condensação” do Fluido Cósmico Universal). Faça-o entender que esse aparente erro nasceu de uma reação instintiva; que Deus não pune; que ele pode buscar, em novas vidas, trabalhar esse instinto, para dominá-lo pela vontade; que, enfim, aquele que ele matou não tem nada contra ele, pois entende seu erro, e esse Espírito se desvencilhará de tais ideias, realmente perturbadoras.

O próprio André Luiz deixa isso transparecer quando cita o caso da moça que, havendo morrido, seu Espírito não queria sair de dentro do caixão, pois acreditava que o próprio Cristo viria lhe tirar dali, submetendo-a ao julgamento.

No mais, o autor, por uma ideia prévia, adota um paradigma que o leva a entender todos os exemplos dados segundo o que lhe convém. Ao citar “esferas espirituais”, “camadas espirituais”, não percebe que se trata de uma linguagem figurada e, nesse último caso, em referência à classificação dos Espíritos por “camadas”, como é feito na Escala Espírita. Aliás, isso está bem claro na questão nº 1017 de OLE, que o prezado Paulo Neto não incluiu em sua apreciação (grifos meus):

1017 [1016]. Alguns Espíritos disseram estar habitando o quarto, o quinto céus, etc. Que queriam dizer com isso?

“Se lhes perguntais que céu habitam, é que formais ideia de muitos céus dispostos como os andares de uma casa. Eles, então, respondem de acordo com a vossa linguagem. Mas por estas palavras quarto e quinto céus exprimem diferentes graus de purificação e, por conseguinte, de felicidade. É exatamente como quando se pergunta a um Espírito se está no inferno. Se for desgraçado, dirá sim, porque, para ele, inferno é sinônimo de sofrimento. Sabe, porém, muito bem que não é uma fornalha. Um pagão diria estar no Tártaro.”

O mesmo ocorre com outras expressões análogas, tais como: cidade das florescidade dos eleitos, primeira, segunda ou terceira esfera, etc., que apenas são alegorias usadas por alguns Espíritos, quer como figuras, quer, algumas vezes, por ignorância da realidade das coisas, e até das mais simples noções científicas.

Quando se foca no que se quer, por ideias prévias, deixa-se passar os detalhes importantes da obra.

A Condessa Paula – O Céu e o Inferno

Muita gente usa o caso desse Espírito, da Condessa Paula, apresentado em O Céu e o Inferno, para dar base às suas teorias de “cidades astrais”.

O que são os vossos palácios e os vossos salões dourados ante as moradas aéreas, o vasto campo do espaço matizado de cores que fariam empalidecer o arco-íris? Que são os vossos passeios passo a passo nos parques, ante a viagens através da imensidão, mais rápidas do que o relâmpago? O que são os vossos horizontes limitados e carregados de nuvens, ante o grandioso espetáculo dos mundos a se moverem no universo sem limites, sob a poderosa mão do Altíssimo?

Como os vossos concertos mais melodiosos são tristes e ruidosos, ante esta harmonia que faz vibrar os fluidos do éter e todas as fibras da alma? Como as vossas grandes alegrias são tristes e insípidas ante a inefável sensação de felicidade que incessantemente satura o nosso ser à maneira de um eflúvio benfazejo, sem nenhuma mescla de inquietação, nenhuma preocupação, nenhum sofrimento! Aqui tudo respira amor e confiança e sinceridade. Por toda parte corações amantes, por toda parte vemos amigos, nada de invejosos e ciumentos. Esse é o mundo em que me encontro, meu amigo, e todos vós o atingireis infalivelmente seguindo o caminho certo.

Infelizmente, muitos param nas leituras dos pontos que lhes interessam. Quando o Espírito fala em “moradas aéreas”, pronto, isso já é suficiente para afirmarem que ela falava das cidades espirituais! A que ponto levam os vieses adotados com pressa…

Logo em seguida à citação de “moradas aéreas”, ele continua:

[…] o vasto campo do espaço matizado de cores que fariam empalidecer o arco-íris? Que são os vossos passeios passo a passo nos parques, ante a viagens através da imensidão, mais rápidas do que o relâmpago? O que são os vossos horizontes limitados e carregados de nuvens, ante o grandioso espetáculo dos mundos a se moverem no universo sem limites, sob a poderosa mão do Altíssimo?

