Punição e recompensa: você precisa estudar Paul Janet para entender Allan Kardec

Imagem de capa: Allan Kardec e Paul Janet
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Paul-Alexandre-René Janet

Nasceu em 30 de abril de 1823, em Paris, e morreu em 4 de outubro de de 1899, na mesma cidade.

Estudante da École normale supérieure em 1841, agrégé em filosofia em 1844 (primeiro) e doutor em letras em 1848, tornou-se professor de filosofia moral em Bourges (1845-1848), em Estrasburgo (1848-1857), depois em lógica em o Lycée Louis-le-Grand em Paris ( 1857 – 1864 ). A partir de 1862, foi professor adjunto de filosofia na Sorbonne, depois em 1864, ocupou a cátedra de história da filosofia nesta universidade até 1898. Foi eleito membro da Academia de ciências morais e políticas em 1864 e também foi membro do Conselho Superior da Instrução Pública em 1880.

A sua obra centra-se principalmente na filosofia, na política e na ética , em consonância com o ecletismo de Victor Cousin e, através dele, de Hegel.

https://pt.frwiki.wiki/wiki/Paul_Janet_%28philosophe%29

Janet foi contemporâneo de Allan Kardec. Suas obras demonstram, com excelência, o contexto filosófico no qual o codificador estava inserido, fazendo uso de seus conceitos.

Muitos, ao lerem Kardec, supõem que ele, devido às palavras que utilizou em suas obras, estava apenas reproduzindo ideias e conceitos originários da Igreja Católica. Nada mais longe da verdade, como veremos a seguir, pois, Kardec estava, na verdade, usando os conceitos largamente difundidos e compreendidos no meio da sociedade culta francesa que, aliás, era a classe que mais se interessava pelo estudo do Espiritismo.

Paulo Henrique de Figueiredo explica:

Durante o século dezenove, o que chamamos de ciências humanas foram estabelecidas a partir de um pressuposto espiritualista para sua constituição. Enquanto isso, nas ciências naturais, como Física e Química, predominavam o materialismo. Essa condição é muito diferente do que estamos habituados atualmente, quando a universidade é quase completamente orientada pelo pensamento materialista.

Essa corrente de pensamento era conhecida como Espiritualismo Racional. Pois era completamente independente das religiões formais e seus dogmas. A base fundamental era a psicologia, ciência da alma, que tinha como diretriz: “O ser humano é uma alma encarnada”.

Como está extensamente explicado no livro Autonomia, a história jamais contada do Espiritismo, Allan Kardec fez da psicologia a base conceitual para desenvolver a Doutrina Espírita. Seu jornal de publicação mensal era a Revista Espírita, jornal de estudos psicológicos.

O Espiritualismo Racional foi ensinado, desde 1830, na Universidade de Paris, também na Escola Normal, onde os professores se formavam, e também nos Liceus, na educação dos jovens. Para estes, haviam manuais, como o de Paul Janet. Esse manual foi traduzido para diversos idiomas e adotado em muitos países, inclusive no Brasil.

Esse manual é de fundamental importância para se compreender a base conceitual dos estudos de Kardec, principalmente quanto à moral espírita.

FIGUEIREDO, Paulo Henrique de. Tratado de Filosofia Paul Janet. Portal do Espírito, 22 de julho de 2019. Disponível em <https://espirito.org.br/autonomia/livros-tratado-de-filosofia-paul-janet>. Acesso em 19 de maior de 2022.

Utilizando, dissemos, os conceitos do Espiritualismo Racional, que era ensinado na Universidade de Paris e na Escola Normal Superior de Paris, Kardec desenvolve os mais diversos conceitos filosóficos da Doutrina Espírita, à luz dos ensinamentos concordes dos Espíritos. Assim, vai dar um desenvolvimento profundo às ideias da moral tratada por esses estudiosos, abordando os conceitos de dor e prazer, bem e mal, dever, caridade desinteressada, liberdade, mérito, punição e recompensa. Vamos, a título de ilustração, demonstrar a construção desses últimos dois conceitos:

A recompensa e a punição

Em sua obra Pequenos Elementos de Moral, disponível para download, em PDF, neste link, Janet constrói os diversos conceitos filosóficos que vão dar suporte àqueles da recompensa e da punição. Ele assim se expressa: “o prazer, considerado como a consequência devida à realização do bem, chama-se recompensa, e a dor, considerada como a consequência legítima do mal, chama-se punição”.

