Somos todos Espíritos imperfeitos?

Nem todos somos imperfeitos. Essa é uma falsa ideia, quando entendida sob um determinado ângulo, como vamos demonstrar.

O Espiritismo demonstra, complementando o Espiritualismo Racional, que a imperfeição é algo desenvolvido pela repetição consciente (hábito) do erro. Ao se tornar imperfeição (chama-se “imperfeição adquirida”), pode até se tornar um vício, que demandará o esforço autônomo e também consciente para ser superado, através da escolha de provas e oportunidades em novas encarnações.

É nisso que consiste o mal: afastar-se do bem, que é a moral das leis divinas, através do desenvolvimento de imperfeições. E nem todos fazem isso. O Espírito que não desenvolveu imperfeições, ou aquele que está lutando bravamente para superá-las, está no bem ou caminhando para ele… E isso o fortalece o suficiente para vencer, também, influências exteriores, e até mesmo para repeli-las.

Mas há também o aspecto da imperfeição partindo do ponto de vista que somos todos perfectíveis. Assim, enquanto não nos tornamos Espíritos relativamente perfeitos (porque perfeito, mesmo, somente Deus pode ser), seremos imperfeitos.

Ambos os aspectos do termo são tratados por Kardec na Doutrina Espírita, e podemos provar:

Os que não se interessam apenas pelos fatos e compreendem o aspecto filosófico do Espiritismo, admitindo a moral que dele decorre, mas sem a praticarem. A influência da Doutrina sobre o seu caráter é insignificante ou nula. Não modificam em nada os seus hábitos e não se privariam de nenhum de seus prazeres. O avarento continua insensível, o orgulhoso cheio de amor-próprio, o invejoso e o ciumento sempre agressivos. Para eles, a caridade cristã não passa de uma bela máxima. São os espíritas imperfeitos.

KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns, 23a Edição. Editora LAKE

O trecho consta da parte em que Kardec está classificando os tipos de espíritas. Ora, não haveria porque classificar uma parte deles como “imperfeitos” se somos todos imperfeitos. Isso demonstra que, nesse ponto, Kardec está tratando das imperfeições adquiridas, conforme explicadas acima.

Falamos também sobre isso no artigo recente Reforma íntima e Espiritismo e, no estudo abaixo, o tema foi tratado em grupo.

É fato: estamos longe da perfeição. Na verdade, nunca atingiremos a perfeição absoluta, pois, se atingíssemos, seríamos como Deus. Atingiremos a perfeição relativa… Porém, isso não nos faz imperfeitos, mas apenas relativamente simples e ignorantes, isto é, desenvolvendo ainda a vontade e a consciência.

Em O Céu e o Inferno, na versão original e não adulterada (vide a edição produzida pela editora FEAL), essa filosofia está claramente exposta, em toda a sua racionalidade inatacável; contudo, desde o início da formação da Doutrina, essa informação já era conhecida. Basta verificar a Escala Espírita, em O Livro dos Espíritos, e veremos que, na Terceira Ordem – Espíritos Imperfeitos, estão apenas os Espíritos que desenvolveram imperfeições: “Predominância da matéria sobre o espírito. Propensão para o mal. Ignorância, orgulho, egoísmo e todas as paixões que lhes são consequentes”. E basta raciocinar: nem todo mundo desenvolve essas imperfeições, porque alguns podem escolher não repetir os erros, como já se encontra expresso em O Livro dos Espíritos:

133. Têm necessidade de encarnação os Espíritos que desde o princípio seguiram o caminho do bem?

“Todos são criados simples e ignorantes e se instruem nas lutas e tribulações da vida corporal. Deus, que é justo, não podia fazer felizes a uns, sem fadigas e trabalhos, conseguintemente sem mérito.”

a) — Mas, então, de que serve aos Espíritos terem seguido o caminho do bem, se isso não os isenta dos sofrimentos da vida corporal?

Chegam mais depressa ao fim. Ademais, as aflições da vida são muitas vezes a consequência da imperfeição do Espírito. Quanto menos imperfeições, tanto menos tormentos. Aquele que não é invejoso, nem ciumento, nem avaro, nem ambicioso, não sofrerá as torturas que se originam desses defeitos.”

O Livro dos Espíritos. Grifos nossos.

Mas como pode se dar isso?

Para entender esse fundamento da lei natural, precisamos compreender que o Espírito simples e ignorante é aquele em sua primeira encarnação consciente, no reino humano. Nesse estado, recém-saído do reino animal, guarda ainda todos os resquícios do instinto, que o governaram inconscientemente até então, no bem, porque o bem é estar na lei natural, e o animal que mata o outro para se alimentar está seguindo a lei natural, agindo apenas para suprir suas necessidades instintivas, com inteligência, mas sem consciência. Ao entrar no reino do homem, o Espírito consciente passa a fazer escolhas — não entre bem e mal, mas entre agir desta ou daquela forma. Essas escolhas produzirão resultados, que poderão configurar um acerto — estão dentro da lei divina — ou um erro — estão fora da lei divina, isto é, excedem a necessidade racional. O indivíduo pode, então, escolher não repetir esse erro, mas pode também escolher repeti-lo, pois é algo que, de alguma forma, lhe agrada às emoções ou lhe dá prazer. É nesse momento que desenvolve a imperfeição, se repete o erro constantemente. Mas ele pode também escolher não repetir o erro, pois percebe que lhe causa um mau efeito. Nesse sentido, ele é feliz em suas simplicidade e ignorância, sendo essa felicidade relativa à sua capacidade atual.

Isso também está em Kardec, em A Gênese:

“Se estudarmos todas as paixões, e até mesmo todos os vícios, vemos que eles têm seu princípio no instinto de conservação. Esse instinto, em toda sua força nos animais e nos seres primitivos que estão mais próximos da vida animal, ele domina sozinho, porque, entre eles, ainda não há de contrapeso o senso moral. O ser ainda não nasceu para a vida intelectual. O instinto enfraquece, ao contrário, à medida que a inteligência se desenvolve, porque domina a matéria. Com a inteligência racional, nasce o livre-arbítrio que o homem usa à sua vontade: então somente, para ele, começa a responsabilidade de seus atos”.

Na versão original dessa obra, conforme apresentada na edição da editora FEAL, Kardec complementa, dizendo que:

“Todos os homens passam pelas paixões. Os que as superaram, e não são, por natureza, orgulhosos, ambiciosos, egoístas, rancorosos, vingativos, cruéis, coléricos, sensuais, e fazem o bem sem esforços, sem premeditação e, por assim dizer, involuntariamente, é porque progrediram na sequência de suas existências anteriores, tendo se livrado desse incômodo peso. É injusto dizer que eles têm menos mérito quando fazem o bem, em comparação com os que lutam contra suas tendências. Acontece que eles já alcançaram a vitória, enquanto os outros ainda não. Mas, quando alcançarem, serão como os outros. Farão o bem sem pensar nele, como crianças que leem correntemente sem ter necessidade de soletrar. É como se fossem dois doentes: um curado e cheio de força enquanto o outro está ainda em convalescença e hesita caminhar; ou como dois corredores, um dos quais está mais próximo da chegada que o outro.”

Então, aquele que desenvolveu uma imperfeição é inferior aos que não as desenvolveram? É um mau Espírito? Deve ser castigado por isso? Não, não e não!

Aquele que desenvolveu uma imperfeição, o fez por não conhecer, em realidade, o bem, caso contrário teria agido adversamente. É apenas um erro — repetido conscientemente — e não passa disso. Não é uma característica do Espírito. Deus não cria ninguém mau, nem cria o mal. O mal não existe! É apenas a ausência do bem. É claro, portanto, que Deus não castigaria um filho seu por errar. Não: ele lhe dá a capacidade de raciocinar e a autonomia, de modo que ele mesmo possa perceber que os resultados de seus erros lhe causam sofrimento e, percebendo isso, se arrependa e demande a correção dessas imperfeições.

É nesse ponto que o espiritualismo moderno e o movimento espírita atual divergem da moral espírita original: para esses, ao entender o erro, o Espírito é obrigado a reparar OS EFEITOS, enquanto, para o último, o Espírito é deixado livre para escolher como e quando tentará reparar A IMPERFEIÇÃO (em si), o que pode ou não envolver a reparação de efeitos danosos que tenha realizado.

Aqui, cabe uma conclusão: a doutrina da “lei do retorno” ou do carma, que nunca fez parte do Espiritismo, afirma que, ao fazer mal para uma pessoa, teremos que reencarnar com ela para reparar esse erro. Contudo, já ficou estabelecido que o mal fazemos apenas para nós mesmos — se, ao cometer um erro com alguém, esse alguém escolhe cultivar um sentimento de cólera, ódio ou vingança, está fazendo o mal a si mesmo. Cabe, portanto, à autonomia de cada um se desapegar de tais sentimentos. Se o algoz fosse obrigado a reencarnar com sua vítima para reparar um erro e, por mais que se esforçasse por ter uma atitude irrepreensível no bem, a vítima escolhesse não desapegar de tais sentimentos, quer dizer que o erro não teria sido pago e demandaria quantas encarnações fossem necessárias para isso, vinculando o progresso do outro, que já voltou ao bem, à escolha do outro? E se, por outro lado, a vítima não se apegou, seguiu em frente, mas o algoz continua em suas imperfeições? Ela terá que reencarnar com ele para que ele, que ainda nem sequer entendeu seu sofrimento, “quite suas dívidas”? Não faz sentido!

Voltando ao nosso ponto, falávamos do retorno do Espírito ao bem. Em O Céu e o Inferno (editora FEAL, baseado na versão original, não adulterada), temos o seguinte:

“8º) A duração do castigo está subordinada ao aperfeiçoamento do espírito culpado. Nenhuma condenação por um tempo determinado é pronunciada contra ele. O que Deus exige para pôr fim aos sofrimentos é o arrependimento, a expiação e a reparação – em resumo: um aperfeiçoamento sério, efetivo, assim como um retorno sincero ao bem”.

Sendo o castigo – ou a punição, pois não sabemos ao certo qual foi a intenção da palavra original – uma consequência do erro realizado, será um verdadeiro castigo o sofrimento inerente às imperfeições. Não é uma punição arbitrária divina, mas uma consequência da lei natural. Não há condenação: tudo depende da vontade do indivíduo em arrepender-se e demandar a reparação da imperfeição, retornando, assim, ao bem.

Finalizamos reproduzindo, uma vez mais, a recomendação de Paul Janet ((Em Pequenos Elementos de Moral, disponível aqui para download.)) a repeito dos hábitos:

É verdade que os hábitos se tornam, com o tempo, quase irresistíveis. É um fato observado com frequência; mas, por um lado, se um hábito inveterado é irresistível, o mesmo não ocorre com um hábito que começa; e assim o homem permanece livre para prevenir a invasão dos maus hábitos. É por isso que os moralistas nos aconselham acima de tudo a vigiar a origem de nossos hábitos. “Toma sobretudo cuidado com os inícios.”




Perturbação Imediata Após Morte

Todos nascemos! Todos vamos morrer!

Desta verdade da vida, vem a preocupação do momento da morte. São sempre assuntos recorrentes.

Neste artigo, não pretendemos encerrar o assunto, muito pelo contrário! Estamos somente trazendo uma parte bem pequena desse vasto assunto. Afinal, todos vamos experimentar este acontecimento.

Os Espíritos explicaram que, no momento da morte, nem todos os Espíritos passam pelos mesmo processo. Cada ser é uma consciência diferente da outra. Assim, O Livro dos Espíritos traz as seguintes conclusões em seu capítulo III – Retorno da Vida Corpórea à Vida Espiritual:

163. Deixando o corpo, a alma tem imediata consciência de si mesma? – Consciência imediata não é o termo: ela fica perturbada por algum tempo.

164. Todos os Espíritos experimentam, no mesmo grau e pelo mesmo tempo, a perturbação que se segue à separação da alma e do corpo? – Não, pois isso depende da sua elevação. Aquele que já está depurado se reconhece quase imediatamente, porque se desprendeu da matéria durante a vida corpórea, enquanto o homem carnal, cuja consciência não é pura, conserva por muito mais tempo a impressão da matéria.

Comentário: Aqui fica evidente que cada pessoa experimenta um tipo de percepção da morte, segundo aquilo que vivenciou na matéria.

Agora, nesta pergunta 165, Allan Kardec consegue aprofundar mais na natureza da perturbação, assim como descrever melhor o que os Espíritos ensinaram em suas comunicações. Notem que não há nada com um tempo determinado. Esta parte da resposta, no nosso entender, é a mais esclarecedora.

165. O conhecimento do Espiritismo exerce alguma influência sobre a duração maior
ou menor da perturbação? – Uma grande influência, pois o Espírito compreende antecipadamente a sua situação: mas a prática do bem e a pureza de consciência são o que exerce maior influência.

Kardec continua explicando, no mesmo item, como o Espirito experimenta esses primeiros momentos:

“No momento da morte, tudo, a princípio, é confuso; a alma necessita de algum tempo para se reconhecer; sente-se como atordoada, no mesmo estado de um homem que saísse de um sono profundo e procurasse compreender a situação. A lucidez das ideias e a memória do passado voltam, à medida que se extingue a influência da matéria e que se dissipa essa espécie de nevoeiro que lhe turva os pensamentos.

A duração da perturbação de após morte é muito variável: pode ser de algumas horas, como de muitos meses e mesmo de muitos anos. Aqueles em que é menos longa são os que se identificaram durante a vida com seu estado futuro, porque estão compreendem imediatamente a sua posição.

Comentário: Parece que ele dá uma espécie de conselho na parte em que destacamos do texto.

“Essa perturbação apresenta circunstâncias particulares, segundo o caráter dos indivíduos e sobretudo de acordo com o gênero de morte. Nas mortes violentas, por suicídio, suplício, acidente, apoplexia, ferimentos, etc., o Espírito é surpreendido, espanta-se, não acredita que esteja morto e sustenta teimosamente que não morreu. Não obstante, vê o seu corpo, sabe que é dele, mas não compreende que esteja separado. Procura as pessoas de sua afeição, dirige-se a elas e não entende por que não o ouvem. Esta ilusão se mantém até o completo desprendimento do Espírito, e somente então ele reconhece o seu estado e compreende que não faz mais parte do mundo dos vivos.”

Comentário: Há vários relatos de Espíritos que comparecem em seu funeral, que não entendem o motivo de estarem deitados dentro do caixão. Ficam completamente perdidos!

“Esse fenômeno é facilmente explicável. Surpreendido pela morte imprevista, o Espírito fica aturdido com a brusca mudança que nele se opera. Para ele, a morte é ainda sinônimo de destruição, de aniquilamento; ora, como continua a pensar, como ainda vê e escuta, não se considera morto. E o que aumenta a sua ilusão é o fato de se ver num corpo semelhante ao que deixou na Terra, cuja natureza etérea ainda não teve tempo de verificar. Ele o julga sólido e compacto como o primeiro, e quando se chama a sua atenção para esse ponto, admira-se de não poder apalpá-lo. Assemelha-se este fenômeno ao dos sonâmbulos inexperientes, que não creem estar dormindo. Para eles, o sono é sinônimo de suspensão das faculdades; ora, como pensam livremente e podem ver, não acham que estejam dormindo. Alguns Espíritos apresentam esta particularidade, embora a morte não os tenha colhido inopinadamente; mas ela é sempre mais generalizada entre os que, apesar de doentes, não pensavam em morrer. Vê-se então o espetáculo singular de um Espírito que assiste os próprios funerais como os de um estranho, deles falando como de uma coisa que não lhe dissesse respeito, até o momento de compreender a verdade.”

Comentário: O Espírito confunde seu envoltório espiritual( perispírito) com o seu corpo carnal, de modo que não percebe que não tem mais corpo carnal!

A perturbação que se segue à morte nada tem de penosa para o homem de bem: é calma e em tudo semelhante à que acompanha um despertar tranquilo. Para aquele cuja consciência não está pura é cheia de ansiedades e angústias.

Comentário: Mais uma vez, os esclarecimentos dos Espíritos nos dão as dicas de como tornar o momento da morte tão mais brando!

Surpreendentemente, no último parágrafo deste capítulo, Kardec diz de forma clara sobre os desencarnes coletivos ocorridos em acidentes ou catástrofes!

“Nos casos de morte coletiva observou-se que todos os que perecem ao mesmo tempo, nem sempre se reveem imediatamente. Na perturbação que se segue à morte, cada um vai para o seu lado ou somente se preocupa com aqueles que lhe interessam.”