Esse Espíritos está falando do Espaço! Não está falando de cidades astrais, mas do Espaço! “Moradas aéres” é uma linguagem figurada para dizer do Espaço, “acima” de nós!

Ela continua:

Entretanto uma felicidade uniforme logo aborreceria. Não penses que a nossa felicidade esteja livre de vicissitudes. Não se trata de um concerto perpétuo, nem de uma festa sem fim, nem de beatífica contemplação através da eternidade. Não. É o movimento, a vida, a atividade. As ocupações, embora isentas de fadigas, apresentam incessante variedade de aspectos e de emoções, pelos mil incidentes que as continham. Cada qual tem a sua missão a cumprir, seus protegidos a assistir, amigos da Terra a visitar, processos da Natureza a dirigir, almas sofredoras a consolar. Há um vaivém, não de uma rua para outra, mas de um mundo para outro. As criaturas se reúnem, se separam para novamente se juntarem; encontram-se aqui e ali, conversam sobre o que fazem, felicitam-se pelos sucessos obtidos; entendem-se, assistem-se mutuamente nos casos difíceis. Enfim, asseguro-te que ninguém dispõe de um segundo de tempo para se enfadar.

O que existe “do lado de lá”, para os Espíritos desapegados, é a atuação na criação divina! É o trânsito pelo Espaço infinito, onde se reúnem, aqui e ali, com outros Espíritos, para atuar nos processos da Natureza, no consolo às almas sofredoras, encarnadas e desencarnadas! É isso, e não uma vida limitada por paredes e falsas necessidades fisiológicas!

Conclusão

É importante destacar, porém, que, se tais criações existem, é porque Deus permite. Na verdade, isso é algo ligado à própria benevolência divina, que garante, a cada um, o desenvolvimento gradual e sem choques. No artigo “Sobre os Espíritos que se creem ainda vivos”, da Revista Espírita de 1864, consta uma importante comunicação espiritual, da qual tiramos o seguinte trecho:

Nem tudo é prova na existência; a vida do Espírito continua, como já vos foi dito, desde seu nascimento até o infinito; para uns a morte não é senão um simples acidente que não influi em nada sobre o destino daquele que morre. Uma telha caída, um ataque de apoplexia, uma morte violenta, muito frequentemente, não fazem senão separar o Espírito de seu envoltório material; mas o envoltório perispiritual conserva, pelo menos em parte, as propriedades do corpo que acaba de sucumbir. Num dia de batalha, se eu pudesse vos abrir os olhos que possuis, mas dos quais não podeis fazer uso, veríeis muitas lutas continuarem, muitos soldados subir ainda ao assalto, defender e atacar os redutos; vós os ouviríeis mesmo produzir seus hurras! e seus gritos de guerra, no meio do silêncio e sob o véu lúgubre que segue um dia de carnagem; o combate acabou, eles retornam aos seus lares para abraçar seus velhos pais, suas velhas mães que os esperam. Algumas vezes, esse estado dura muito tempo para alguns; é uma continuação da vida terrestre, um estado misto entre a vida corpórea e a vida espiritual. Por que, se foram simples e sábios, sentiriam o frio do túmulo? Por que passariam bruscamente da vida para a morte, da claridade do dia à noite? Deus não é injusto, e deixa aos pobres de Espírito esse gozo, esperando que vejam seu estado pelo desenvolvimento de suas próprias faculdades, e que possam passar com calma da vida material à vida real do Espírito.

Vemos, portanto, que a existência de tais “lugares” é um fato, permitido pela benevolência divina, àqueles que ainda não estão desenvolvidos para compreender algo acima e fora da matéria e das necessidades materiais.

Lembramos aquilo que está estampado em nossa página inicial:

Generalidade e concordância no ensino, esse o caráter essencial da doutrina, a condição mesma da sua existência, donde resulta que todo princípio que ainda não haja recebido a consagração do controle da generalidade não pode ser considerado parte integrante dessa mesma doutrina. Será uma simples opinião isolada, da qual não pode o Espiritismo assumir a responsabilidade.