O prazer, para ele, é a busca de vivenciar aquilo que a vida permite, sendo que existiriam, assim, os prazeres bons e os prazeres ruins, variando, nesse intervalo, segundo certeza, pureza, intensidade, duração, etc. Assim, o prazer fugitivo da embriaguez seria um mau prazer, enquanto que o prazer durável da saúde seria um bom prazer:

Há prazeres muito vivos, mas passageiros e fugitivos, como os prazeres das paixões 1. Há outros que são duráveis e contínuos, como os da saúde, da segurança, da comodidade, da consideração. Sacrificar-se-ão esses prazeres que duram toda a vida a prazeres que duram apenas uma hora?

JANET, 1870 2

Portanto, moralmente, o ser humano deveria buscar, sempre, os bons prazeres, que não produzam arrependimentos, preterindo-os aos maus prazeres, que geram arrependimentos e complicações:

A experiência nos ensina que não se deve buscar os prazeres sem discernimento e sem distinção, que é preciso usar a razão para compará-los entre si, sacrificar o presente incerto e passageiro a um futuro durável, preferir os prazeres simples e pacíficos, não seguidos de arrependimentos, aos prazeres tumultuosos e perigosos das paixões etc., numa palavra, sacrificar o agradável ao útil.

Ibidem

Fica claro, portanto, que o conceito de recompensa, utilizado nesse contexto, está ligado ao entendimento do regozijo de ter realizado uma ação ligada ao bem, ao passo que a punição é a dor gerada como consequência legítima do mal. Não existe nenhuma atribuição, portanto, a uma imposição mecânica de uma suposta “lei do retorno” ou “lei de reparação”, por Deus ou pelo “Universo”, pela má ação, como muitos insistem em apregoar, nem existem prêmios dados pela boa ação. Tudo é uma consequência moral, do próprio indivíduo para consigo mesmo, o que depende, necessariamente, do conhecimento da Lei:

Em moral, como em legislação, a ninguém aproveita o desconhecimento da lei. Há, portanto, em todo homem um certo conhecimento da lei, quer dizer, um discernimento natural do bem e do mal: esse discernimento é o que se chama a consciência ou às vezes o senso moral.

Ibidem

Porém, para que o indivíduo aja moralmente, é preciso que tenha o livre-arbítrio:

Não basta que o homem conheça e distinga o bem e o mal, e experimente por um e outro sentimentos diferentes. É preciso ainda, para ser um agente moral, que o homem seja capaz de escolher entre um e outro 3; não se pode ordenar-lhe o que ele não poderia fazer, nem lhe proibir o que ele seria forçado a fazer. Esse poder de escolher é a liberdade, ou livre-arbítrio.

Ibidem

Mas é importante lembrar que o homem, como uma alma encarnada, é um conceito básico do Espiritualismo Racional, como define Janet, na mesma obra:

Toda lei supõe um legislador. A lei moral suporá, portanto, um legislador moral: é assim que a moral nos eleva a Deus. Sendo toda sanção humana ou terrestre demonstrada insuficiente pela observação, a lei moral precisa de uma sanção religiosa. É assim que a moral nos conduz à imortalidade da alma.

Disso tudo, nasce o entendimento do vício e da virtude:

As ações humanas, dissemos nós, são ora boas, ora más. Essas duas qualificações têm graus, por causa da importância ou da dificuldade da ação. É assim que uma ação é conveniente, estimável, bela, admirável, sublime etc., por outro lado, a ação má ora é uma simples falta, ora um crime. Ela é condenável, baixa, odiosa, execrável etc.

Se, em um agente, se considerar o hábito das boas ações, uma tendência constante a se conformar à lei do dever, esse hábito ou tendência constante chama-se virtude, e a tendência contrária chama-se vício.

Ibidem

O mal, porém, é um julgamento de si mesmo (ninguém pode fazer mal ao outro 4), que depende da consciência do que se faz:

O julgamento que se faz de si mesmo difere segundo o princípio da ação que se admite. Aquele que perdeu no jogo pode afligir-se consigo mesmo e com sua imprudência 5; mas aquele que tem consciência de ter enganado no jogo (ainda que tenha ganhado por esse meio) deve desprezar-se quando julga a si mesmo do ponto de vista da lei moral 6.