Kardec, O Livro dos Espíritos, item 165

Comentário: Se um ser humano morrer ao mesmo tempo no mesmo acidente não quer dizer muito no momento do desencarne! Cada Espírito persegue os seus interesses segundo sua evolução.

Não pretendemos encerrar o assunto! Afinal, pelo que você leu até aqui, nada é conclusivo, pois cada um tem suas particularidades! Ao longo da codificação de Kardec, há muitas descrições desse momento e mais explicações que os Espíritos trouxeram.

Mas de uma coisa nunca vamos escapar: do momento da morte!




A moral autônoma e a moral heterônoma

Vivemos em um mundo até agora dominado pelos conceitos de heteronomia. Para bem entender esse conceito, precisamos analisar a etimologia da palavra: heteronomia é formada do radical grego “hetero” que significa “diferente”, e “nomos” que significa “lei”, portanto, é a aceitação de normas que não são nossas, mas que reconhecemos como válidas para orientar a nossa consciência que vai discernir o valor moral de nossos atos. Esse entendimento é fundamental, pois entender a moral autônoma faz total diferença no entendimento do Espiritismo.

O mundo heterônomo

No mundo heterônomo, nós atribuímos tudo a algo externo: a culpa está no diabo ou no obsessor, o efeito está na ira divina e a reparação está na imposição carmática. Tudo, absolutamente tudo no mundo heterônomo, vem como imposição externa, através de leis que respeitamos por obrigação, e não por entendimento. E na ausência dela ou de seus atores, nos vemos sem limites e sequer sem amor-próprio.

A heteronomia é algo inerente e talvez mesmo necessário a uma condição de pouco avanço espiritual, quando, sem o entendimento mais profundo dos mecanismos da vida e da evolução, somos forçados a atender, por medo, às imposições de leis divinas, humanizadas, ou mesmo das leis humanas, divinizadas. Infelizmente, como já sabemos, também é algo extensamente utilizado pelas religiões para manter o controle sobre seus fieis. Mas isso é algo que, conforme podemos constatar, vai se modificando conforme o avanço do Espírito humano, tanto em ciência quanto em moralidade.

Um grande problema do conceito da heteronomia, ou, antes, da crença nele, é que ele entrava por certo tempo a evolução do Espírito: ora, se o indivíduo acredita que suas dificuldades na vida são um castigo imposto por Deus, ele apenas aceita seus efeitos, de forma submissa (o que, sim, é importante), mas sem fazer nada para se modificar. Aguarda apenas o fim de suas provações. Nem mesmo a caridade pode ser realmente entendida e praticada em um contexto heterônomo, pois o indivíduo pratica a caridade esperando um retorno, sem entender que ela é uma obrigação moral e natural do ser pensante.

Outro ponto muito problemático é que quando o indivíduo acredita no castigo divino — e, pior ainda, no castigo eterno — é muito comum que perca qualquer limite após cometer um erro. Com certeza o leitor já ouviu inúmeras vezes a afirmação: “já vou para o inferno mesmo, então, um pecado a mais, tanto faz”.

Mas nos enganamos se pensamos que o conceito heterônomo se encontra apenas nas religiões. Infelizmente, mesmo no meio espírita, tal conceito também se infiltrou, sobretudo com a adulteração das obras O Céu e o Inferno e A Gênese, de Allan Kardec. Se hoje ouvimos constantemente, da boca de espíritas, as palavras “carma”, “lei de ação e reação”, “resgate”, isso se dá em grande parte por essas adulterações, passadas de geração em geração e que hoje fazem muitos de nós, espíritas, ainda acreditarmos que o “carma” faz eu renascer nessa vida para “resgatar” um erro passado.

Vejamos bem: é justamente uma das mais sérias adulterações em O Céu e o Inferno que incutiu esse pensamento heterônomo, que atrasa o avanço do Espírito, no seio de uma Doutrina que era totalmente voltada à autonomia do ser. No capítulo VII, item 9 da obra citada, vamos ler: “Toda falta cometida, todo mal realizado é uma divida contraída que deverá ser paga; se não for em uma existência, será na seguinte ou seguintes”. Esse item não existia até a morte de Kardec, sendo que só apareceu em novas edições feitas mais de dois anos após a morte do Professor.

Não — insisto em dizer: no Espiritismo não existe carma, nem “lei de ação e reação” e, muito menos, “resgate”. São conceitos que, no fundo, tem o mesmo efeito da crença no castigo divino e na queda pelo pecado, que foram, ambas, ideias superadas pelo Espiritismo.

A Moral Autônoma

Oposta ao conceito da heteronomia, a autonomia (auto — de si mesmo) coloca o indivíduo como peça central em sua evolução. Depende de sua vontade, única e exclusivamente, tanto suas ações, quanto seus pensamentos e os Espíritos atraídos ou repelidos por estes.

No conceito da autonomia, que não nasceu com o Espiritismo, mas que foi por essa Doutrina ampliado — e demonstrado — o Espírito é senhor de si mesmo e de suas escolhas desde o momento em que desenvolve a consciência e, com isso, passa a ter o livre-arbítrio. Escolhe, assim, entre bem e mau, ou melhor, escolhe sobre formas de agir frente às situações e se felicita ou não com seus efeitos. Contudo, quando o efeito é negativo, não significa que está sendo efetivamente castigado por um Deus punitivo, mas sim que está sofrendo as consequências morais de suas ações. E essas consequências morais só existem para o Espírito que já tem consciência de sua existência, razão pela qual os animais, por exemplo, não as tem.

É assim que, avaliando as consequências de nossos atos e, quando mais conscientes, as imperfeições morais que nos levam a cometer erros, nos impomos, a nós mesmos, vidas cheias de provas e de expiações, com o fim de tentar nos livrarmos dessas imperfeições, a partir do aprendizado:

“Uns, portanto, impõem a si mesmos uma vida de misérias e privações, objetivando suportá-las com coragem”, quando desejam conquistar paciência, resignação ou saber agir com poucos recursos. Outros desejam testar se já superaram as paixões inferiores e então “preferem experimentar as tentações da riqueza e do poder, muito mais perigosas, pelos abusos e má aplicação a que podem dar lugar”. Aqueles que lutam contra os abusos que cometeram, “decidem a experimentar suas forças nas lutas que terão de sustentar em contato com o vício” (O Livro dos Espíritos, p.220).

É claro: ao praticar o mal contra Espíritos Inferiores, teremos uma hipótese quase garantida de recebermos, em troca, a vingança; mas essa vingança, se houver, é efeito da escolha do outro Espírito, e não de uma reação “carmática” de uma suposta “lei de ação e reação” — que, aliás, é uma lei da Física Newtoniana, e não divina. Ao praticar a vingança, o outro Espírito também erra, pois dá margem ao hábito de suas imperfeições e, por isso, pode entrar em um círculo de erro e vingança com o outro que pode durar séculos. Quando isso não ocorre — e esse é o ponto-chave — o efeito é apenas o Espírito que erra permanecer por mais tempo afastado da felicidade dos bons Espíritos, por conta de suas próprias imperfeições.

Não existe “lei de ação e reação” no Espiritismo

Muitas pessoas, apegadas a velhos conceitos do passado, se sentem perplexas com tal afirmação, mas qualquer um que se tenha colocado dedicadamente a estudar o Espiritismo consegue perceber que a moral autônoma, em tudo, é colocada bastante clara aos nossos olhos, através da concordância universal dos ensinamentos dos Espíritos. O que ganhamos ao fazer o bem? Avançaremos mais rápido. E o que sofreremos ao praticar o mal? Ficaremos mais tempo retidos à inferioridade espiritual e à roda das sucessivas encarnações em mundos inferiores.

O Espiritismo nos demonstra que, ao entrarmos no círculo da consciência, passamos a versar sobre nossos próprios destinos, sendo que as provas e as expiações que enfrentamos na atual encarnação se devem às nossas próprias escolhas, realizadas antes de encarnarmos, ainda que muito difíceis, posto que, em estado de Espírito errante (libertos do corpo), avaliamos de forma muito mais clara nossas imperfeições e, assim, escolhemos oportunidades, ainda que sofridas, para aprendermos e nos elevarmos. O Espiritismo, aliás, quando bem compreendido, favorece muito a que tomemos melhores escolhas, pois paramos apenas de desejar a expiação de erros passados, numa mecânica de pecado e castigo, e passamos a escolher oportunidades que nos levem mais a fundo a aprender e a desenvolver melhores hábitos, abafando as imperfeições que tenhamos transformado em hábitos.

Já abordamos um caso bem típico, extraído da Revista Espírita, que trata da questão das escolhas do Espírito quanto às suas provas, tratado por Kardec na evocação do assassino Lemaire, na edição de março de 1858.

Outro caso bastante interessante é o de Antônio B, que, tendo emparedado viva sua esposa na vida anterior, não sabendo lidar com essa culpa, planejou uma encarnação onde terminou enterrado vivo, após ser pensado morto. Acordou no caixão e lá dentro padeceu horrivelmente até sua morte, como se tivesse “pagado” aquela dívida com sua própria consciência. O que realmente interessa nesse caso é que, efetivamente, em vida, foi um homem probo e bom, e não precisaria desse fim trágico para “quitar” qualquer coisa.

Uma prova racional de que não existe tal “lei”: se um Espírito inferior praticar o mal contra um Espírito superior, o que ele receberá em troca? Nada além de compreensão e amor. O próprio exemplo do assassino Lemaire nos demonstra isso. Onde estaria então o retorno? Num outro Espírito que Deus designaria para sua “vingança”, para “cobrar uma dívida”, tornando-o, assim então, também um Espírito em débito para com a Lei?

Não, prezado irmão: não existe retorno senão na constatação, cedo ou tarde, por parte do próprio Espírito, de que ele não é feliz enquanto for imperfeito. Claro, precisamos também lembrar: o Espírito se encontra no meio em que se apraz, e atrai para si os Espíritos de mesma vibração. Portanto, poderá até se sentir alegre, mas jamais será feliz o Espírito que, por suas predisposições, só atrai para si Espíritos inferiores. Nisso também consiste uma espécie de castigo.

A razão explica, conduz e conforta

A maior característica do Espiritismo é ser uma Doutrina científica racional, cuja teoria nasceu da observação lógica dos fatos e dos ensinamentos dos Espíritos. Ora, em se tratando de Deus, qual seria a razão de ele nos punir com castigos, sendo que ele nos criou e sabe que nossos erros nascem de nossas imperfeições? Não há racionalidade nisso. É como se puníssemos nossas crianças por errarem contas de matemática ou por colocarem o dedo na tomada: em ambos os casos, a dor ou a sensação de ficar para trás é a punição em si mesma e, ao adicionarmos a isso uma punição adicional, estamos apenas condicionando o ser a não pensar e apenas a ter medo de errar — e, portanto, a ter o medo de tentar.

Falávamos da razão: pois é por ela, principalmente, que o Espiritismo nos conduz a melhores escolhas evolutivas. Ao entender profundamente a Doutrina, deixamos de fazer escolhas por conta de imposições ou expectativas externas, seja porque “Deus quer”, porque “Jesus espera”, ou porque “o diabo assombra”. Passamos a fazer melhores escolhas, com uma vontade mais ativa, quando entendemos que, quanto mais tempo dermos margem às nossas imperfeições ou à nossa materialidade, mais tempo demoraremos para sair dessa “roda de encarnações” dolorosas e embrutecidas.

Também esse entendimento é um grande remédio contra o suicídio: não mais o vemos com as concepções de pecado e castigo — que ainda são divulgados e defendidos até no meio espírita — mas, sim, com o entendimento racional: se sou Espírito inferior, cheio de imperfeições, significa que a vida é rica oportunidade de aprendizado. Encurtá-la por minha escolha, além de ser uma enorme oportunidade perdida, será apenas perda de tempo, pois me verei, em Espírito, imperfeito como sou, talvez de forma ainda mais escancarada, e terei que voltar e recomeçar uma nova existência para poder aprender e me livrar das imperfeições que me impossibilitam de me tornar mais feliz.

A expiação explicada à luz da Doutrina Espírita

Define assim Kardec, em Instruções práticas sobre as manifestações espíritas, de 1858:

EXPIAÇÃO — pena que sofrem os Espíritos em punição de faltas cometidas durante a vida corpórea. Como sofrimento moral, a expiação se verifica no estado errante; como sofrimento físico, no estado de encarnado. As vicissitudes e os tormentos da vida corpórea são, ao mesmo tempo, provas para o futuro e expiação para o passado.

Parece, por esse texto, que Kardec então defendia que, sim, pagamos na vida atual pelos erros passados? Não exatamente. Não podemos esquecer que, para a Doutrina Espírita, a autonomia, ou o Espírito como ator central de tudo, é a peça-chave de tudo. Portanto, mesmo no caso da expiação, é algo que consiste na escolha do próprio Espírito, com o intuito de buscar superar uma imperfeição adquirida:

A duração do castigo está subordinada ao aperfeiçoamento do espírito culpado. Nenhuma condenação por um tempo determinado é pronunciada contra ele. O que Deus exige para pôr fim aos sofrimentos é o arrependimento, a expiação e a reparação – em resumo: um aperfeiçoamento sério, efetivo, assim como um retorno sincero ao bem.

KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno. Tradução por Emanuel G. Dutra, Paulo Henrique de Figueiredo e Lucas Sampaio. Editora FEAL, 2021.

E, para bem entender o uso dos termos castigo e punição, por Allan Kardec, é necessário entender o contexto filosófico do Espiritualismo Racional, no qual ele estava inserido. Já falamos sobre isso no artigo “Punição e recompensa: você precisa estudar Paul Janet para entender Allan Kardec“.

Contudo, bem sabemos que “os tempos são chegados” e que o planeta Terra deixará, lentamente, de ser um planeta de provas e expiações para ser um mundo de regeneração, onde deverá haver encarnações um pouco mais felizes do que as atuais. Usemos, um momento, a razão para avaliar tudo isso que temos exposto até aqui:

Se a Doutrina Espírita, nos ensinando a moral autônoma, nos traça melhores rumos e melhores escolhas, pensemos: o que ensina mais ao indivíduo? Um sofrimento de mesmo gênero e mesmo grau, como no caso de Antônio B, acima, ou, entendendo as imperfeições que nos levaram a praticar o mal, em primeiro lugar, uma vida cheia de oportunidades, muitas vezes bastante desafiadores e trabalhosas, de exercitarmos o aprendizado e a prática do bem?

Entende onde estamos chegando? Tudo, absolutamente tudo, depende de nossas escolhas frente à nossa capacidade de entendimento consciente de nós mesmos, e, nisso, o estudo do Espiritismo nos alavanca em vários degraus.

É por isso que o mundo vai deixar de ser um mundo de provas e expiações: porque os Espíritos que aqui encarnam passarão a escolher melhor suas encarnações, deixando de aplicar a si mesmos a lei de talião (olho por olho, dente por dente) para, então, cuidarem de desenvolver hábitos morais mais saudáveis. Até nisso contatamos que tudo parte do indivíduo para fora, e não o contrário.

Conclusão

Portanto, irmãos, avante: estudemos o Espiritismo de forma aprofundada e, hoje sabendo das adulterações em O Céu e o Inferno e A Gênese, estudemos as versões originais (já disponibilizadas pela FEAL) de modo a não mais perdermos tempo com conceitos heterônomos e, sobretudo, de modo a não mais repetirmos, no meio Espírita, as lastimáveis afirmações como aquelas que dizem que “fulano nasceu com problemas mentais porque está pagando por um erro na vida passada”. Isso, além de ser um erro absurdo, afasta as pessoas do Espiritismo.

Veja um exemplo:

Pasmemos: essa frase não é de Kardec. Nem parece ser sua, nem pode ser encontrada em NENHUMA de suas obras. Essa é uma prova a mais do quanto o Espiritismo foi invadido por falsas ideias, quase sempre antidoutrinárias.

Nossas provas são ricas oportunidades, quase sempre escolhidas por nós mesmos, sendo impostas apenas nos casos em que não temos condições conscienciais para tais escolhas e, mesmo assim, se dão por ação de benevolência de Espíritos superiores, e não como castigo divino.

A alma ou Espírito sofre na vida espiritual as consequências de todas as imperfeições que não conseguiu corrigir na vida corporal. O seu estado, feliz ou desgraçado, é inerente ao seu grau de pureza ou impureza. (O céu e o inferno).