Essa coletividade concordante da opinião dos Espíritos, passada, ao demais, pelo critério da lógica, é que constitui a força da doutrina espírita e lhe assegura a perpetuidade.Allan Kardec – A Gênese

Kardec deu o guia seguro para o método de pesquisa, frequentemente apresentando-o na RE. Atuais resgates da ciência de então permitem aprofundar esse conhecimento. O espírita precisa aprender a estudar, do mesmo jeito que, quem não estuda as Ciências, termina acreditando em teorias como as da Terra plana. Defendo que o mais interessante é retomar Kardec, entender a ciência espírita (o que depende de entendimento científico de seu contexto e da atualidade) e, então, retomar o contato com os Espíritos. Havendo desapego de ideias próprias e o firme propósito de pesquisa, será muito fácil retomar o passo, desanuviando essa confusão causada no Movimento Espírita com um único propósito: atraso do progresso moral.




A distância entre o Espiritismo e o Movimento Espírita

Uma correspondente questionou a respeito do que seria essa suposta distância, por nós sempre afirmada, entre a Doutrina Espírita e o Movimento Espírita.

A ela, podemos responder desta forma, para exemplificar para todos:

“B…, isso é algo que cada um precisa realmente estudar ou buscar se informar, principalmente sobre as obras citadas ((

  • No sentido das alterações doutrinarias: O Legado de Allan Kardec, de Simoni Privato; Nem Céu Nem Inferno, de Paulo Henrique de Figueiredo; Ponto Final, de Wilson Garcia
  • No sentido do conhecimento sobre o contexto doutrinário: Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo, de Paulo Henrique de Figueiredo;
  • No entendimento real da Doutrina, na essência proposta por Kardec, através dos estudos: O Céu e o Inferno e A Gênese, ambos da editora FEAL, pois os outros são as versões adulteradas, ainda.)) , porque compreender e, daí, assumir novo posicionamento, precisa ser uma ação autônoma. Contudo, posso ressaltar algumas diferenças capitais entre Doutrina Espírita (DE) e Movimento Espírita atual (ME):

  • Evocações dos espíritos: DE foi formada sobre elas e demonstrou a necessidade de serem realizadas, com método, para continuar seu desenvolvimento; ME recomenda não fazer, provocando uma onda de médiuns que ficam apenas “à disposição”, portanto, sem controle nem objetivo de aprendizado.
  • Generalidade do ensino: DE demonstrou a necessidade de desenvolver o estudo espírita através do método do duplo controle: universalidade e concordância do ensino e julgamento racional; ME, contagiada por Roustaing, que via um perigo nesse método (que desmentiria suas teorias), passou a tomar comunicações isoladas como expressão da verdade, sem raciocinar.
  • Vida do Espírito na erraticidade: DE demonstrou que emoções e sensações físicas somente existem para o Espírito apegado; ME passou a ensinar um mundo espiritual totalmente materializado, criando, assim, ideias de apego nocivas ao Espírito que desencarna.
  • Necessidade da encarnação: DE demonstrou que a encarnação é uma necessidade para o progresso do Espírito, na qual ele, mesmo que involuntariamente, faz seu papel solidário na criação. Afastou os conceitos de castigo e punição como uma ação arbitrária de Deus, demonstrando que tudo é fruto da escolha do Espírito consciente; ME, sob influência roustainguista, inseriu os falsos conceitos de carma, resgate, lei de ação e reação e lei do retorno.
  • Heteronomia x autonomia: DE demonstrou, em toda ela, que o Espírito se desenvolve de forma autônoma, sendo ele o autor primeiro, senão o único, de suas escolhas; ME, influenciada por Roustaing, passou a tratar da vida de forma heterônoma – se sofro é porque estou recebendo o retorno; se tenho alegria é porque fui abençoado, etc.
  • Caridade: DE demonstrou que a caridade é uma ação desinteressada, fruto do dever do Espírito que, conscientemente, se move em direção ao bem; ME passou a tratar da caridade como uma ação externa, quase sempre apenas material. Por ausência de estudos da DE, ME deixa de fazer o bem que poderia fazer para auxiliar no desenvolvimento da sociedade pelas ideias espíritas.
  • Moral: DE demonstrou que, todos criados simples e ignorantes, os Espíritos se desenvolvem errando e acertando, através das encarnações, escolhendo entre agir desta ou daquela forma. Não há dualidade entre bem e mal. Alguns escolhem repetir o erro, desenvolvendo imperfeições das quais muito custarão a se desvencilhar, através do trabalho reencarnatório, em uma ação consciente e autônoma; ME, influenciada por Roustaing, passou a tratar da encarnação como um castigo, como se todos os Espíritos que encarnam fossem imperfeitos.
  • Método: DE sempre demonstrou a forma como ela própria se desenvolveria: pelo estudo das ciências humanas, confrontadas, pela razão, com os ensinamentos espíritas, na troca de informações com grupos idôneos espalhados por todo o mundo; já a ME praticamente não estuda os fundamentos da DE, se isolou nos centros em rotinas que compreendem: monólogos, quase sempre recheados de todos os erros apontados anteriormente; passes, sem conhecimento do magnetismo; e sessões mediúnicas que, sem método e sem estudos, perdem o propósito e a utilidade que realmente poderiam ter.