Ibidem

E então, pouco mais adiante, ainda na mesma obra, Janet desenvolve o entendimento da satisfação moral e do arrependimento:

Relativamente às nossas próprias ações, os sentimentos se modificam conforme a ação esteja por fazer ou já feita. No primeiro caso, sentimos de um lado uma certa atração pelo bem (quando a paixão não é suficientemente forte para sufocá-lo), de outro, uma repugnância ou aversão pelo mal (mais ou menos atenuada segundo as circunstâncias pelo hábito ou pela violência do desejo). Esses dois sentimentos não receberam usualmente nomes particulares.

Quando ao contrário a ação foi realizada, o prazer que daí resulta, se agimos bem, chama-se satisfação moral, e se agimos mal, remorso ou arrependimento.

O remorso é a dor abrasadora, e, como indica a palavra, a chaga que tortura o coração após uma ação condenável. Esse sofrimento pode se encontrar naqueles mesmos que não têm nenhum pesar por terem feito mal e voltariam a fazê-lo. Ele não tem, portanto, nenhum caráter moral, e deve ser considerado como uma espécie de castigo infligido ao crime pela própria natureza. “A malícia, disse Montaigne, envenena-se com seu próprio veneno. O vício deixa como que uma úlcera na carne, um arrependimento na alma, que sempre se arranha e ensanguenta a si mesma.”

O arrependimento é também, como o remorso, um sofrimento que nasce da má ação; mas junta-se a ele o pesar por a tê-la realizado, e o desejo (ou a firme resolução) de não mais realizá-la.

Para Janet, então, o remorso não seria, ainda, o sofrimento gerado pelo arrependimento, mas apenas uma certa tortura por realizar a ação condenável. Em outras palavras, não se sofre porque se realizou o mal, mas apenas porque o que se realizou é reprovável. E então, Kardec, em O Céu e o Inferno 7, falando de castigo, que tem, para Janet, o mesmo significado que punição 8, assim se expressa:

A duração do castigo está subordinada ao aperfeiçoamento do espírito culpado. Nenhuma condenação por um tempo determinado é pronunciada contra ele. O que Deus exige para pôr fim aos sofrimentos é o arrependimento, a expiação e a reparação – em resumo: um aperfeiçoamento sério, efetivo, assim como um retorno sincero ao bem.

KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno. Tradução por Emanuel G. Dutra, Paulo Henrique de Figueiredo e Lucas Sampaio. 2021.

Ou seja: Deus não pronuncia castigos ou punições contra o indivíduo. É ele mesmo quem se pune, através das consequências legítimas do mal realizado. Então, para encerrar esse sofrimento, precisa se arrepender, em primeiro lugar, isto é, identificar que fez algo condenável (remorso) e juntar a isso o pesar de tê-lo realizado (arrependimento, que é moral), bem como o desejo de não mais realizá-lo. Para alcançar esse entendimento, é preciso que o Espírito avance em inteligência e, para reparar o mal realizado (que já ficou claro que cometeu contra si mesmo, e não contra outrem, do que decorre que ele deve reparar em si a origem desse mal), o Espiritismo demonstra, sem possibilidade de erro, a existência da lei da reencarnação.

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Tudo isso, enfim, para entender os conceitos de punição e recompensa. Eis que, de acordo com todo o exposto, Kardec diz, em trecho anterior àquele supracitado:

A punição é sempre a consequência natural da falta cometida. O espírito sofre pelo próprio mal que fez, de maneira que, estando sua atenção concentrada incessantemente sobre as consequências desse mal, compreende-lhe melhor os inconvenientes e é motivado a corrigir-se.

E então, em razão de tudo isso, Kardec assim inicia o capítulo IV essa obra – O Inferno:

O homem sempre acreditou intuitivamente que a vida futura deveria ser mais ou menos feliz na razão do bem e do mal praticado neste mundo. A ideia, porém, que ele faz dessa vida futura está na proporção do desenvolvimento de seu senso moral e da noção mais ou menos justa que tem do bem e do mal. As penas e as recompensas são o reflexo dos instintos que nele predominam.

Mas cabe lembrar que, utilizando desses conceitos filosóficos de seu tempo, Kardec, ao mesmo tempo, os desenvolveu pelas consequências morais da ciência espírita.