O maior castigo que há está em continuarmos por eras incontáveis nos arrastando na lama de nossas imperfeições. Isso já é o bastante.


Nota: o nome do artigo vem do texto de mesmo título, que serviu de inspiração a este, do livro Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo, de Paulo Henrique de Figueiredo.

Sugestões de estudos

Sugerimos ao leitor os seguintes conteúdos complementares:




E depois da morte?

A pergunta sempre frequente é: O que será que acontece no futuro do nosso Espírito? O que nos acontece depois da morte? Será que vamos para o Céu Iluminado? Ou será que o Inferno é nosso destino? Quem decide para onde seguimos? Será que encontramos os seres que nos são caros?

O ser humano sempre perseguiu a ideia do que ocorrerá no futuro do seu Espírito. E talvez seja a pergunta mais frequente no meio espírita.

O estudo aprofundado do livro O Céu e O Inferno, ou a Justiça Divina Segundo o Espiritismo, nos faz entender cada vez mais a Doutrina Espírita. Na primeira parte, seu capítulo VIII sob o título As Penas Futuras Segundo o Espiritismo praticamente encontramos a compilação de toda Doutrina tornando-o como se fosse seu coração, ou seja, a parte principal. Ali existe uma série de 25 itens onde cada um foi desenvolvido ao longo de todo a obra, menos, claro dA Genese, que foi publicada após. Os 25 itens elucidam o que acontece ao nosso Espírito após o desencarne. As explicações vieram através de inúmeros Espíritos desencarnados em milhares de comunicações, de vários lugares do mundo, por muitos mediuns distintos. Kardec, através da Revista Espírita, mostrou uma quantidade considerável das comunicações.

A particularidade desse livro é justamente trazer , diante desse material todo, as conclusões de todas as comunicações estudadas. Além disso, na segunda parte do livro, é apresentado muitas dessas mensagens. O conteúdo dessas, publicadas no livro O Céu e o Inferno, é assunto para outro momento.

Voltemos ao capítulo VIII da primeira parte do livro. Ele começa fazendo importantes considerações, que colocamos aqui na integra:

Estando a sorte das almas nas mãos de Deus, ninguém pode neste mundo, por sua própria
autoridade, decretar o código penal divino. Qualquer teoria não é mais que uma hipótese que
só tem o valor de uma opinião pessoal e, por isso mesmo, pode ser mais ou menos engenhosa,
racional, bizarra ou ridícula. Somente a sanção dos fatos pode conferir-lhe autoridade,
fazendo-a passar à condição de princípio.

Na ausência de fatos apropriados para definir sua concepção acerca da vida futura, os
homens deram curso à sua imaginação e criaram essa diversidade de sistemas de que
compartilharam, e compartilham ainda, as crenças. Se alguns homens de elite, em diversas
épocas, entreviram um lado da verdade, a massa ignorante permaneceu sob o império dos
preconceitos que geralmente lhe eram impostos. A doutrina das penas eternas está nesse
número. Essa doutrina teve sua época; hoje ela é repelida pela razão. O que colocar em seu
lugar? Um sistema substituído por outro sistema, ainda que mais racional, sempre terá apenas
maior probabilidade, mas não a certeza. É por isso que o homem, chegado a este período
intelectual que lhe permite refletir e comparar, não encontrando nada que satisfaça
completamente sua razão e responda às suas aspirações, vacila indeciso. Uns, apavorados
pela responsabilidade do futuro e querendo gozar o presente sem constrangimento, procuram enganar-se e proclamam o nada após a morte, crendo assim manter a consciência tranquila;
outros estão na perplexidade da dúvida; o maior número crê em algo, mas não sabe
exatamente no que crê.
Um dos resultados do desenvolvimento das ideias e dos conhecimentos adquiridos é o
método científico96. O homem quer crer, mas quer saber por que crê. Ele não se deixa mais
levar por palavras. Sua razão vigorosa quer algo mais substancial que teorias. Em uma
palavra, ele necessita dos fatos.
Deus, então, julgando que a humanidade saiu da infância, e que o homem está hoje maduro
para compreender verdades de uma ordem mais elevada, permite que a vida espiritual lhe seja
revelada por fatos que põem um termo às suas incertezas, fazendo cair os andaimes das
hipóteses97. É a realidade após a ilusão.
A Doutrina Espírita, no que se refere às penas futuras, não é mais fundada sobre uma teoria
preconcebida do que suas outras partes. Em tudo ela se apoia sobre observações, sendo isso o
que lhe dá autoridade. Ninguém então imaginou que as almas, após a morte, devessem se
encontrar nesta ou naquela situação. São os próprios seres que deixaram a Terra que vêm hoje
– com a permissão de Deus e porque a humanidade entra numa nova fase – nos iniciar nos
mistérios da vida futura, descrever sua posição feliz ou infeliz, suas impressões e sua transformação na morte do corpo. Os espíritos vêm hoje, em suma, completar nesse ponto o ensino do Cristo.
Não se trata aqui da relação de apenas um espírito que poderia ver as coisas somente de seu
ponto de vista, sob um único aspecto, ou ainda estar dominado pelos preconceitos terrestres,
nem de uma revelação feita a um único indivíduo que poderia se deixar enganar pelas
aparências, nem de uma visão extática que se presta às ilusões e é com frequência apenas o
reflexo de uma imaginação exaltada98, mas de inúmeros intermediários disseminados sobre
todos os pontos do globo, de tal sorte que a revelação não é privilégio de ninguém, que cada
um pode ao mesmo tempo ver e observar, e que ninguém é obrigado a crer pela fé de outrem.
As leis que daí decorrem são deduzidas apenas da concordância dessa imensidade de
observações; esse é o caráter essencial e especial da Doutrina Espírita99. Jamais um princípio
geral é retirado de um fato isolado ou da afirmação de um único espírito, ou do ensinamento dado a um único indivíduo, ou de uma opinião pessoal. Qual seria o homem que poderia crer-
se suficientemente justo para medir a justiça de Deus?

Os numerosos exemplos citados nesta obra para estabelecer a sorte futura da alma poderiam
ser multiplicados ao infinito, mas, como cada um pode observar outros análogos, seria
suficiente de certa forma dar os tipos das diversas situações. Dessas observações, podem-se
deduzir as condições de felicidade ou infelicidade na vida futura; elas provam que a
penalidade não falta a nenhuma prevaricação e que, conquanto não seja eterno, o castigo não
é menos terrível segundo as circunstâncias.

Allan Kardec, O Céu e o Inferno

Nota: Allan Kardec define os pressupostos da ciência espírita. Toda teoria, seja proposta por um homem ou um espírito, é uma opinião pessoal. As hipóteses vão do engenhoso ao ridículo. Por isso, o Espiritismo se fundamenta na observação dos fatos, em milhares de depoimentos, para extrair deles os princípios gerais, confirmando o ensinamento dos bons espíritos. É a universalidade do ensino dos espíritos. (Nota 94 de O Céu e o Inferno do editor Paulo Henrique de Figueiredo)

Observem como essa introdução explana o pensamento científico baseado totalmente nos fatos. Não há dogma, não há profetas, não há fantasia.

Depois dessa criteriosa introdução, Allan Kardec segue enumerando os princípios gerais que os muitos Espíritos deram. Eles aparecem de forma progressiva. Eles os definiu como a representação da lei da justiça divina.

Segundo estudamos, não há um sistema estático, um padrão geral onde o futuro seja um Céu Iluminado ou as Escuridão das trevas do Inferno. Mas se voce, leitor, fizer o estudo, vai conseguir chegar às suas próprias conclusões.

Nós o convidamos a leitura e reflexão! Vale muito a leitura.




Análise da obra “O Livro dos Espíritos – A obra interminável”

Sob um título muito interessante, encontrei, hoje, essa obra, um compêndio de perguntas e respostas, distribuída gratuitamente, em PDF, na Internet. Fui então analisá-la, razão pela qual deixo, aqui, minhas observações sobre esse trabalho.

Devo destacar que a intenção não é de denegrir ou zombar dos esforços que muitos fazem, e que, creio eu, tem uma boa intenção, quase sempre. Contudo, precisamos, quando falamos em Espiritismo, entender que essa ciência, em definitivo, não se faz de opiniões isoladas, e que qualquer comunicação espírita que não tenha atendido ao método do duplo controle da razão e da universalidade dos ensinamentos dos Espíritos não pode ser tomada, senão, como uma opinião. No artigo “O papel do pesquisador e do médium nas comunicações com os Espíritos” já apontamos, segundo o Espiritismo, as diversas razões para isso.

Essa obra assim inicia:

Esta obra, elaborada por espíritos encarnados e desencarnados, está estruturada em perguntas e respostas, notas explicativas e textos complementares, notas de rodapé e preces. Destina-se a todos que desejam iniciar ou aprofundar seu vínculo com o Criador através da leitura instrutiva e reflexiva, da oração, da prática do amor e da caridade, do autoconhecimento e da busca constante por reforma íntima

Até bem pouco tempo atrás eu não veria nisso problema algum. Hoje, porém, eu entendo que existe um grande equívoco na tão falada “reforma íntima”, que nunca esteve, nem com essas palavras, nem com outras, na obra de Allan Kardec. Por quê? Simplesmente porque não se reforma o que não está estragado. Ora, somos Espíritos em evolução, errando e acertando e, algumas vezes, adquirindo maus hábitos que se tornam imperfeições. Quando existe a imperfeição, haveremos de ter algum trabalho em nos desapegar dela – aí sim havendo um certo trabalho de “reforma” – contudo não podemos admitir como pressuposto generalizado o fato de que todos nós devamos nos reformar, como o Movimento Espírita tem apregoado largamente. Isso coloca um grande peso de culpa nas costas daqueles que estão simplesmente buscando aprender e evoluir, mas que passam a se acreditar, sempre, como “coisas quebradas” – e isso está, no fundo, ligado às falsas concepções da queda pelo pecado.

Complementação

No capítulo I – Complementação – I – Propósito da Obra, diz-se o seguinte:

1. Com qual propósito foi lançado O Livro dos Espíritos, em 1857, por Allan Kardec?
— Libertar os encarnados através da verdade, instruí-los e, consequentemente, levá-los à prática do bem.

A. Esse propósito foi alcançado?
— Sim; obviamente que depende do livre-arbítrio de cada indivíduo, mas tudo está nos planos de Deus.

B. Diante disso, é necessário complementá-lo?
— Sim, as comunicações e formas de entendimento modificam-se com o passar do tempo, e é importante que os ensinamentos acompanhem essas mudanças.

Nota: A intenção jamais será contestar o que já foi escrito, e sim afirmá-lo com mais clareza e objetividade, para que não haja dubiedade de entendimento, trazendo a verdade de modo mais explícito, com o intuito de promovermos a prática outrora exemplificada pelo mestre Jesus.

É claro que, para complementar alguma coisa, sobretudo quando se trata de complementar o Espiritismo, através de “comunicações de Espíritos Superiores”, é totalmente necessário que uma série de quesitos se cumpra:

  1. O ser humano deve estar preparado para isso, tendo conhecido e entendido profundamente, e de forma contextualizada, tudo aquilo que deu base à formação dessa Doutrina. Como veremos, esse primeiro ponto não foi atendido.
  2. Quando os Espíritos demandam auxiliar o homem a alcançar novos conhecimentos, eles agem distribuindo o mesmo conhecimento através de todos os cantos do mundo, simultaneamente. Isso é necessário a fim de que, à luz da lógica e da razão, os pesquisadores da doutrina possam confrontar as ideias transmitidas por todos os lados, realizando o mesmo método científico que Kardec realizou. Talvez os pesquisadores tenham realizado uma certa análise racional, mas, desde que isso não se dá pela universalidade dos ensinamentos dos Espíritos e desde que não nos foi dado conhecer o método empregado – que parece consistir apenas de perguntas e respostas realizadas a alguns Espíritos, supostamente superiores, através de um médium ou mais, do mesmo grupo, esse segundo ponto também não foi atendido.

Logo em seguida, apresenta-se o seguinte:

2. Quando a primeira obra foi lançada, o intuito era a criação de uma nova religião?
— No lançamento da primeira obra, a intenção era auxiliar na transformação da humanidade mediante o conhecimento, fazendo-a abdicar do orgulho e do egoísmo, potencializando a prática do amor através da caridade. Toda religião criada com o intuito de agregar ao invés de segregar os encarnados é positivamente encarada (ver item V – Religião não pode causar divisão).

E, em complemento a isso, vamos buscar o que é apresentado no item V do mesmo capítulo:

16. Como promover a integração do Espiritismo com as demais religiões?
— O conteúdo deve ser o guia de vossa consciência; esta não possui religião, apenas o discernimento do certo e do errado. Logo, tudo aquilo que a agradar deverá ser fator de união, e não de segregação.

Ora, o interlocutor parte do conceito errado de que o Espiritismo é mais uma religião, em contrário àquilo que Allan Kardec já demonstrou, no passado (leia mais clicando aqui). Assim, enviesa, com um conceito prévio, a característica da resposta.

Sobre a confiabilidade da obra, há o que segue:

7. O que garante que este trabalho seja oriundo de espíritos elevados?

— A garantia está na coesão e no conteúdo, alinhando-os ao que sentis no âmago, para entender se há coerência ou não. Ao filtrar, através da consciência, percebereis que a intenção da obra não é a de demonstrar a elevação de quem vos instrui, assim como não é a de vos convencer que apenas há uma nova comunicação, mas, sim, de fazer-vos praticar o amor e o bem.

Grifos meus.

Quando o Espírito supostamente diz que a garantia está na coesão e no conteúdo, “alinhando-os ao que sentis no âmago”, está apenas afirmando que as respostas serão coesas, já que nascem de uma mesma ideia, em um mesmo grupo – o que está em contrário com o método de Kardec – e abrem o precedente para que esse grupo, baseado em suas ideias, e vendo-as corroboradas pelos Espíritos, apenas as confirmem. Depois, em “ao filtrar, através da consciência”, abre-se a precedência para que o “filtro” seja a própria consciência, e não a lógica racional e científica de Kardec que, aliás, nunca se deu por satisfeito com qualquer ideia espírita, sem julgá-la sob o crivo da razão e, muitas vezes, lutava contra elas, de acordo com a ciência, para aceitá-las apenas quando verificava que a ideia atendia, com excelência, a todas as questões envolvidas.

Segue o autor:

8. O que Kardec diria a respeito de um complemento de sua obra de codificação?

— Que jamais pretendeu ser dono da verdade absoluta, mas abrir o caminho para que, por meio da ciência e das descobertas, as atualizações acontecessem de forma natural e constante. Diria, ainda, que a verdade acompanha a evolução moral humana; logo, necessita de atualizações conforme evoluímos.

Além disso, diria Kardec que, sem o método do duplo controle, os estudiosos seriam facilmente levados ao engano.

A. Como os espíritas que têm como verdade o fato de a primeira obra ser imutável poderão receber este complemento?

— Esperamos que o recebam com muito amor, mas, se assim não o for, obtê-lo-ão pela coerência, rebuscando na própria consciência o discernimento necessário.
Nada é imutável, apenas Deus. Todos sois aprendizes do eterno progresso; hoje conheceis mais do que ontem e menos do que amanhã.

É preciso muito cuidado com os conteúdos “complicados” que se encontram escondidos sob as diversas verdades, tomadas como refrões. Não digo que os Espíritos comunicantes tenham necessariamente desejado realizar uma mistificação, mas, no mínimo, refletiam as mesmas tendências e os mesmos pensamentos do grupo em questão, que se acreditava no papel de trazer, por ele mesmo, a atualização do Espiritismo, o que também está em contrário às lúcidas palavras de Allan Kardec na Revista Espírita de dezembro de 1868.

Uma outra questão é que precisamos notar as crenças das quais se achavam imbuídos os envolvidos nessa pesquisa: por que a necessidade de copiar a forma de se expressar como naquela época, imitando a linguagem de O Livro dos Espíritos? “Obtê-lo-ão”? Ninguém mais utiliza essas palavras, atualmente, e é natural que os Espíritos se comunicassem de forma diferente, hoje em dia, já que eles não se prendem às linguagens.

Sobre o trabalho dos encarnados, é dito que:

12. Os participantes podem ter sido influenciados por falsos profetas?

— Conhecemos a veracidade de algo pelo conteúdo. A forma de realização também tem relevância. Falsos profetas fazem bastante alarde, mas não conseguem sustentar a mentira por muito tempo.

O simples fato de esta obra ter sido concluída com tanto esforço, dedicação e de maneira despretensiosa já anula essa possibilidade.