E por aí vai.”

Vemos que as diferenças entre a Doutrina Espírita, em sua origem, e o que hoje professa ou acredita o Movimento Espírita, são profundas e, quase sempre, danosas à propagação da Doutrina. Cabe, portanto, o esforço voluntário de cada um no estudo honesto e desapegado, bem como na divulgação fraterna e cooperativa do conhecimento.

Complementando as obras citadas, não podemos deixar de apontar a necessidade do estudo da Revista Espírita, que demonstra como se deu a formação da Doutrina Espírita.




A moral autônoma e a moral heterônoma

Vivemos em um mundo até agora dominado pelos conceitos de heteronomia. Para bem entender esse conceito, precisamos analisar a etimologia da palavra: heteronomia é formada do radical grego “hetero” que significa “diferente”, e “nomos” que significa “lei”, portanto, é a aceitação de normas que não são nossas, mas que reconhecemos como válidas para orientar a nossa consciência que vai discernir o valor moral de nossos atos. Esse entendimento é fundamental, pois entender a moral autônoma faz total diferença no entendimento do Espiritismo.

O mundo heterônomo

No mundo heterônomo, nós atribuímos tudo a algo externo: a culpa está no diabo ou no obsessor, o efeito está na ira divina e a reparação está na imposição carmática. Tudo, absolutamente tudo no mundo heterônomo, vem como imposição externa, através de leis que respeitamos por obrigação, e não por entendimento. E na ausência dela ou de seus atores, nos vemos sem limites e sequer sem amor-próprio.

A heteronomia é algo inerente e talvez mesmo necessário a uma condição de pouco avanço espiritual, quando, sem o entendimento mais profundo dos mecanismos da vida e da evolução, somos forçados a atender, por medo, às imposições de leis divinas, humanizadas, ou mesmo das leis humanas, divinizadas. Infelizmente, como já sabemos, também é algo extensamente utilizado pelas religiões para manter o controle sobre seus fieis. Mas isso é algo que, conforme podemos constatar, vai se modificando conforme o avanço do Espírito humano, tanto em ciência quanto em moralidade.

Um grande problema do conceito da heteronomia, ou, antes, da crença nele, é que ele entrava por certo tempo a evolução do Espírito: ora, se o indivíduo acredita que suas dificuldades na vida são um castigo imposto por Deus, ele apenas aceita seus efeitos, de forma submissa (o que, sim, é importante), mas sem fazer nada para se modificar. Aguarda apenas o fim de suas provações. Nem mesmo a caridade pode ser realmente entendida e praticada em um contexto heterônomo, pois o indivíduo pratica a caridade esperando um retorno, sem entender que ela é uma obrigação moral e natural do ser pensante.

Outro ponto muito problemático é que quando o indivíduo acredita no castigo divino — e, pior ainda, no castigo eterno — é muito comum que perca qualquer limite após cometer um erro. Com certeza o leitor já ouviu inúmeras vezes a afirmação: “já vou para o inferno mesmo, então, um pecado a mais, tanto faz”.

Mas nos enganamos se pensamos que o conceito heterônomo se encontra apenas nas religiões. Infelizmente, mesmo no meio espírita, tal conceito também se infiltrou, sobretudo com a adulteração das obras O Céu e o Inferno e A Gênese, de Allan Kardec. Se hoje ouvimos constantemente, da boca de espíritas, as palavras “carma”, “lei de ação e reação”, “resgate”, isso se dá em grande parte por essas adulterações, passadas de geração em geração e que hoje fazem muitos de nós, espíritas, ainda acreditarmos que o “carma” faz eu renascer nessa vida para “resgatar” um erro passado.

Vejamos bem: é justamente uma das mais sérias adulterações em O Céu e o Inferno que incutiu esse pensamento heterônomo, que atrasa o avanço do Espírito, no seio de uma Doutrina que era totalmente voltada à autonomia do ser. No capítulo VII, item 9 da obra citada, vamos ler: “Toda falta cometida, todo mal realizado é uma divida contraída que deverá ser paga; se não for em uma existência, será na seguinte ou seguintes”. Esse item não existia até a morte de Kardec, sendo que só apareceu em novas edições feitas mais de dois anos após a morte do Professor.