O espiritualismo em Kardec

Cabe, antes de encerrar, lembrar que Allan Kardec várias vezes utilizou a palavra espiritualismo em sua obra. É ao Espiritualismo Racional que ele se refere:

Quem quer que acredite haver em si alguma coisa mais do que matéria, é espiritualista. Não se segue daí, porém, que creia na existência dos Espíritos ou em suas comunicações com o mundo visível. Em vez das palavras espiritualespiritualismo, empregamos, para indicar a crença a que vimos de referir-nos, os termos espírita e espiritismo, cuja forma lembra a origem e o sentido radical e que, por isso mesmo, apresentam a vantagem de ser perfeitamente inteligíveis, deixando ao vocábulo espiritualismo a acepção que lhe é própria. Diremos, pois, que a doutrina espírita ou o Espiritismo tem por princípio as relações do mundo material com os Espíritos ou seres do mundo invisível. Os adeptos do Espiritismo serão os espíritas, ou, se quiserem, os espiritistas.

Como especialidade, o Livro dos Espíritos contém a doutrina espírita; como generalidade, prende-se à doutrina espiritualista, uma de cujas fases apresenta. Essa a razão por que traz no cabeçalho do seu título as palavras: Filosofia espiritualista.

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 1857

Isso fica, enfim, comprovado pelo seguinte trecho da Revista Espírita de 1868:

A obra do Sr. Chassang é a aplicação dessas ideias à arte em geral, e à arte grega em particular. Reproduzimos com prazer o que dela diz o autor da crítica da Patrie, porque é uma prova a mais da enérgica reação que se opera em favor das ideias espiritualistas e que, como o dissemos, toda defesa do espiritualismo racional franqueia o caminho do Espiritismo, que é o seu desenvolvimento, combatendo os seus mais tenazes adversários: o materialismo e o fanatismo.

KARDEC, Allan. Revista Espírita, novembro de 1868

Conclusão

Eis aqui claramente apresentada a prova de que não podemos conhecer e compreender a filosofia de Kardec sem compreender a filosofia e a moral de seu tempo, plenamente inseridas no contexto do Espiritualismo Racional francês, assim como não podemos compreender plenamente a ciência espírita sem o entendimento das ciências do Magnetismo [de Mesmer] e da Psicologia (esta também inserida no ER, sob a divisão das ciências morais).

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Ficou claramente evidenciado que Kardec não fazia uso de conceitos religiosos dogmáticos, mas apenas de palavras que, se encontrando nesses conceitos, foram ressignificadas primeiramente sob a filosofia de então e, depois, sob a filosofia espírita.

Portanto, faz-se muito necessário o estudo e a difusão desse conhecimento. Uma vez mais, convidamos o leitor a estudar e distribuir, em todos os meios espíritas possíveis, a obra referida neste artigo, bem como o presente texto, que resulta de um esforço realizado também nesse sentido.

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Indicações de Leitura (Livros)

  1. Assim define o dicionário Oxford: “no kantismo, inclinação emocional violenta, capaz de dominar completamente a conduta humana e afastá-la da desejável capacidade de autonomia e escolha racional.”. Esse é o sentido de paixão, utilizado por Kardec e pelos filósofos de sua época[]
  2. JANET, Paul. Pequenos Elementos de Moral. Tradução por Maria Leonor Loureiro. Paris, 1870[]
  3. Aqui os estudos do Espiritismo nos conduzem a outro entendimento: na verdade, o homem não escolhe entre bem e mal, porque, no fundo, se escolhe mal, é porque ainda não conhece a lei. O Espírito que realmente conhece e entende a Lei de Deus somente faz o bem, sempre.[]
  4. Pelo princípio racional da autonomia, desenvolvido até aqui, o indivíduo pode apenas praticar um mal físico contra outrem, mas nunca um mal moral. Um sujeito pode roubar os pertences de outra pessoa, o que a ela causará algumas dificuldades, mas, em verdade, ele faz o mal a si mesmo, pois fere a lei moral, pelo que sofrerá a depender de seu estado de consciência. A vítima, por sua vez, à parte do contratempo material, poderá ou não fazer o mal a si mesma, à medida que se apegue ou não ao acontecido e gere, para ela mesma, algum sofrimento. Isto também dependerá de sua consciência da lei moral[]
  5. Ou seja: ele pode perceber que fez um mal a si mesmo, perdendo dinheiro no jogo[]
  6. Porque, ao se conscientizar do que fez, percebe que prejudicou o outro, e isso lhe gera remorso[]
  7. Lembrando, sempre, que essa obra foi adulterada e mutilada a partir da quarta edição francesa, que serviu de base a todas as demais edições e traduções. Os temas abordados neste artigo foram os que mais sofreram com essas adulterações[]
  8. Diz Janet: “A ideia de punição ou castigo também não se explicaria se o bem fosse apenas o útil. Não se pune um homem por ter sido inábil; pune-se por ter sido culpado”[]

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