Ora, Os Quatro Evangelhos, de Roustaing, desmentem essas afirmações: as ideias erradas foram mantidas do início ao fim, e foi produzida com bastante esforço das partes envolvidas. Se o esforço é despretensioso ou não, é outro problema. Aliás, o Espírito não precisa querer mentir para produzir uma obra com conceitos errados: basta que ele acredite nesses conceitos, apresentando-os. Vemos isso em André Luiz o tempo todo.

Outra crítica à obra é que ela não deixa claro, senão nas perguntas e respostas, de quem é o texto apresentado: é do grupo? É do revisor? É do Espírito? Assim acontece em cada uma das introduções aos capítulos.

Elementos Gerais do Universo

O capítulo II se inicia com um texto falando sobre quatro mudanças energéticas do globo terrestre, algo que mais parece ter saído das doutrinas orientais, que tanto falam das energias, do que da Doutrina Espírita. O texto é atribuído a Sócrates, um nome de peso, como que para dar mais confiabilidade a ela.

24. Existe hierarquia predeterminada na Criação ou ela é fruto do processo evolutivo?
— Na Criação, a “hierarquia” é consequência do processo evolutivo; conforme a evolução acontece, o ser ou elemento aumenta sua posição hierárquica.

Apesar de o autor lançar nota em comparação à questão nº 29 de OLE (O Livro dos Espíritos), a resposta não tem nada do que diria um Espírito conhecedor das verdades doutrinárias registradas por Kardec. Em OLE, os Espíritos respondem suscintamente que os Espíritos pertencem a diferentes ordens, e não a diferentes hierarquias, que são conceitos bastante diferentes. Além disso, o Espírito diz que “o ser ou elemento aumenta sua posição hierárquica”: ora, acaso elementos evoluem?

Em seguida, em III – Descobertas Científicas, o autor, quem quer que ele seja, parte de um pressuposto errado, segundo o Espiritismo, de que a moral deve avançar para que, apenas depois, avancemos em ciência. Isso está claramente em oposto àquilo que eles mesmos apresentaram, pouco antes, na nota 27, de O Livro dos Espíritos, e confirmado pelas observações:

O Livro dos Espíritos, questão 780: “O progresso moral segue sempre o progresso intelectual? — É a sua consequência, mas não o segue sempre imediatamente.”

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Grifo meu.

Quando o autor diz que “um passo por vez. Solidificando a moral, a ciência dará saltos e desvendará muitos mistérios“, está deixando de lado o fato notório de que o Espírito somente progride moralmente quando faz um esforço de sua vontade consciente. Isso demanda avanço intelectual.

No parágrafo imediatamente anterior, é dito que “O avanço tecnológico poderá ser a salvação ou a destruição do planeta. É por esse motivo que os homens só irão possuir mais respostas quando tiverem a moral compatível com esse privilégio“. É como se dissessemos que Deus coloca um limite para a inteligência humana, devendo o homem primeiro aprender a amar para depois aprender a construir foguetes. Isso seria ilógico, porque é a consequência da construção do foguete, que gera a bomba que é utilizada para dizimar milhares de pessoas, que justamente promove o avanço moral, pelas consequências do ato.

Em seguida, é feita a seguinte pergunta:

28. Qual é a relação entre a ciência material e a espiritual?

— Na ciência material, os recursos são limitados, já na espiritual, são ilimitados. A ciência espiritual complementa a material, pois, oferecendo recursos infinitos, faz com que os avanços científicos aconteçam pelo uso da inteligência humana.

O que é falso. A ciência humana avança pelo desenvolvimento do intelecto do homem, e não por revelações científicas dos Espíritos, que, aliás, nada tem de materialista. Espíritos não desenvolvem automóveis super tecnológicos, porque eles não precisam da matéria, de maneira alguma, senão quando encarnam para avançar.

Na questão 35, outra incongruência é encontrada:

35. Desde a primeira obra, houve relevantes progressos na ciência.
Como os espíritos enxergam esse avanço?

— Com naturalidade, pois é um reflexo do esforço coletivo da humanidade. Entretanto, a utilização dessas descobertas nem sempre foi positiva; elas foram permitidas por Deus para que os encarnados as utilizassem para o bem, mas, em muitas ocasiões, utilizaram-nas para o mal.

Deus não permite nem proibe a utilização da ciência, nem seu avanço. Ela está de acordo com a capacidade da intelectualidade humana. O ser humano, pelo uso da inteligência, muitas vezes comete erros e, com eles, aprende. Isso não é fazer o mal: é o fruto do desenvolvimento.

O capítulo segue com uma enorme quantidade de perguntas e respostas sobre conceitos científicos que, na verdade, não levam a lugar algum. Não vou repetí-los aqui, mas deixo a questão: estaria nisso a “atualização científica” da Doutrina? Ora, sabemos que, no que tange à ciência, um dos pontos que mais foi estudado por Allan Kardec, embora limitado à ciência de sua época, é a questão do Fluido Cósmico Universal e do perispírito. Não seria esse um conhecimento importantíssimo em que avançar, frente às nossas descobertas científicas?

Outra questão: os Espíritos superiores, como demonstra Kardec em A Gênese, cap. XVI – Teoria da Presciência, não tem os nossos referenciais materiais para falar em questão de tempo ou questões que pertencem à ciência humana. É por isso que, mesmo na época de Kardec, eles jamais entraram no âmbito das particularidades, cabendo ao homem, no papel de pesquisador, tirar suas conclusões, com base nas observações, e não nas “revelações”.

Criação – A Infância do Espírito

Esse capítulo inicia com um questionamento respondido de forma totalmente contrária à Doutrina dos Espíritos:

60. O período de infância dos espíritos ocorre em um mundo primitivo?
— Sim, na maioria dos casos, a infância espiritual inicia-se no mundo primitivo, onde começa o estágio hominal.

A. Por que na maioria?
— A evolução de cada ser depende de suas escolhas, livre-arbítrio e merecimento. Em casos raros, o animal também pode dar saltos evolutivos, a ponto de passar a infância espiritual em outros mundos.

Nota: Nesses casos, em que o salto ocorre do mundo animal terrestre para gerar uma infância em outro mundo, há merecimento daquele espírito, que, através de seu esforço e resignação, ainda que com poucas ferramentas intelectuais, conseguiu evoluir a ponto de não necessitar vivenciar a infância em um mundo de provas e expiações. Embora pareça confuso aos vossos olhos, isso é uma prova de que Deus reconhece o esforço de forma individual e particular.

Grifos meus.

As respostas atribuídas a uma origem espiritual estão em total contrariedade ao Espiritismo, como dissemos. A evolução não dá saltos, muito menos de um Espírito vivenciando a fase animal, onde não tem consciência de si mesmo, nem livre-arbítrio, para vivenciar logo em seguida uma fase humana. Aliás, está em total contradita à resposta dada em OLE: “Há entre a alma dos animais e a do homem distância equivalente à que medeia entre a alma do homem e Deus”. Além disso, comete-se o erro absurdo de supor que um Espírito possa evoluir sem passar pelas provas, ao menos, que são as vicissitudes materiais que estimulam-no ao desenvolvimento intelectual e moral.

Logo em seguida, em II – Princípio material, na pergunta 62:

62. As moléculas possuem princípio espiritual?

— Não, elas são partes da matéria. Possuem fluidos vitais, que, por sua vez, as sustentam.
Os movimentos moleculares iniciam-se no princípio vital e são compostos por fluidos vitais e magnéticos. As moléculas são exclusivamente orgânicas, e não espirituais, porém servem ao espírito, por meio da matéria, quando compõem o organismo humano.

Grifos meus

O primeiro erro está em supor o fluido vital, que era uma teoria materialista da ciência da época de Kardec que, não podendo explicar o invisível, supôs a existência de partículas imponderáveis, como o fluido calórico, o fluido elétrico, etc. Allan Kardec, que inicialmente partiu dessa ideia, em A Gênese, abandonou-a, ficando apenas com o termo “princípio vital”, genérico, e com a teoria de Mesmer – a de que tudo o que existe, em questão de matéria e energia (é óbvio que os Espíritos não fazem parte de nenhum dos dois) se originam do Fluido Cósmico Universal. Isso está bem explicado em A Gênese:

O princípio vital é algo distinto, tendo uma existência própria? Ou então, para ser
integrado no sistema de unidade do elemento gerador, é apenas um estado particular, uma
das modificações do fluido cósmico universal, que se torna princípio de vida, como se torna
luz, fogo, calor, eletricidade? É nesse último sentido que a questão é resolvida pelas
comunicações reproduzidas anteriormente. (Cap. VI, Uranografia geral).

A Gênese – Editora FEAL

Me espanta, aliás, que aos pesquisadores, tão compenetrados de fórmulas científicas, as quais discutiram com os Espíritos, tenha faltado esse princípio fundamental teorizado por Mesmer e sustentado pela ciência moderna. Veremos, logo mais, que esse mesmo erro provocou outros enganos, na “atualização” de O Livro dos Espíritos, pelo grupo em questão.

Chegado a este ponto, agora noto que errei: as notas são quase todas, senão todas, dos Espíritos. Me pergunto o que fizeram os pesquisadores além de analisá-las, segundo suas ideias, e aceitá-las.

Fluidos no Universo

O capítulo em questão comete os mesmos erros citados acima: não tendo conhecido e compreendido a ciência do magnetismo de Mesmer e as concusões de Kardec, partem dos falsos pressupostos de uma ciência ultrapassada. Ou seja: para complementar o Espiritismo que, segundo pressupostos, estaria ultrapassado em ciência, utilizam uma ciência que o próprio Espiritismo já ultrapassou, há mais de 100 anos. Estranho, não?

É assim que se repete uma opinião erradíssima e que, aliás, seria prontamente corrigida por um Espírito superior:

74. É o fluido vital que determina o tempo de permanência humana na Terra?
— A quantidade de fluido vital é Determinada por Deus, porém, através das vossas escolhas, podeis encurtar ou prolongar o tempo de permanência no
orbe.

Em primeiro lugar, como demonstramos, não existe fluido vital, muito menos uma quantidade dele. Em segundo lugar, não é Deus quem determina nada, mas nós mesmos. É exatamente por isso que animais, sem o livre-arbítrio, morrem, de causas naturais, quase todos numa mesma idade, segundo suas espécie e raça, ao passo que o homem morre, das mesmas causas, nas mais diversas idades. E o fundamento disso também está em A Gênese, apresentado por Kardec:

Para ser mais exato, é preciso dizer que é o próprio Espírito que elabora seu envoltório e o adapta às suas novas necessidades. Ele aperfeiçoa, desenvolve e completa seu organismo à medida que experimenta a necessidade de manifestar novas faculdades. Em uma palavra, ele o molda de acordo com sua inteligência. Deus lhe fornece os materiais. Cabe a ele fazer uso. É dessa forma que as raças mais avançadas têm um organismo, ou se preferem, uma ferramenta mais aperfeiçoada que a das raças primitivas. Assim se explica igualmente o estilo especial que o caráter do Espírito imprime aos traços da fisionomia e as maneiras do corpo.

KARDEC, Allan. A Gênese. Editora FEAL.

Os erros, baseados nesses falsos conceitos, seguem a mancheias, no capítulo. Não vou comentá-los. No capítulo seguinte, “Transmissão Energética e Fluídica”, os autores continuam repetindo conceitos falsos, baseados nos mesmos erros, de origem materialista, difundidos pelos fluidistas do passado, que se contrapunham às ideias das ciências do Magnetismo e do Espiritismo. É assim que repetem, ipsis leteris, a erradíssima ideia de que o passe seria uma “transmissão energética e/ou fluídica”. Isso é falso, tão falso quanto as ideias que os supostos Espíritos repetem na resposta à pergunta nº 92:

  • “O magnetismo instiga a curiosidade e é uma ciência intrigante, mas exige o conhecimento necessário para não oferecer riscos a quem o pratica ou a quem o recebe. Não podeis incluir sua prática na Doutrina ou confundi-lo com fluido magnético.” – Não existe fluido magético, então do que é que esse Espírito está falando?
  • “Magnetizar é uma atividade antiga, que se utiliza do fluido vital” – não existe fluido vital!
  • “Fluido magnético é diferente de magnetismo e é exalado sempre que há a necessidade, através do concurso dos desencarnados ou de encarnados com o devido preparo” – mesmo erro, com um agravante: o magetismo é a interação da vontade, através do pensamento consciente, sobre a vontade do outro, que também precisa estar conscientemente com vontade de ser ajudado. Não há transferência de nada ((Mesmer – A Ciência Negada do Magnetismo Animal, por Paulo Henrique de Figueiredo)).

Retorno à Vida Espiritual

É claro que, pelo que vimos, não poderia faltar, ainda que em contrário a tudo aquilo que o Espiritismo já ensinou e que a razão confirma, uma grande discussão a respeito dos conceitos de “colônias espirituais”, umbral, dores físicas nos Espíritos, etc. É a velha mania de querer materializar o mundo dos Espíritos.

Sexualidade, Sexo e Moral

Para completar nossa análise, nos reportamos à questão nº 505, Parte Terceira, cap. III – aborto:

505. Ocorrendo concepção mediante o estupro, é correto abortar?

— Não, não é correto em nenhuma circunstância, pois todos deveis passar pelas vossas próprias provas. Ninguém é mãe ou filho por casualidade. A lei divina é sábia e tem como principal meta corrigir ou atenuar sofrimentos. A lei de causa e efeito gera responsabilidades por todos os vossos atos, desta e de outras encarnações. Interromper a reencarnação de um espírito, mesmo decorrente de um estupro, não é correto: somente trará mais dor e ampliará o sofrimento dos envolvidos. A preservação da vida diante da dor da violência é um ato de amor. Que possais sempre combater o mal com o amor, por mais difícil que seja.

Grifos meus

Um completo desparate! Em contrário daquilo que encontramos em O Livro dos Espíritos, pergunta 359,

359. No caso em que o nascimento da criança puser em perigo a vida da mãe, haverá crime em sacrificar-se a primeira para salvar a segunda?

“Preferível é se sacrifique o ser que ainda não existe a sacrificar-se o que já existe.”

A resposta à questão nº 505, da obra em análise, afirma que jamais o aborto deve ser cometido. Pior: que se a mulher foi estuprada, é porque, nas palavras dos Espíritos, “a lei de causa e efeito gera responsabilidades por todos os vossos atos, desta e de outras encarnações“. Em outras palavras: o que está sendo dito nessa obra, que visa complementar e atualizar o Espiritismo é que a mulher estuprada apenas está pagando, pela lei de talião, uma falta de outra vida. Isso é um absurdo completo e desmoralizante. Preciso reafirmar, em encontro a OLE, que o aborto é preferível quando a mãe está em risco, e quem somos nós para avaliar o risco emocional e psicológico de uma mulher que tenha passado por tal trauma, que nasce do crime praticado por escolha do outro, e não pelo efeito de uma suposta cobrança de dívidas!

Conclusão

A obra, em si, parece uma verdadeira luta de incongruências, falsos conceitos, e algumas verdades. Parece que, se há realmente a participação de mais de um Espírito, esses Espíritos tem conhecimentos diferentes, pois a contradição é frequente. Há diversas ideias absurdas e erradas, em contradita com os postulados mais básicos do Espiritismo, como há algumas verdades espalhadas pelo meio. Que fazer, então? Cremos que o melhor é seguir o conselho do Espírito de Erasto:

[…] é melhor repelir dez verdades momentaneamente do que admitir uma só mentira, uma única teoria falsa, porque sobre essa teoria, sobre essa mentira podereis construir todo um sistema que desmoronaria ao primeiro sopro da verdade, como um monumento erigido sobre areia movediça, ao passo que se hoje rejeitardes certas verdades, certos princípios, porque não vos são demonstrados logicamente, logo um fato brutal ou uma demonstração irrefutável virá afirmar-vos a sua autenticidade.

Resta reafirmar que a intenção deste artigo não é nada mais que a de alertar, inclusive ao grupo de onde se originou esse livro, que tenham muito cuidado para não se envolverem sob essas teias de falsas ideias, que muito custarão sua tranquilidade, no futuro. Que estudem a fundo Allan Kardec, inclusive – e principalmente – na Revista Espírita. Que estudem as novas obras, que vêm recuperar os os conhecimentos esquecidos no tempo. Que deixem de lado, pelo menos por ora, os conceitos resultantes de obras mediúnicas, de modo a buscarem o aprendizado necessário. E que não se esqueçam, jamais, da importantíssima exortação de Allan Kardec, em A Gênese:

Generalidade e concordância no ensino, esse o caráter essencial da doutrina, a condição mesma da sua existência, donde resulta que todo princípio que ainda não haja recebido a consagração do controle da generalidade não pode ser considerado parte integrante dessa mesma doutrina. Será uma simples opinião isolada, da qual não pode o Espiritismo assumir a responsabilidade.