Não — insisto em dizer: no Espiritismo não existe carma, nem “lei de ação e reação” e, muito menos, “resgate”. São conceitos que, no fundo, tem o mesmo efeito da crença no castigo divino e na queda pelo pecado, que foram, ambas, ideias superadas pelo Espiritismo.

A Moral Autônoma

Oposta ao conceito da heteronomia, a autonomia (auto — de si mesmo) coloca o indivíduo como peça central em sua evolução. Depende de sua vontade, única e exclusivamente, tanto suas ações, quanto seus pensamentos e os Espíritos atraídos ou repelidos por estes.

No conceito da autonomia, que não nasceu com o Espiritismo, mas que foi por essa Doutrina ampliado — e demonstrado — o Espírito é senhor de si mesmo e de suas escolhas desde o momento em que desenvolve a consciência e, com isso, passa a ter o livre-arbítrio. Escolhe, assim, entre bem e mau, ou melhor, escolhe sobre formas de agir frente às situações e se felicita ou não com seus efeitos. Contudo, quando o efeito é negativo, não significa que está sendo efetivamente castigado por um Deus punitivo, mas sim que está sofrendo as consequências morais de suas ações. E essas consequências morais só existem para o Espírito que já tem consciência de sua existência, razão pela qual os animais, por exemplo, não as tem.

É assim que, avaliando as consequências de nossos atos e, quando mais conscientes, as imperfeições morais que nos levam a cometer erros, nos impomos, a nós mesmos, vidas cheias de provas e de expiações, com o fim de tentar nos livrarmos dessas imperfeições, a partir do aprendizado:

“Uns, portanto, impõem a si mesmos uma vida de misérias e privações, objetivando suportá-las com coragem”, quando desejam conquistar paciência, resignação ou saber agir com poucos recursos. Outros desejam testar se já superaram as paixões inferiores e então “preferem experimentar as tentações da riqueza e do poder, muito mais perigosas, pelos abusos e má aplicação a que podem dar lugar”. Aqueles que lutam contra os abusos que cometeram, “decidem a experimentar suas forças nas lutas que terão de sustentar em contato com o vício” (O Livro dos Espíritos, p.220).

É claro: ao praticar o mal contra Espíritos Inferiores, teremos uma hipótese quase garantida de recebermos, em troca, a vingança; mas essa vingança, se houver, é efeito da escolha do outro Espírito, e não de uma reação “carmática” de uma suposta “lei de ação e reação” — que, aliás, é uma lei da Física Newtoniana, e não divina. Ao praticar a vingança, o outro Espírito também erra, pois dá margem ao hábito de suas imperfeições e, por isso, pode entrar em um círculo de erro e vingança com o outro que pode durar séculos. Quando isso não ocorre — e esse é o ponto-chave — o efeito é apenas o Espírito que erra permanecer por mais tempo afastado da felicidade dos bons Espíritos, por conta de suas próprias imperfeições.

Não existe “lei de ação e reação” no Espiritismo

Muitas pessoas, apegadas a velhos conceitos do passado, se sentem perplexas com tal afirmação, mas qualquer um que se tenha colocado dedicadamente a estudar o Espiritismo consegue perceber que a moral autônoma, em tudo, é colocada bastante clara aos nossos olhos, através da concordância universal dos ensinamentos dos Espíritos. O que ganhamos ao fazer o bem? Avançaremos mais rápido. E o que sofreremos ao praticar o mal? Ficaremos mais tempo retidos à inferioridade espiritual e à roda das sucessivas encarnações em mundos inferiores.

O Espiritismo nos demonstra que, ao entrarmos no círculo da consciência, passamos a versar sobre nossos próprios destinos, sendo que as provas e as expiações que enfrentamos na atual encarnação se devem às nossas próprias escolhas, realizadas antes de encarnarmos, ainda que muito difíceis, posto que, em estado de Espírito errante (libertos do corpo), avaliamos de forma muito mais clara nossas imperfeições e, assim, escolhemos oportunidades, ainda que sofridas, para aprendermos e nos elevarmos. O Espiritismo, aliás, quando bem compreendido, favorece muito a que tomemos melhores escolhas, pois paramos apenas de desejar a expiação de erros passados, numa mecânica de pecado e castigo, e passamos a escolher oportunidades que nos levem mais a fundo a aprender e a desenvolver melhores hábitos, abafando as imperfeições que tenhamos transformado em hábitos.

Já abordamos um caso bem típico, extraído da Revista Espírita, que trata da questão das escolhas do Espírito quanto às suas provas, tratado por Kardec na evocação do assassino Lemaire, na edição de março de 1858.

Outro caso bastante interessante é o de Antônio B, que, tendo emparedado viva sua esposa na vida anterior, não sabendo lidar com essa culpa, planejou uma encarnação onde terminou enterrado vivo, após ser pensado morto. Acordou no caixão e lá dentro padeceu horrivelmente até sua morte, como se tivesse “pagado” aquela dívida com sua própria consciência. O que realmente interessa nesse caso é que, efetivamente, em vida, foi um homem probo e bom, e não precisaria desse fim trágico para “quitar” qualquer coisa.

Uma prova racional de que não existe tal “lei”: se um Espírito inferior praticar o mal contra um Espírito superior, o que ele receberá em troca? Nada além de compreensão e amor. O próprio exemplo do assassino Lemaire nos demonstra isso. Onde estaria então o retorno? Num outro Espírito que Deus designaria para sua “vingança”, para “cobrar uma dívida”, tornando-o, assim então, também um Espírito em débito para com a Lei?

Não, prezado irmão: não existe retorno senão na constatação, cedo ou tarde, por parte do próprio Espírito, de que ele não é feliz enquanto for imperfeito. Claro, precisamos também lembrar: o Espírito se encontra no meio em que se apraz, e atrai para si os Espíritos de mesma vibração. Portanto, poderá até se sentir alegre, mas jamais será feliz o Espírito que, por suas predisposições, só atrai para si Espíritos inferiores. Nisso também consiste uma espécie de castigo.

A razão explica, conduz e conforta

A maior característica do Espiritismo é ser uma Doutrina científica racional, cuja teoria nasceu da observação lógica dos fatos e dos ensinamentos dos Espíritos. Ora, em se tratando de Deus, qual seria a razão de ele nos punir com castigos, sendo que ele nos criou e sabe que nossos erros nascem de nossas imperfeições? Não há racionalidade nisso. É como se puníssemos nossas crianças por errarem contas de matemática ou por colocarem o dedo na tomada: em ambos os casos, a dor ou a sensação de ficar para trás é a punição em si mesma e, ao adicionarmos a isso uma punição adicional, estamos apenas condicionando o ser a não pensar e apenas a ter medo de errar — e, portanto, a ter o medo de tentar.

Falávamos da razão: pois é por ela, principalmente, que o Espiritismo nos conduz a melhores escolhas evolutivas. Ao entender profundamente a Doutrina, deixamos de fazer escolhas por conta de imposições ou expectativas externas, seja porque “Deus quer”, porque “Jesus espera”, ou porque “o diabo assombra”. Passamos a fazer melhores escolhas, com uma vontade mais ativa, quando entendemos que, quanto mais tempo dermos margem às nossas imperfeições ou à nossa materialidade, mais tempo demoraremos para sair dessa “roda de encarnações” dolorosas e embrutecidas.

Também esse entendimento é um grande remédio contra o suicídio: não mais o vemos com as concepções de pecado e castigo — que ainda são divulgados e defendidos até no meio espírita — mas, sim, com o entendimento racional: se sou Espírito inferior, cheio de imperfeições, significa que a vida é rica oportunidade de aprendizado. Encurtá-la por minha escolha, além de ser uma enorme oportunidade perdida, será apenas perda de tempo, pois me verei, em Espírito, imperfeito como sou, talvez de forma ainda mais escancarada, e terei que voltar e recomeçar uma nova existência para poder aprender e me livrar das imperfeições que me impossibilitam de me tornar mais feliz.

A expiação explicada à luz da Doutrina Espírita

Define assim Kardec, em Instruções práticas sobre as manifestações espíritas, de 1858:

EXPIAÇÃO — pena que sofrem os Espíritos em punição de faltas cometidas durante a vida corpórea. Como sofrimento moral, a expiação se verifica no estado errante; como sofrimento físico, no estado de encarnado. As vicissitudes e os tormentos da vida corpórea são, ao mesmo tempo, provas para o futuro e expiação para o passado.