Essa coletividade concordante da opinião dos Espíritos, passada, ao demais, pelo critério da lógica, é que constitui a força da doutrina espírita e lhe assegura a perpetuidade.

É claro que o Espiritismo, até certo ponto, na parte que tange ao conhecimento humano, é interminável, mas não será sobre erros que ele será continuado, principalmente quando se parte do erro fundamental, que é tratar os Espíritos como reveladores, não respeitando o método necessário, pois os Espíritos não são reveladores da verdade, a Doutrina não se faz apenas por perguntas e respostas, mas também pela investigação e a observação dos Espíritos de todas as ordens, dos mais inferiores aos mais superiores.

É interessante notar, além disso, que, em se tratando de supostos Espíritos superiores, conforme pressupõem os pesquisadores humanos envolvidos, em nenhum momento corrigiram os erros flagrantes dos últimos, já que o conhecimento doutrinário já existe. Ao invés disso, sempre corroboraram as informações e os conceitos errados dos quais partiam os encarnados.

O erro principal desta obra surge da ausência de observação, como demonstramos, das características fundamentais da ciência espírita, tão bem explicada por Allan Kardec na introdução de O Evangelho Segundo o Espiritismo (grifos meus):

A concordância no que ensinem os Espíritos é, pois, a melhor comprovação. Importa, no entanto, que ela se dê em determinadas condições. A mais fraca de todas ocorre quando um médium, a sós, interroga muitos Espíritos acerca de um ponto duvidoso. É evidente que, se ele estiver sob o império de uma obsessão, ou lidando com um Espírito mistificador, este lhe pode dizer a mesma coisa sob diferentes nomes. Tampouco garantia alguma suficiente haverá na conformidade que apresente o que se possa obter por diversos médiuns, num mesmo centro, porque podem estar todos sob a mesma influência.”

Num momento em que os esforços pela retomada do Espiritismo se multiplicam, se multiplicam os esforços contrários, com a finalidade (tola, convenhamos) de causar confusão e atraso. É necessário estar em guarda, sobretudo no que tange ao frequente convite das sombras, instigado pelas imperfeições humanas, quais a vaidade e o orgulho. Ora, haverá algo mais instigante, nesse sentido, do que se dizer o novo eleito a continuar o grandiosíssimo trabalho de Allan Kardec? Não sejamos nós, e não seja você, em seu grupo e em suas palestras, a auxiliar o trabalho dos Espíritos que ainda não entenderam o bem e que contrários ao progresso da humanidade.

“Espíritas!, amai-vos, eis o primeiro ensinamento. Instruí-vos, eis o segundo.” – Espírito de Verdade




Punição e recompensa: você precisa estudar Paul Janet para entender Allan Kardec

Paul-Alexandre-René Janet

Nasceu em 30 de abril de 1823, em Paris, e morreu em 4 de outubro de de 1899, na mesma cidade.

Estudante da École normale supérieure em 1841, agrégé em filosofia em 1844 (primeiro) e doutor em letras em 1848, tornou-se professor de filosofia moral em Bourges (1845-1848), em Estrasburgo (1848-1857), depois em lógica em o Lycée Louis-le-Grand em Paris ( 1857 – 1864 ). A partir de 1862, foi professor adjunto de filosofia na Sorbonne, depois em 1864, ocupou a cátedra de história da filosofia nesta universidade até 1898. Foi eleito membro da Academia de ciências morais e políticas em 1864 e também foi membro do Conselho Superior da Instrução Pública em 1880.

A sua obra centra-se principalmente na filosofia, na política e na ética , em consonância com o ecletismo de Victor Cousin e, através dele, de Hegel.

https://pt.frwiki.wiki/wiki/Paul_Janet_%28philosophe%29

Janet foi contemporâneo de Allan Kardec. Suas obras demonstram, com excelência, o contexto filosófico no qual o codificador estava inserido, fazendo uso de seus conceitos.

Muitos, ao lerem Kardec, supõem que ele, devido às palavras que utilizou em suas obras, estava apenas reproduzindo ideias e conceitos originários da Igreja Católica. Nada mais longe da verdade, como veremos a seguir, pois, Kardec estava, na verdade, usando os conceitos largamente difundidos e compreendidos no meio da sociedade culta francesa que, aliás, era a classe que mais se interessava pelo estudo do Espiritismo.

Paulo Henrique de Figueiredo explica:

Durante o século dezenove, o que chamamos de ciências humanas foram estabelecidas a partir de um pressuposto espiritualista para sua constituição. Enquanto isso, nas ciências naturais, como Física e Química, predominavam o materialismo. Essa condição é muito diferente do que estamos habituados atualmente, quando a universidade é quase completamente orientada pelo pensamento materialista.

Essa corrente de pensamento era conhecida como Espiritualismo Racional. Pois era completamente independente das religiões formais e seus dogmas. A base fundamental era a psicologia, ciência da alma, que tinha como diretriz: “O ser humano é uma alma encarnada”.

Como está extensamente explicado no livro Autonomia, a história jamais contada do Espiritismo, Allan Kardec fez da psicologia a base conceitual para desenvolver a Doutrina Espírita. Seu jornal de publicação mensal era a Revista Espírita, jornal de estudos psicológicos.

O Espiritualismo Racional foi ensinado, desde 1830, na Universidade de Paris, também na Escola Normal, onde os professores se formavam, e também nos Liceus, na educação dos jovens. Para estes, haviam manuais, como o de Paul Janet. Esse manual foi traduzido para diversos idiomas e adotado em muitos países, inclusive no Brasil.

Esse manual é de fundamental importância para se compreender a base conceitual dos estudos de Kardec, principalmente quanto à moral espírita.

FIGUEIREDO, Paulo Henrique de. Tratado de Filosofia Paul Janet. Portal do Espírito, 22 de julho de 2019. Disponível em <https://espirito.org.br/autonomia/livros-tratado-de-filosofia-paul-janet>. Acesso em 19 de maior de 2022.

Utilizando, dissemos, os conceitos do Espiritualismo Racional, que era ensinado na Universidade de Paris e na Escola Normal Superior de Paris, Kardec desenvolve os mais diversos conceitos filosóficos da Doutrina Espírita, à luz dos ensinamentos concordes dos Espíritos. Assim, vai dar um desenvolvimento profundo às ideias da moral tratada por esses estudiosos, abordando os conceitos de dor e prazer, bem e mal, dever, caridade desinteressada, liberdade, mérito, punição e recompensa. Vamos, a título de ilustração, demonstrar a construção desses últimos dois conceitos:

A recompensa e a punição

Em sua obra Pequenos Elementos de Moral, disponível para download, em PDF, neste link, Janet constrói os diversos conceitos filosóficos que vão dar suporte àqueles da recompensa e da punição. Ele assim se expressa: “o prazer, considerado como a consequência devida à realização do bem, chama-se recompensa, e a dor, considerada como a consequência legítima do mal, chama-se punição”.

O prazer, para ele, é a busca de vivenciar aquilo que a vida permite, sendo que existiriam, assim, os prazeres bons e os prazeres ruins, variando, nesse intervalo, segundo certeza, pureza, intensidade, duração, etc. Assim, o prazer fugitivo da embriaguez seria um mau prazer, enquanto que o prazer durável da saúde seria um bom prazer:

Há prazeres muito vivos, mas passageiros e fugitivos, como os prazeres das paixões ((Assim define o dicionário Oxford: “no kantismo, inclinação emocional violenta, capaz de dominar completamente a conduta humana e afastá-la da desejável capacidade de autonomia e escolha racional.”. Esse é o sentido de paixão, utilizado por Kardec e pelos filósofos de sua época)). Há outros que são duráveis e contínuos, como os da saúde, da segurança, da comodidade, da consideração. Sacrificar-se-ão esses prazeres que duram toda a vida a prazeres que duram apenas uma hora?

JANET, 1870 ((JANET, Paul. Pequenos Elementos de Moral. Tradução por Maria Leonor Loureiro. Paris, 1870))

Portanto, moralmente, o ser humano deveria buscar, sempre, os bons prazeres, que não produzam arrependimentos, preterindo-os aos maus prazeres, que geram arrependimentos e complicações:

A experiência nos ensina que não se deve buscar os prazeres sem discernimento e sem distinção, que é preciso usar a razão para compará-los entre si, sacrificar o presente incerto e passageiro a um futuro durável, preferir os prazeres simples e pacíficos, não seguidos de arrependimentos, aos prazeres tumultuosos e perigosos das paixões etc., numa palavra, sacrificar o agradável ao útil.

Ibidem

Fica claro, portanto, que o conceito de recompensa, utilizado nesse contexto, está ligado ao entendimento do regozijo de ter realizado uma ação ligada ao bem, ao passo que a punição é a dor gerada como consequência legítima do mal. Não existe nenhuma atribuição, portanto, a uma imposição mecânica de uma suposta “lei do retorno” ou “lei de reparação”, por Deus ou pelo “Universo”, pela má ação, como muitos insistem em apregoar, nem existem prêmios dados pela boa ação. Tudo é uma consequência moral, do próprio indivíduo para consigo mesmo, o que depende, necessariamente, do conhecimento da Lei:

Em moral, como em legislação, a ninguém aproveita o desconhecimento da lei. Há, portanto, em todo homem um certo conhecimento da lei, quer dizer, um discernimento natural do bem e do mal: esse discernimento é o que se chama a consciência ou às vezes o senso moral.

Ibidem

Porém, para que o indivíduo aja moralmente, é preciso que tenha o livre-arbítrio:

Não basta que o homem conheça e distinga o bem e o mal, e experimente por um e outro sentimentos diferentes. É preciso ainda, para ser um agente moral, que o homem seja capaz de escolher entre um e outro ((Aqui os estudos do Espiritismo nos conduzem a outro entendimento: na verdade, o homem não escolhe entre bem e mal, porque, no fundo, se escolhe mal, é porque ainda não conhece a lei. O Espírito que realmente conhece e entende a Lei de Deus somente faz o bem, sempre.)); não se pode ordenar-lhe o que ele não poderia fazer, nem lhe proibir o que ele seria forçado a fazer. Esse poder de escolher é a liberdade, ou livre-arbítrio.

Ibidem

Mas é importante lembrar que o homem, como uma alma encarnada, é um conceito básico do Espiritualismo Racional, como define Janet, na mesma obra:

Toda lei supõe um legislador. A lei moral suporá, portanto, um legislador moral: é assim que a moral nos eleva a Deus. Sendo toda sanção humana ou terrestre demonstrada insuficiente pela observação, a lei moral precisa de uma sanção religiosa. É assim que a moral nos conduz à imortalidade da alma.

Disso tudo, nasce o entendimento do vício e da virtude:

As ações humanas, dissemos nós, são ora boas, ora más. Essas duas qualificações têm graus, por causa da importância ou da dificuldade da ação. É assim que uma ação é conveniente, estimável, bela, admirável, sublime etc., por outro lado, a ação má ora é uma simples falta, ora um crime. Ela é condenável, baixa, odiosa, execrável etc.

Se, em um agente, se considerar o hábito das boas ações, uma tendência constante a se conformar à lei do dever, esse hábito ou tendência constante chama-se virtude, e a tendência contrária chama-se vício.

Ibidem

O mal, porém, é um julgamento de si mesmo (ninguém pode fazer mal ao outro ((Pelo princípio racional da autonomia, desenvolvido até aqui, o indivíduo pode apenas praticar um mal físico contra outrem, mas nunca um mal moral. Um sujeito pode roubar os pertences de outra pessoa, o que a ela causará algumas dificuldades, mas, em verdade, ele faz o mal a si mesmo, pois fere a lei moral, pelo que sofrerá a depender de seu estado de consciência. A vítima, por sua vez, à parte do contratempo material, poderá ou não fazer o mal a si mesma, à medida que se apegue ou não ao acontecido e gere, para ela mesma, algum sofrimento. Isto também dependerá de sua consciência da lei moral))), que depende da consciência do que se faz:

O julgamento que se faz de si mesmo difere segundo o princípio da ação que se admite. Aquele que perdeu no jogo pode afligir-se consigo mesmo e com sua imprudência ((Ou seja: ele pode perceber que fez um mal a si mesmo, perdendo dinheiro no jogo)); mas aquele que tem consciência de ter enganado no jogo (ainda que tenha ganhado por esse meio) deve desprezar-se quando julga a si mesmo do ponto de vista da lei moral ((Porque, ao se conscientizar do que fez, percebe que prejudicou o outro, e isso lhe gera remorso)).

Ibidem

E então, pouco mais adiante, ainda na mesma obra, Janet desenvolve o entendimento da satisfação moral e do arrependimento:

Relativamente às nossas próprias ações, os sentimentos se modificam conforme a ação esteja por fazer ou já feita. No primeiro caso, sentimos de um lado uma certa atração pelo bem (quando a paixão não é suficientemente forte para sufocá-lo), de outro, uma repugnância ou aversão pelo mal (mais ou menos atenuada segundo as circunstâncias pelo hábito ou pela violência do desejo). Esses dois sentimentos não receberam usualmente nomes particulares.

Quando ao contrário a ação foi realizada, o prazer que daí resulta, se agimos bem, chama-se satisfação moral, e se agimos mal, remorso ou arrependimento.

O remorso é a dor abrasadora, e, como indica a palavra, a chaga que tortura o coração após uma ação condenável. Esse sofrimento pode se encontrar naqueles mesmos que não têm nenhum pesar por terem feito mal e voltariam a fazê-lo. Ele não tem, portanto, nenhum caráter moral, e deve ser considerado como uma espécie de castigo infligido ao crime pela própria natureza. “A malícia, disse Montaigne, envenena-se com seu próprio veneno. O vício deixa como que uma úlcera na carne, um arrependimento na alma, que sempre se arranha e ensanguenta a si mesma.”

O arrependimento é também, como o remorso, um sofrimento que nasce da má ação; mas junta-se a ele o pesar por a tê-la realizado, e o desejo (ou a firme resolução) de não mais realizá-la.

Para Janet, então, o remorso não seria, ainda, o sofrimento gerado pelo arrependimento, mas apenas uma certa tortura por realizar a ação condenável. Em outras palavras, não se sofre porque se realizou o mal, mas apenas porque o que se realizou é reprovável. E então, Kardec, em O Céu e o Inferno ((Lembrando, sempre, que essa obra foi adulterada e mutilada a partir da quarta edição francesa, que serviu de base a todas as demais edições e traduções. Os temas abordados neste artigo foram os que mais sofreram com essas adulterações)), falando de castigo, que tem, para Janet, o mesmo significado que punição ((Diz Janet: “A ideia de punição ou castigo também não se explicaria se o bem fosse apenas o útil. Não se pune um homem por ter sido inábil; pune-se por ter sido culpado”)), assim se expressa:

A duração do castigo está subordinada ao aperfeiçoamento do espírito culpado. Nenhuma condenação por um tempo determinado é pronunciada contra ele. O que Deus exige para pôr fim aos sofrimentos é o arrependimento, a expiação e a reparação – em resumo: um aperfeiçoamento sério, efetivo, assim como um retorno sincero ao bem.

KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno. Tradução por Emanuel G. Dutra, Paulo Henrique de Figueiredo e Lucas Sampaio. 2021.

Ou seja: Deus não pronuncia castigos ou punições contra o indivíduo. É ele mesmo quem se pune, através das consequências legítimas do mal realizado. Então, para encerrar esse sofrimento, precisa se arrepender, em primeiro lugar, isto é, identificar que fez algo condenável (remorso) e juntar a isso o pesar de tê-lo realizado (arrependimento, que é moral), bem como o desejo de não mais realizá-lo. Para alcançar esse entendimento, é preciso que o Espírito avance em inteligência e, para reparar o mal realizado (que já ficou claro que cometeu contra si mesmo, e não contra outrem, do que decorre que ele deve reparar em si a origem desse mal), o Espiritismo demonstra, sem possibilidade de erro, a existência da lei da reencarnação.