Parece, por esse texto, que Kardec então defendia que, sim, pagamos na vida atual pelos erros passados? Não exatamente. Não podemos esquecer que, para a Doutrina Espírita, a autonomia, ou o Espírito como ator central de tudo, é a peça-chave de tudo. Portanto, mesmo no caso da expiação, é algo que consiste na escolha do próprio Espírito, com o intuito de buscar superar uma imperfeição adquirida:

A duração do castigo está subordinada ao aperfeiçoamento do espírito culpado. Nenhuma condenação por um tempo determinado é pronunciada contra ele. O que Deus exige para pôr fim aos sofrimentos é o arrependimento, a expiação e a reparação – em resumo: um aperfeiçoamento sério, efetivo, assim como um retorno sincero ao bem.

KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno. Tradução por Emanuel G. Dutra, Paulo Henrique de Figueiredo e Lucas Sampaio. Editora FEAL, 2021.

E, para bem entender o uso dos termos castigo e punição, por Allan Kardec, é necessário entender o contexto filosófico do Espiritualismo Racional, no qual ele estava inserido. Já falamos sobre isso no artigo “Punição e recompensa: você precisa estudar Paul Janet para entender Allan Kardec“.

Contudo, bem sabemos que “os tempos são chegados” e que o planeta Terra deixará, lentamente, de ser um planeta de provas e expiações para ser um mundo de regeneração, onde deverá haver encarnações um pouco mais felizes do que as atuais. Usemos, um momento, a razão para avaliar tudo isso que temos exposto até aqui:

Se a Doutrina Espírita, nos ensinando a moral autônoma, nos traça melhores rumos e melhores escolhas, pensemos: o que ensina mais ao indivíduo? Um sofrimento de mesmo gênero e mesmo grau, como no caso de Antônio B, acima, ou, entendendo as imperfeições que nos levaram a praticar o mal, em primeiro lugar, uma vida cheia de oportunidades, muitas vezes bastante desafiadores e trabalhosas, de exercitarmos o aprendizado e a prática do bem?

Entende onde estamos chegando? Tudo, absolutamente tudo, depende de nossas escolhas frente à nossa capacidade de entendimento consciente de nós mesmos, e, nisso, o estudo do Espiritismo nos alavanca em vários degraus.

É por isso que o mundo vai deixar de ser um mundo de provas e expiações: porque os Espíritos que aqui encarnam passarão a escolher melhor suas encarnações, deixando de aplicar a si mesmos a lei de talião (olho por olho, dente por dente) para, então, cuidarem de desenvolver hábitos morais mais saudáveis. Até nisso contatamos que tudo parte do indivíduo para fora, e não o contrário.

Conclusão

Portanto, irmãos, avante: estudemos o Espiritismo de forma aprofundada e, hoje sabendo das adulterações em O Céu e o Inferno e A Gênese, estudemos as versões originais (já disponibilizadas pela FEAL) de modo a não mais perdermos tempo com conceitos heterônomos e, sobretudo, de modo a não mais repetirmos, no meio Espírita, as lastimáveis afirmações como aquelas que dizem que “fulano nasceu com problemas mentais porque está pagando por um erro na vida passada”. Isso, além de ser um erro absurdo, afasta as pessoas do Espiritismo.

Veja um exemplo:

Pasmemos: essa frase não é de Kardec. Nem parece ser sua, nem pode ser encontrada em NENHUMA de suas obras. Essa é uma prova a mais do quanto o Espiritismo foi invadido por falsas ideias, quase sempre antidoutrinárias.

Nossas provas são ricas oportunidades, quase sempre escolhidas por nós mesmos, sendo impostas apenas nos casos em que não temos condições conscienciais para tais escolhas e, mesmo assim, se dão por ação de benevolência de Espíritos superiores, e não como castigo divino.

A alma ou Espírito sofre na vida espiritual as consequências de todas as imperfeições que não conseguiu corrigir na vida corporal. O seu estado, feliz ou desgraçado, é inerente ao seu grau de pureza ou impureza. (O céu e o inferno).

O maior castigo que há está em continuarmos por eras incontáveis nos arrastando na lama de nossas imperfeições. Isso já é o bastante.


Nota: o nome do artigo vem do texto de mesmo título, que serviu de inspiração a este, do livro Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo, de Paulo Henrique de Figueiredo.

Sugestões de estudos

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