Tudo isso, enfim, para entender os conceitos de punição e recompensa. Eis que, de acordo com todo o exposto, Kardec diz, em trecho anterior àquele supracitado:

A punição é sempre a consequência natural da falta cometida. O espírito sofre pelo próprio mal que fez, de maneira que, estando sua atenção concentrada incessantemente sobre as consequências desse mal, compreende-lhe melhor os inconvenientes e é motivado a corrigir-se.

E então, em razão de tudo isso, Kardec assim inicia o capítulo IV essa obra – O Inferno:

O homem sempre acreditou intuitivamente que a vida futura deveria ser mais ou menos feliz na razão do bem e do mal praticado neste mundo. A ideia, porém, que ele faz dessa vida futura está na proporção do desenvolvimento de seu senso moral e da noção mais ou menos justa que tem do bem e do mal. As penas e as recompensas são o reflexo dos instintos que nele predominam.

Mas cabe lembrar que, utilizando desses conceitos filosóficos de seu tempo, Kardec, ao mesmo tempo, os desenvolveu pelas consequências morais da ciência espírita.

O espiritualismo em Kardec

Cabe, antes de encerrar, lembrar que Allan Kardec várias vezes utilizou a palavra espiritualismo em sua obra. É ao Espiritualismo Racional que ele se refere:

Quem quer que acredite haver em si alguma coisa mais do que matéria, é espiritualista. Não se segue daí, porém, que creia na existência dos Espíritos ou em suas comunicações com o mundo visível. Em vez das palavras espiritualespiritualismo, empregamos, para indicar a crença a que vimos de referir-nos, os termos espírita e espiritismo, cuja forma lembra a origem e o sentido radical e que, por isso mesmo, apresentam a vantagem de ser perfeitamente inteligíveis, deixando ao vocábulo espiritualismo a acepção que lhe é própria. Diremos, pois, que a doutrina espírita ou o Espiritismo tem por princípio as relações do mundo material com os Espíritos ou seres do mundo invisível. Os adeptos do Espiritismo serão os espíritas, ou, se quiserem, os espiritistas.

Como especialidade, o Livro dos Espíritos contém a doutrina espírita; como generalidade, prende-se à doutrina espiritualista, uma de cujas fases apresenta. Essa a razão por que traz no cabeçalho do seu título as palavras: Filosofia espiritualista.

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 1857

Isso fica, enfim, comprovado pelo seguinte trecho da Revista Espírita de 1868:

A obra do Sr. Chassang é a aplicação dessas ideias à arte em geral, e à arte grega em particular. Reproduzimos com prazer o que dela diz o autor da crítica da Patrie, porque é uma prova a mais da enérgica reação que se opera em favor das ideias espiritualistas e que, como o dissemos, toda defesa do espiritualismo racional franqueia o caminho do Espiritismo, que é o seu desenvolvimento, combatendo os seus mais tenazes adversários: o materialismo e o fanatismo.

KARDEC, Allan. Revista Espírita, novembro de 1868

Conclusão

Eis aqui claramente apresentada a prova de que não podemos conhecer e compreender a filosofia de Kardec sem compreender a filosofia e a moral de seu tempo, plenamente inseridas no contexto do Espiritualismo Racional francês, assim como não podemos compreender plenamente a ciência espírita sem o entendimento das ciências do Magnetismo [de Mesmer] e da Psicologia (esta também inserida no ER, sob a divisão das ciências morais).

Ficou claramente evidenciado que Kardec não fazia uso de conceitos religiosos dogmáticos, mas apenas de palavras que, se encontrando nesses conceitos, foram ressignificadas primeiramente sob a filosofia de então e, depois, sob a filosofia espírita.

Portanto, faz-se muito necessário o estudo e a difusão desse conhecimento. Uma vez mais, convidamos o leitor a estudar e distribuir, em todos os meios espíritas possíveis, a obra referida neste artigo, bem como o presente texto, que resulta de um esforço realizado também nesse sentido.




O tratado de filosofia social de Allan Kardec

Você sabia que Kardec tem um verdadeiro “tratado de filosofia social”? Pois é. Vamos demonstrá-lo a seguir, mas, antes, vamos falar um pouquinho sobre o atual estado da sociedade humana.

Muito se tem falado do momento que passamos: das transformações sociais, das comoções, do período de transição que atravessamos em rumo a um planeta de regeneração. Contudo, há uma enorme sombra pairando sobre o imaginário coletivo, acostumado às ideias materialistas ou emergencialistas. Parece que, para onde quer que olhemos, não existe mais que tristeza, dor e desprezo. Acostumamo-nos a olhar para o próximo como inimigo, como alguém disposto a nos fazer o mal ou, na melhor das hipóteses, a ignorar nossa mera existência. Acontece, porém, que somos uma sociedade afastada dos conceitos essenciais da espiritualidade e do bem. Dizemos ser espíritas, ou espiritualistas, para, contudo, por falta de estudar o Espiritismo, materializar o mundo dos Espíritos, que deveria ser o alvo da consolação, afastado das misérias da carne e, quando tratamos do ser humano, nos acostumamos a esquecer que, por dentro e por fora daquele corpo, existe um Espírito que a tudo comanda, e que é a origem de toda a sua ação.

Como veremos em Kardec, é uma falsa suposição acreditar que “a humanidade está perdida”, como muito se tem ouvido. Não: a humanidade está apenas distraída, porque deixou de conhecer aquilo que dá base ao desenvolvimento moral. Eis o que vamos recuperar, neste artigo.

Esquecemos, temos dito, de Kardec, mas também desconhecemos tudo aquilo que se chamou de elementos de moral, existentes no Espiritualismo Racional e tão bem definidos por Paul Janet ((JANET, Paul. PEQUENOS ELEMENTOS DE MORAL)) para, depois, servirem de base e serem desenvolvidos, na prática, pelo estudo do Espiritismo. Estava, com os espiritualistas racionais, a teoria, fundamentada na razão, de que o ser humano é um Espírito encarnado, respondendo às leis de Deus, mas foi com Kardec, principalmente, que essa teoria foi desenvolvida de forma prática, pelo estudo das manifestações espíritas, estudo esse que, pelas mãos de Allan Kardec, se estendeu por cerca de doze anos, e que culminou nos tratados de filosofia mais belos e elevados que a humanidade jamais conheceu, porque se baseiam em nós mesmos, Espíritos, em nossa jornada rumo à felicidade.

Contido nas páginas originais de A Gênese ((Utilizamos a obra da editora FEAL, baseada na 1.ª edição francesa, original)), antes da adulteração post-mortem de sua quinta edição, no encerramento dessa obra de teor científico e moral, estão as reflexões de Kardec sobre o tema social e da evolução da humanidade. Vamos a ele:

Sinais dos tempos

Sob esse título, Kardec inicia o capítulo XVIII da obra, o último, e talvez o mais belo de todos. Kardec, na data de lançamento dessa obra, estava a pouco mais de um ano de sua morte. Nele, ele demonstra que a humanidade segue o movimento do progresso de forma inevitável, posto que é uma Lei da Natureza, isto é, uma Lei de Deus, que nunca descansa. Segundo Kardec:

A humanidade realizou até o presente incontestáveis progressos. Os homens, por sua inteligência, chegaram a resultados que jamais haviam alcançado em relação às Ciências, Artes e ao bem-estar material. Ainda lhes resta um imenso progresso a realizar: fazer reinar entre eles a caridade, a fraternidade e a solidariedade para assegurar o bem-estar moral.

Saindo do estado da infância, a humanidade entrou numa nova era, onde o necessário desenvolvimento moral viria se realizar, destruindo, em si, todos as paixões, isto é, tudo aquilo que pudesse dar azo às imperfeições:

Não é mais somente o desenvolvimento da inteligência que é necessário aos homens, é a elevação dos sentimentos e, portanto, é preciso destruir tudo o que possa superexcitar em si o egoísmo e o orgulho.

Precisamos compreender que Kardec via a tudo isso com um otimismo enorme. Inserido no contexto do Espiritualismo Racional e das Ciências Morais e com o rápido desenvolvimento e a larga aceitação do Espiritismo pelos homens cultos, ele previa que, com a exceção de algumas dificuldades, a revolução moral pelo Espiritismo se daria a largos passos. Não poderia prever, contudo, que, após sua morte, tudo tomaria um rumo tão adverso, com a proibição do ensino das Ciências Morais na França, o desvio do Movimento Espírita, principalmente por Leymarie ((Para bem compreender esses fatos, é importante ler O Legado de Allan Kardec, de Simoni Privato)), e as guerras, enfim, que acabaram de lançar o mundo na necessária busca pelo cuidado na sobrevivência diária — em outras palavras, o homem teve que se preocupar muito mais com as questões da matéria, não tendo ensejo, por muito tempo, para cuidar das coisas do Espírito.

Kardec acreditava que esse período marcava, em definitivo, uma nova fase moral para o Espírito humano:

Esse é o período no qual entramos a partir de agora e marcará uma das fases principais da humanidade. Essa fase, que está em elaboração neste momento, é o complemento necessário do estado anterior, como a idade adulta é o complemento da juventude. Podia, pois, ser prevista e anunciada antecipadamente, por isso podemos dizer que os tempos marcados por Deus são chegados.

Neste tempo aqui não se trata de uma mudança parcial, de uma renovação limitada a uma região, a um povo, a uma raça; é um movimento universal que se opera no sentido do progresso moral. Tende a se estabelecer uma nova ordem de coisas, e os homens que são os seus maiores opositores, sem saber, contribuem para isso.

E então, completa, como se estivesse falando exatamente dos momentos atuais, onde filósofos combatem a espiritualidade:

É nesse preciso momento, quando se encontra excessivamente oprimida em sua esfera material, onde a vida intelectual transborda e o sentimento de espiritualidade floresce, que homens se dizendo filósofos pretendem preencher o vazio com doutrinas do neantismo ((Doutrina do nada, niilismo)) e materialismo! Estranha aberração! Esses homens, que pretendem impulsionar a humanidade, esforçam-se em circunscrevê-la nos limites da matéria, da qual almeja escapar. Ocultam a perspectiva da vida infinita e lhe dizem, mostrando o túmulo: Nec plus ultra ((Expressão latina que significa “nada além!”))!

O Espírito social

Então, como dizíamos, olhando para o resultado de mais de cem anos de materialismo exacerbado e negação da espiritualidade humana, vemos, na sociedade, o mal das paixões instalado: a guerra, a violência, o egoísmo, o orgulho, a vaidade, a avareza, enfim, tudo aquilo que é resultado do não conhecimento de algo melhor e mais importante, toma o meio social, onde não é possível identificar a máxima do Evangelho, “faz a outrem o que gostarias que fosse feito a ti mesmo. – Não faças a outrem o que não gostarias que te fizessem.”. Vivemos também sob um tratado de filosofia social, mas ele é materialista e niilista!

O homem, estacionado nas ideias materialistas, se esquece de que existe um futuro. Se esquece de que, além do corpo, existe a sua verdadeira vida, a vida eterna, que se estende desde muito ao infinito, e ignora, portanto, que cabe aos seus esforços em viver o bem, pelo cumprimento das leis divinas para consigo e para com todos os outros, alcançar mais cedo ou mais tarde a felicidade reservada aos bons. Diz Kardec:

Pela lei da pluralidade das existências, o homem se relaciona ao que fez e ao que fará com os homens do passado e os do futuro; já não pode dizer que nada tem em comum com os mortos, pois uns e outros se encontram constantemente, neste e no outro mundo, para ascender juntos a escala do progresso, prestando um mútuo apoio. A fraternidade não mais se restringe a alguns indivíduos unidos pelo acaso durante a curta duração efêmera de uma vida, mas é perpétua como a vida do Espírito, universal como a humanidade, a qual constitui uma grande família onde todos os membros são solidários uns com os outros, qualquer seja a época em que viveram.

Ora, como desejar uma humanidade fraterna se ela vive o hoje, desejando o amanhã, somente com o propósito de abastecer suas necessidades e seus prazeres materiais individuais, ignorando que, além de dores e gozos, inerentes à matéria, o Espírito continua, tão evoluído quanto tenha se esforçado por fazer? Veja: a ação do Espírito junto à sociedade não é uma imposição, mas uma consequência, pois aquele que compreende e passa a viver o bem em si, por obrigação moral estende aos outros a mão amiga:

A fraternidade será a pedra angular da nova ordem social, mas não há fraternidade real, sólida e efetiva sem estar apoiada sobre uma base inabalável. Essa base é a fé; não a fé em tais ou quais dogmas particulares que mudam com os tempos e os povos e se apedrejam mutuamente, pois, ao se amaldiçoarem, mantêm o antagonismo. Mas a fé nos princípios fundamentais que todos podem aceitar: Deus, a alma, o futuro, O PROGRESSO INDIVIDUAL ILIMITADO, A PERPETUIDADE DAS RELAÇÕES ENTRE OS SERES. Quando os homens estão convencidos de que Deus é o mesmo para todos; que Deus, soberanamente justo e bom, não pode querer nada que seja injusto; que o mal vem deles e não Dele, então todos serão considerados filhos do mesmo Pai e estenderão as mãos uns aos outros.

A respeito do materialismo de seu tempo, Kardec diz que “um sinal não menos característico do período no qual entramos é a reação evidente que se opera no sentido das ideias espiritualistas ((A reação pelas ideias espiritualistas ocorreu em oposição ao período materialista pós-Revolução Francesa, representado pelos ideólogos (Destutt de Tracy, Cabanis, Volney, etc.). Os espiritualistas racionais, depois de 1830, como Royer-Collard, Victor Cousin, Théodore Jouffroy, entre outros, estabeleceram na Universidade de Paris (e nos colégios) as Ciências Filosóficas, entre elas a Moral Teórica e Prática, a Psicologia Experimental, a Teodiceia, considerando o ser humano como “alma encarnada”. Segundo Kardec, o Espiritismo se encontra entre essas Ciências, dando desenvolvimento a elas. (N. do E.))); uma repulsão instintiva se manifesta contra as ideias materialistas“. Hoje, pelo contrário, vemos as ideias materialistas sendo defendidas por todos os lados. Contudo, vemos um outro movimento: a sociedade, a cada dia mais, repulsa as ideias dogmáticas das religiões, causando um esvaziamento massivo das fileiras das organizações religiosas – inclusive do Movimento Espírita Brasileiro, que se transformou numa religião, cheia de dogmas. Interessante notar que as religiões que ainda detém alguma atração sobre as pessoas são, justamente, aquelas que passam mais tempo cultivando as ideias materialistas do que o contrário.

Esse, na verdade, é um movimento positivo. Não podemos esquecer que o movimento espiritualista, que deu margem ao nascimento do Espiritualismo Racional e, depois, ao Espiritismo, nasceu em contraposição às ideias materialistas de seu tempo, que, por sua vez, também nasceram em contraposição aos dogmas das religiões. O homem se tornou materialista por não ter nada melhor em que acreditar, até que as filosofias espiritualistas e espírita se desenvolveram — razão pela qual, justamente, ganharam tantos adeptos em pouco tempo e entre as classes mais cultas da sociedade.

O movimento que se opera no presente, depois de um gigantesco tombo que se estendeu por mais de um século, conduz também a esse resultado, e já podemos ver sinais nascentes desse trabalho que se opera, sendo que a recuperação da filosofia espiritualista e da ciência espírita e do magnetismo são os primeiros passos a dar suporte a tudo isso:

A nova geração marchará para a realização de todas as ideias humanitárias compatíveis com o grau de adiantamento ao qual tenha chegado. O Espiritismo, avançando para o mesmo alvo e realizando seus objetivos, se reencontrará com ela no mesmo terreno. Os homens favoráveis ao progresso encontrarão nas ideias espíritas um poderoso recurso, e o Espiritismo encontrará, nos homens novos, Espíritos plenamente dispostos a aceitá-lo. Diante dessa combinação de circunstâncias, o que poderá fazer quem quiser se colocar em seu caminho?

O Espiritismo não criou a renovação social, pois a maturidade da humanidade faz dessa renovação uma necessidade. Por seu poder moralizador, por suas tendências progressivas, pela elevação de seus propósitos, pela generalidade das questões que ela abraça, o Espiritismo está, mais que todas as outras doutrinas, apto a secundar o movimento regenerador.

Curioso: em certos momentos, parece que Kardec esta escrevendo sobre o momento atual. É que o cenário se repete: a humanidade, não tendo conseguido aproveitar, antes, o desenvolvimento das ideias espiritualistas, apenas se atrasou. Mas, como sempre, tendo conhecido o ápice do mal, o homem passa a buscar novas respostas para sua desolação moral.

A idade da regeneração: o trecho que não conhecíamos

Na adulteração dessa obra conclusiva, as perdas foram enormes, sobretudo pelas inúmeras supressões realizadas. Se desejar, compare esse último capítulo e verá o quanto ele foi mutilado. Na versão original, existe um pensamento muito profundo, mas também duro, de Allan Kardec, a respeito da resistência encontrada, pelo Espiritismo, dentre aqueles que, em definitivo, ainda não estão prontos para essa ordem de ideias, porque sua idade espiritual ainda não alcançou tal desenvoltura. Acompanhe:

Dizer que a humanidade está madura para a regeneração não significa que todos os indivíduos estejam no mesmo degrau, mas muitos têm, por intuição, o germe das ideias novas que as circunstâncias farão desabrochar. Então, eles se mostrarão mais avançados do que se possa supor e seguirão com empenho a iniciativa da maioria ((Os indivíduos, em maioria, estão apenas distraídos. Não são necessariamente maus, nem empregam sua inteligência para o mal, mas apenas não a empregam para o bem. dêem-lhes coisas melhores, e eles rapidamente voltarão a raciocinar)).

Há, entretanto, os que são essencialmente refratários a essas ideias, mesmo entre os mais inteligentes, e que certamente não as aceitarão, pelo menos nesta existência; em alguns casos, de boa-fé, por convicção; outros por interesse. São aqueles cujos interesses materiais estão ligados à atual conjuntura e que não estão adiantados o suficiente para deles abrir mão, pois o bem geral importa menos que seu bem pessoal – ficam apreensivos ao menor movimento reformador. A verdade é para eles uma questão secundária, ou, melhor dizendo, a verdade para certas pessoas está inteiramente naquilo que não lhes causa nenhum transtorno. Todas as ideias progressivas são, de seu ponto de vista, ideias subversivas, e por isso dedicam a elas um ódio implacável e lhe fazem uma guerra obstinada. São inteligentes o suficiente para ver no Espiritismo um auxiliar das ideias progressistas e dos elementos da transformação que temem e, por não se sentirem à sua altura, eles se esforçam por destruí- lo. Caso o julgassem sem valor e sem importância, não se preocupariam com ele. Nós já o dissemos em outro lugar: “Quanto mais uma ideia é grandiosa, mais encontra adversários, e pode-se medir sua importância pela violência dos ataques dos quais seja objeto”.

O número de retardatários é ainda grande, sem dúvida, mas o que podem eles contra a onda que sobe, senão lançar nela algumas pedras? Essa onda é a geração que se ergue, ao passo que eles desaparecem com a geração que se vai cada dia a largos passos. Até aí, defenderão o terreno passo a passo; há, pois, uma luta inevitável, mas uma luta desigual, porque é aquela do passado decrépito que cai em trapos contra o futuro jovem; da estagnação contra o progresso, da criatura contra a vontade de Deus, porque os tempos assinalados por Ele são chegados.

Infelizmente, por tudo o que ocorreu, os indivíduos inteligentes, mas refratários, encontraram espaço para fazerem proliferar suas ideias que, hoje, entravam o progresso da humanidade. Os retardatários, “nem cá, nem lá”, não tendo em que se inspirar, apenas permaneceram, em maioria, retardatários. São Espíritos que, muitas vezes, não querem o mal, mas não tem um entendimento qualquer do que seja o bem e da necessidade da própria transformação, razão pela qual caem no conto do materialismo, operando como massas a favor dos primeiros.

O planeta de regeneração

Muitos acreditam que o planeta de regeneração será alcançado por uma imposição divina, onde, num passe de mágica, os maus serão expulsos e os bons conquistarão seu merecido paraíso. Nada mais longe da verdade (e da razão). Kardec destaca que

Para que os homens sejam felizes sobre a Terra é preciso que ela seja povoada apenas por bons Espíritos, encarnados e desencarnados, que só queiram o bem. Esse tempo tendo chegado, uma grande emigração acontecerá nesse momento entre seus habitantes. Os que fazem o mal pelo mal e não são tocados pelo sentimento do bem, não sendo mais digno da Terra transformada, serão excluídos, porque trariam de novo a discórdia e a confusão e seriam um obstáculo ao progresso. Esses vão expiar seu endurecimento uns em mundos inferiores, outros entre raças terrestres atrasadas que serão o equivalente aos mundos inferiores, onde levarão seus conhecimentos adquiridos e que terão por missão fazê-los avançar. Serão substituídos por Espíritos melhores que farão reinar entre eles a justiça, a paz e a fraternidade.

O planeta Terra somente se transformará para melhor quando os Espíritos que nela encarnam tiverem se transformado para melhor. Essa transformação não se dará num átimo temporal, contudo: ela se faz no dia-a-dia, no processo de desencarnação e encarnação de Espíritos, pois uma parte dos Espíritos que antes encarnavam aqui, não mais encarnarão, por não estarem mais aptos a viverem aqui.

Isso, é claro, demonstra a lentidão desse processo. Contudo, esse processo pode ser alavancado por uma nova ordem de ideias, quais as do Espiritismo, que nasceu justamente para isso:

A nova geração, devendo fundar a era do progresso moral, distingue-se por uma inteligência e uma razão geralmente precoces, somadas ao sentimento inato do bem e das crenças espiritualistas. É o sinal incontestável de um certo grau de adiantamento anterior. Não será jamais composta exclusivamente de Espíritos eminentemente superiores, mas dos que, tendo já progredido, estão dispostos a assimilar todas as ideias progressivas e aptos a secundar o movimento regenerador.

Não devemos crer, porém, que todos os retardatários serão expulsos da Terra, embora essa ideia agrade a muitos de nós, por julgarmos que assim seria melhor, a fim de nos livrarmos daqueles que causam embaraço à felicidade geral. Precisamos reconhecer que é um pensamento bastante mesquinho e, também, ausente de razão. Explica o codificador:

Não se deve entender por essa emigração de Espíritos que todos aqueles retardatários serão expulsos da Terra e relegados a mundos inferiores. Pelo contrário, muitos voltarão, porque haviam cedido à influência das circunstâncias e do mal exemplo. Neles, a aparência era pior que a essência. Uma vez livres da influência da matéria e dos preconceitos do mundo corporal, a maior parte desses Espíritos verá as coisas de maneira completamente diferente de como as viam em vida, o que está de acordo com numerosos exemplos. Nesse caso, são ajudados pelos Espíritos benévolos, que se interessam por eles e se apressam a esclarecê-los e a mostrar o caminho equivocado que tinham seguido. Pelas nossas preces e exortações, podemos nós mesmos contribuir para sua melhora porque há uma solidariedade perpétua entre os mortos e os vivos.

Olhemos para esses que nos desagradam, por nos julgarmos superiores. Reconhecemos que, em muitos, realmente existem os maus hábitos e as imperfeições que chegam a causar incômodos gerais. Contudo, observêmo-los mais a fundo: que é que há de mal, neles? Muitas vezes, nada. São Espíritos que, na vida material observada, esquecidos dos propósitos maiores da evolução, apenas se encontram absortos em suas preocupações ou alegrias passageiras, como nós tantas vezes estivemos. Não são criaturas repugnantes, mas apenas Espíritos que, na vida presente, não puderam aprender e se desenvolver como os outros, mas que, ainda assim, têm a simpatia dos bons Espíritos e deveriam ter também a nossa, para que, saindo de nosso egoísmo, possamos estender-lhes a palavra amiga, se possível o conhecimento e, ao menos, o bom pensamento, através da prece. Consegue imaginar a alegria de ver, amanhã, reencarnando conosco, aquele que antes causava a inquietação, agora mais concernido do bem e da sua necessidade de progresso?

A regeneração da humanidade não tem absolutamente necessidade da renovação integral dos Espíritos, pois basta uma modificação em suas disposições morais. Essa modificação se opera entre todos aqueles que estão predispostos, toda vez que sejam subtraídos da influência perniciosa do mundo. Portanto, aqueles que retornam nem sempre são outros Espíritos, mas, frequentemente, os mesmos Espíritos, pensando e sentindo de outra forma.

Os cataclismos, as mortes em massa, longe de servirem para cumprirem um “carma coletivo” (sic ((Isso é um completo absurdo, uma ideia que nunca esteve na Doutrina Espírita e, ademais, algo irracional, como já tratamos neste artigo.)) ), cumprem as leis da Natureza. Ainda assim, aceleram as modificações sociais:

Quando esse melhoramento é isolado e individual, ele passa despercebido e fica sem influência ostensiva sobre o mundo. Outro efeito acontece quando o melhoramento se produz simultaneamente sobre grandes massas, pois então, conforme as proporções numa geração, as ideias de um povo ou de uma raça podem ser profundamente modificadas.

É o que se nota quase sempre após as grandes calamidades dizimarem as populações. Os flagelos destruidores destroem apenas os corpos, mas não atingem o Espírito. Elesativam o movimento de ingresso e saída entre o mundo corporal e o espiritual e, por conseguinte, o movimento progressivo dos Espíritos encarnados e desencarnados. É de se notar que, em todas as épocas da história, às grandes crises sociais se seguiram eras de progresso.

Conclusão

Está muito claro, portanto, que as modificações sociais não se darão pela ordem da imposição, nem a política, nem a das armas, nem a das leis humanas e, ainda muito menos, pela ação do “dedo de Deus”, quem em nada interfere em nosso avanço.

Não: o avanço social será uma consequência do avanço moral, e isto somente se dará pela retomada, justamente, da moral esquecida, e será impulsionada se for combinada com o conhecimento prático trazido pelo Espiritismo, capaz de causar uma revolução de ideias a nível individual e, daí, para a sociedade. É óbvio, pelo exposto, que essa revolução de ideias está ligada à transformação moral do indivíduo, e não ao emprego deste ou daquele viés político — não custa repetir.

Não vos deixeis cair também nesse laço. Em vossas reuniões, afastai cuidadosamente tudo quando se refere à política e a questões irritantes. A tal respeito, as discussões apenas suscitarão embaraços, enquanto ninguém terá nada a objetar à moral, quanto esta for boa.

Procurai no Espiritismo aquilo que vos pode melhorar. Eis o essencial. Quando os homens forem melhores, as reformas sociais realmente úteis serão uma consequência natural. Trabalhando pelo progresso moral, lançareis os verdadeiros e mais sólidos fundamentos de todas as melhoras.

Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1862 > fevereiro > Resposta à mensagem de ano novo dos Espíritas lioneses

Em outras palavras, não adianta subir ao palanque ou ir às ruas com cartazes pedindo mudanças, quando nós mesmos não fazemos a nossa parte. A mudança modifica pelo exemplo, contagia, porque todo mundo quer ser feliz (é por isso que, misturando alegrias com felicidade, os perfis do Instagram de pessoas ricas e “bem de vida” ganham tantos seguidores).

Cuidemos, portanto, de nos melhorar, pela consequência moral que tem todo o estudo do Espiritismo. Cuidemos, também, de fazer a nossa parte: de estudar essa Doutrina, com dedicação, de modo a bem compreendê-la, espalhando sua real face de ciência consoladora, afastada dos dogmas e das ideias que materializam e aprisionam o Espírito nos falsos conceitos de pecado, castigo, etc. Nos esforcemos por recuperar os conhecimentos dos grandes filósofos espiritualistas, mas também os conhecimentos esquecidos do Magnetismo. Nos empenhemos em levar, à sociedade, também esses conceitos, começando por nos esforçar em fazer, do ensino infantil, algo melhor, mais autônomo e cooperativo, fraterno, afastado das ideias de castigos, das recompensas e dos “jeitinhos”, baseado, enfim, na educação de grandes pensadores humanistas, como Rousseau e Pestalozzi, que primavam pela razão e na humildade na perseguição das respostas, através do método científico… E, então, estaremos traçando um novo caminho para a mudança social.

Foto de capa: CONSELHO ESPÍRITA INTERNACIONAL (CEI) – https://cei-spiritistcouncil.com/obras-de-allan-kardec-para-download/




Deus interfere em nossas vidas?

Permanece, em muitas mentes, a antiga imagem de Deus, atrelada aos conceitos de uma humanidade que não podia compreender aquilo que estava fora da matéria e das figuras humanas. Assim, criaram um Deus à sua imagem: um senhor barbudo, sentado num trono acima das nuvens, olhando – e julgando – a tudo e a todos.

Contudo, a mentalidade humana não é mais assim. Em mais de dois mil anos, se desenvolveu em razão e em ciência, e já não aceita mais, tão facilmente, os velhos dogmas das religiões humanas. Aliás, em questão de ciência, desde que sabemos que o céu não é uma abóbada e que, para todos os lados, se estende o Universo infinito, já não podemos mais supor essa imagem de Deus. Além disso, a razão mostra que Deus não se ocupa de nós diretamente, controlando nossas vidas. Longe disso, está demonstrado, pelo estudo do Espiritismo, que Deus age através de suas Leis, que são as Leis Naturais, que governam a tudo com perfeição.

Nasce, porém, uma dúvida: será que Deus está por toda a parte, como dizem? Será que Deus nos ouve? Será que aquele provérbio que diz que “nem uma folha cai sem a vontade de Deus” está correto?

Como sempre, o estudo do Espiritismo clareia o horizonte pela razão irretorquível. Vamos demonstrar a beleza das conclusões de Kardec, em A Gênese, mas lembramos ser importante se basear na nova edição, da FEAL, que é uma tradução baseada na quarta edição dessa obra, já que a quinta edição – a que deu base a todas as outras edições e traduções – foi adulterada.

Assim se expressa Allan Kardec, na obra citada:

20. A providência é a solicitude de Deus para com todas as criaturas. Deus está por toda parte, tudo vê e a tudo preside, mesmo as pequenas coisas; e é nisso que consiste sua ação providencial.“Como Deus, tão grande, tão poderoso, tão superior a tudo, pode imiscuir-se em detalhe ínfimos, preocupar-se com os menores atos e pensamentos de cada indivíduo? Essa é a pergunta que a incredulidade faz a si mesma, de onde ela conclui que, admitindo a existência de Deus, sua ação só deva se fazer sobre as leis gerais do Universo; que este funciona por toda eternidade, em virtude dessas leis, às quais cada criatura acha-se submetida em sua esfera de atividade, sem que seja necessário o concurso incessante da providência.

21. Em seu estado atual de inferioridade, os homens dificilmente compreendem um Deus infinito, porque, sendo eles mesmos restritos e limitados, só o entendem restrito e limitado como eles. Representam-no como um ser circunscrito e fazem dele uma imagem semelhante a si próprios. Os quadros que o pintam com traços humanos só contribuem para manter esse erro no espírito dos povos, que nele adoram mais a forma do que o pensamento. Para muita gente, ele é um soberano poderoso, sentado em um trono inacessível, perdido na imensidão dos céus; e por terem suas faculdades e percepções limitadas, não compreendem que Deus possa ou se digne a intervir diretamente nas pequenas coisas.

22. Ante a impossibilidade de compreender a essência da divindade, o homem só pode fazer dela uma ideia aproximada por meio de comparações, necessariamente muito imperfeitas, mas que podem, pelo menos, mostrar-lhe a possibilidade daquilo que, num primeiro momento, lhe parece impossível.

Suponhamos um fluido bastante sutil para penetrar em todos os corpos. É evidente que cada molécula desse fluido, encontrando-se com cada molécula da matéria, produzirá sobre os corpos uma ação idêntica àquela que produziria a totalidade do fluido. É o que a Química demonstra todos os dias, em proporções limitadas.

Esse fluido, não sendo inteligente, age mecanicamente, somente pelas forças materiais; mas, se o supusermos dotado de inteligência, de faculdades perceptivas e sensitivas, já não agirá às cegas, mas com discernimento, com vontade e liberdade; ele verá, entenderá e sentirá.

[…]

23. Por mais elevados que sejam, os Espíritos são criaturas limitadas em suas faculdades, em seu poder e na extensão de suas percepções, e não saberiam, sob esse aspecto, aproximar-se de Deus. Mas podemos nos servir deles, como ponto de comparação. O que o Espírito não pode executar, senão em um limite restrito, Deus, que é infinito, executa-o em proporções infinitas. Há ainda a diferença de que a ação do Espírito está momentaneamente subordinada às circunstâncias, e a de Deus é permanente; o pensamento do Espírito abarca durante um tempo um espaço circunscrito, o de Deus abarca o Universo e a eternidade. Em uma palavra, entre os Espíritos e Deus existe a distância do finito ao infinito.

24. O fluido perispiritual não é o pensamento do Espírito, mas o agente e o intermediário desse pensamento; como é ele que o transmite, de alguma forma, impregnado dele. Pela impossibilidade em que estamos de isolar o pensamento, parece-nos que ele e o fluido se confundem, como acontece com o som e o ar, de maneira que podemos, por assim dizer, materializá-lo. Da mesma forma que dizemos que o ar se torna sonoro, tomando o efeito pela causa, podemos dizer que o fluido se torna inteligente.

25. Que seja ou não assim quanto ao pensamento de Deus, quer dizer, que ele atue diretamente ou por intermédio de um fluido, para nosso raciocínio, vamos representá-lo sob a forma concreta de um fluido inteligente, preenchendo o Universo infinito, penetrando todas as partes da criação: a natureza inteira está imersa no fluido divino. Ora, em virtude do princípio de que as partes de um todo são da mesma natureza e têm as mesmas propriedades do todo, cada átomo desse fluido, se assim podemos nos exprimir, possuiria o pensamento, isto é, os atributos essenciais da divindade, e estando esse fluido por toda parte, tudo está sujeito à sua ação inteligente, à sua previsão, à sua solicitude. Não haverá um ser, por mais ínfimo que seja, que não esteja de alguma forma imerso nele. Estamos, assim, constantemente em presença da divindade e não podemos subtrair uma só de nossas ações, do seu olhar; nosso pensamento está em contato incessante com seu pensamento, e é com razão que se diz que Deus lê nas mais profundas entranhas do nosso coração; estamos nele, como ele está em nós, conforme a palavra de Cristo.

Para estender sua solicitude sobre todas as criaturas, Deus não tem necessidade de lançar seu olhar do alto da imensidão. Para que ouça nossas preces, não tem necessidade de transpor o espaço, nem que elas sejam ditas com voz retumbante, porque estando Deus incessantemente ao nosso lado, nossos pensamentos repercutem nele; são como os sons de um sino que fazem vibrar todas as moléculas do ar ambiente.

26. Longe de nós o pensamento de materializar a divindade. A imagem de um fluido inteligente universal é, evidentemente, apenas uma comparação capaz de dar uma ideia mais justa de Deus, que as pinturas que o representam sob uma figura humana. Essa comparação só objetiva a compreensão da possibilidade de Deus estar por toda parte e de se ocupar de tudo.

Vemos, portanto, que o Fluido Cósmico Universal, que origina toda a matéria, em qualquer estado possível, permeia a tudo. É esse fluido, conforme demonstra o Espiritismo, que conduz o pensamento por toda a parte. É por isso que é fácil entender que Deus está em tudo e que não é necessário se ajoelhar, olhar para o alto e formular certas palavras: ele ouve e conhece nossos mais íntimos pensamentos e necessidades.

Aliás, é esse mesmo fluido que conduz o nosso pensamento através do espaço infinito e chega até o pensamento de um Espírito em que pensemos:

Os fluidos espirituais que constituem um dos estados do fluido cósmico universal são a atmosfera dos seres espirituais. É o elemento de onde eles extraem os materiais sobre os quais agem; o meio onde se passam os fenômenos especiais, perceptíveis à vista e ao ouvido do Espírito e que escapam aos sentidos carnais impressionados somente pela matéria tangível. É, enfim, o veículo do pensamento, como o ar é o veículo do som

ibidem

É por esse motivo, que os Espíritos – bons ou maus – vêm, quase sempre prontamente, ao nosso chamado mental. E é em decorrência desse princípio que precisamos reconhecer que nunca estamos desprovidos de companhia, já que essa companhia não precisa ser “física”, como um Espírito que fique conosco durante todo o tempo. Um bom Espírito, inclusive um Espírito protetor ou anjo guardião, não precisa estar “plantado” ao nosso lado: basta que seu pensamento esteja projetado sobre nós e, da mesma forma, que o nosso pensamento esteja projetado sobre o dele.

É pela mesma ação dos fluidos que nos fazemos capazes de assimilar intuições e influências boas ou más, mesmo que de forma inconsciente. Se estamos nos esforçando em viver no bem (e não apenas fazer o bem, o que é muito diferente) nossos pensamentos moldam a vibração dos fluidos à nossa volta, nos tornando mais acessíveis aos bons Espíritos. O mesmo ocorre, em sentido contrário, quando estamos desligados do bem, isto é, mergulhados nas paixões e nos maus hábitos. É por isso que, nesse estado, é dito, nas obras do Espiritismo, que os bons Espíritos se afastam de nós. Não é que eles voltem suas costas para nós e nossas necessidades, pois, mesmo o Espírito mais apegado ao mal, ainda assim contará com a simpatia de Espíritos superiores, mas é que, nesse estado mental, adensamos nossos perispírito e os fluidos ao nosso redor, nos tornando inacessíveis aos bons fluidos, isto é, aos bons pensamentos dos Espíritos superiores.

Perguntamos, então: como sair do último estado? Ora, relativamente simples: através do esforço constante e dedicado na melhoria dos próprios pensamentos e ações, o que pode ser muito auxiliado pela ação da prece, que é (deve ser) uma ação honesta de buscar, pelo pensamento, modificar as próprias disposições mentais a fim de pedir auxílio, o que já ficou demonstrado que não é difícil, já que Deus está à nossa volta e em nós. Basta desejar a própria modificação, honestamente, reconhecendo a própria situação de penúria, causada pelo mau uso das faculdades da inteligência, e os bons Espíritos virão em nosso socorro, para dar suporte à nossa ação, mas jamais para fazer o trabalho que deve ser feito por nós. E de que forma eles agirão? Nos influenciando, e as pessoas à nossa volta, para nos conduzir às oportunidades, e também às provas, necessárias para a nossa modificação.

O fato de serem os Espíritos que vêm nos acudir, e não o próprio Deus em pessoa, não O diminui em absolutamente nada, pois é por Sua Criação e por Suas Leis que tudo age. É nesse sentido que podemos explicar aquele provérbio citado acima: “nem uma folha cai sem que Deus queira”, quer dizer que até mesmo uma folha que cai de uma árvore está respondendo a uma Lei da Natureza, Criação de Deus, e não que Deus tome de Sua atenção para dizer “esta folha vai cair agora, mas aquela outra, não”. É lógico entender que Deus sabe de tudo, pois, se não soubesse, não seria Deus, mas, da mesma forma, é lógico entender que ele não precisa interferir em nada, por sua criação ser perfeita.

Chegados a este ponto, não podemos deixar de destacar a total incoerência pregada pelas religiões humanas, por todos os tempos, que visam, para fins de controle de seus fiéis, “roubar” Deus para si, afirmando que Deus está somente dentro da Igreja, ou que Deus beneficia mais àqueles que seguem aquela religião, lhes conferindo prêmios e títulos de posses, riquezas materiais, etc.

A Kardec, um Espírito disse que “Deus não permitiria” que um Espírito inferior se materializasse numa forma horrenda, para assustar. Nós havíamos constatado que é claro que existia uma lei que ainda não conhecemos. Então, num dos últimos estudos da Revista Espírita, outro Espírito deu a entender que as materializações e os fenômenos físicos, causados por Espíritos inferiores, sempre se dão por “comando” de Espíritos superiores, com um propósito. É por isso, segundo entendemos, que um Espírito inferior não poderia se materializar de forma horrenda: porque um Espírito superior não o ajudaria a fazê-lo.

A criação divina é, entendemos, autônoma. Deus, intervindo, praticaria a heteronomia. Então, se ele poderia intervir em certos aspectos, por que não interviria em todos? Por que Ele próprio não interviria, por exemplo, para extinguir uma guerra ou a violência, ou, antes, para sequer deixá-la iniciar? Caímos, então, nas questões que aqueles que se guiam pelos princípios heterônomos das religiões caem, muitas vezes causando, neles, um completo abandono da espiritualidade.

Racionalmente, entendemos que Deus fez suas leis, e são elas que agem no Universo. Sua própria criação, que nos parece imperfeita, quando olhamos de um aspecto muito mesquinho de nossas vistas inferiores, é, na verdade, perfeita no todo, e se regula por si própria no caminho da evolução.

Isso tudo explicado dessa forma, fica racionalmente fácil entender que não existe destino predeterminado por Deus em nossas vidas, e que nós agimos segundo nosso livre-arbítrio, sempre, desde que conquistamos nossa consciência. Mas isso é assunto para outro artigo.

Encerremos com essa belíssima reflexão, dada por São Luís e Santo Agostinho, a respeito da doutrina dos anjos guardiões, em O Livro dos Espíritos:

495. Poderá dar-se que o Espírito protetor abandone o seu protegido, por se lhe mostrar este rebelde aos conselhos?

“Afasta-se, quando vê que seus conselhos são inúteis e que mais forte é, no seu protegido, a decisão de submeter-se à influência dos Espíritos inferiores. Mas não o abandona completamente e sempre se faz ouvir. É então o homem quem tapa os ouvidos. O protetor volta desde que este o chame.

“É uma doutrina, esta, dos anjos guardiães, que, pelo seu encanto e doçura, deveria converter os mais incrédulos. Não vos parece grandemente consoladora a ideia de terdes sempre junto de vós seres que vos são superiores, prontos sempre a vos aconselhar e amparar, a vos ajudar na ascensão da abrupta montanha do bem; mais sinceros e dedicados amigos do que todos os que mais intimamente se vos liguem na Terra? Eles se acham ao vosso lado por ordem de Deus. Foi Deus quem aí os colocou e, aí permanecendo por amor de Deus, desempenham bela, porém penosa missão. Sim, onde quer que estejais, estarão convosco. Nem nos cárceres, nem nos hospitais, nem nos lugares de devassidão, nem na solidão, estais separados desses amigos a quem não podeis ver, mas cujo brando influxo vossa alma sente, ao mesmo tempo que lhes ouve os ponderados conselhos.

“Ah! se conhecêsseis bem esta verdade! Quanto vos ajudaria nos momentos de crise! Quanto vos livraria dos maus Espíritos! Mas, oh! Quantas vezes, no dia solene, não se verá esse anjo constrangido a vos observar: “Não te aconselhei isto? Entretanto, não o fizeste. Não te mostrei o abismo? Contudo, nele te precipitaste! Não fiz ecoar na tua consciência a voz da verdade? Preferiste, no entanto, seguir os conselhos da mentira!” Oh! Interrogai os vossos anjos guardiães; estabelecei entre eles e vós essa terna intimidade que reina entre os melhores amigos. Não penseis em lhes ocultar nada, pois que eles têm o olhar de Deus e não podeis enganá-los. Pensai no futuro; procurai adiantar-vos na vida presente. Assim fazendo, encurtareis vossas provas e mais felizes tornareis as vossas existências. Vamos, homens, coragem! De uma vez por todas, lançai para longe todos os preconceitos e pensamentos ocultos. Entrai na nova senda que diante dos passos se vos abre. Caminhai! Tendes guias, segui-os, que não falhareis em atingir a meta, porquanto essa meta é o próprio Deus.

“Aos que considerem impossível que Espíritos verdadeiramente elevados se consagrem a tarefa tão laboriosa e de todos os instantes, diremos que nós vos influenciamos as almas, estando embora muitos milhões de léguas distantes de vós. O espaço, para nós, nada é, e não obstante viverem noutro mundo, os nossos Espíritos conservam suas ligações com os vossos. Gozamos de qualidades que não podeis compreender, mas ficai certos de que Deus não nos impôs tarefa superior às nossas forças e de que não vos deixou sós na Terra, sem amigos e sem amparo. Cada anjo guardião tem o seu protegido, pelo qual vela, como o pai pelo filho. Alegra-se, quando o vê no bom caminho; sofre, quando ele lhe despreza os conselhos.

“Não receeis fatigar-nos com as vossas perguntas. Ao contrário, procurai estar sempre em relação conosco. Sereis assim mais fortes e mais felizes. São essas comunicações de cada um com o seu Espírito familiar que fazem sejam médiuns todos os homens, médiuns ignorados hoje, mas que se manifestarão mais tarde e se espalharão qual oceano sem margens, levando de roldão a incredulidade e a ignorância. Homens doutos, instruí os vossos semelhantes; homens de talento, educai os vossos irmãos. Não imaginais que obra fazeis desse modo: a do Cristo, a que Deus vos impõe. Para que vos outorgou Deus a inteligência e o saber, senão para os repartirdes com os vossos irmãos, senão para fazerdes que se adiantem pela senda que conduz à bem-aventurança, à felicidade eterna?”
São Luís, Santo Agostinho




Deus e o Diabo — a origem do bem e do mal

FONTE DO BEM E DO MAL
Extraído de A Gênese, 4.ª edição, FEAL — Allan Kardec

1. Sendo Deus o princípio de todas as coisas e, sendo esse princípio todo sabedoria, todo
bondade e todo justiça, tudo o que provém dele deve compartilhar esses atributos, pois o
que é infinitamente sábio, justo e bom não pode produzir nada irracional, mau e injusto. O mal que observamos não pode ter originado dele.

2. Se o mal estivesse nas atribuições de um ser especial, seja ele chamado Ahriman, seja Satã, de duas, uma: ou ele seria igual a Deus e, por consequência, também poderoso e eterno, ou seria inferior.

No primeiro caso, haveria duas potências rivais, lutando sem cessar, cada uma procurando desfazer o que o outro está fazendo, opondo-se mutuamente. Essa hipótese é inconciliável com a harmonia que se revela, na ordem do Universo.

No segundo caso, sendo inferior a Deus, esse ser estaria subordinado a ele. Não podendo ser eterno como ele sem ser seu igual; só poderia ter sido criado por Deus. Se foi criado, só poderia ter sido por Deus. Nesse caso, Deus teria criado o Espírito do mal, o que seria a negação de sua infinita bondade.

3. Conforme certa doutrina, o Espírito do mal, criado bom, teria se tornado mau, e Deus,
para puni-lo, teria o condenado a permanecer eternamente mau, dando-lhe a missão de
seduzir os homens para lhes induzir ao mal. Ora, podendo uma única queda((A queda, para as religiões dogmáticas representa um evento no qual o homem, em sua origem, cometendo falta grave contra Deus, perdendo sua santidade, justiça e sabedoria originais, caindo por castigo na condição presente: com sofrimento, ignorância, arrastamento ao pecado e morte. Ou seja, haveria degradação da alma. A Doutrina Espírita, fundada no conceito de evolução da alma desde simples e ignorante por seu esforço, estabelece por essa sólida lógica sua teoria. (N. do E.))) custar-lhes os mais cruéis castigos pela eternidade, sem esperança de perdão, nisso não haveria só uma falta de bondade. Porém, uma crueldade premeditada, porque, para tornar a sedução mais fácil e melhor ocultar a armadilha, Satã estaria autorizado a se transformar em anjo de luz e a simular as obras próprias de Deus, até o ponto de enganar. Assim, haveria mais iniquidade e imprevidência da parte de Deus, porque dando toda a liberdade para Satã emergir das trevas e se entregar aos prazeres mundanos para arrastar os homens, o provocador do mal seria menos punido que as vítimas de suas artimanhas, pois estas, caindo por fraqueza, uma vez no abismo, não mais podem sair. Deus lhes recusa um copo de água para saciar sua sede e, durante toda a eternidade, com os anjos, ouve seus gemidos, sem se deixar comover, ao mesmo tempo que permite a Satã todo o prazer que desejar.

De todas as doutrinas sobre a teoria do mal, esta é, sem dúvida, a mais irracional e a
mais ofensiva para com a divindade. (Ver O Céu e o Inferno segundo o Espiritismo.
Primeira parte, capítulo IX, Os demônios.)

4. Entretanto, o mal existe e possui uma causa.

Há várias classes de mal((Na época de Allan Kardec, a Filosofia ensinada na universidade, na escola normal (atual magistério) e nos colégios era o Espiritualismo racional. Na disciplina de moral teórica (uma das Ciências Filosóficas), ensinava-se a diferença entre o mal físico e o moral, para demonstrar uma revolucionária teoria fundamentada na liberdade pessoal, contrária ao dogma da queda e do castigo divino das religiões ancestrais e da coação externa, pelo materialismo: “O mal físico consiste em dor, doença, morte. São consequências inevitáveis da organização dos seres sencientes, estimulante essencial para sua atividade. O mal moral é a condição fundamental da liberdade. Sem o mal, o bem não é possível no mundo, pois, se o homem não pudesse errar, não estaria livre nem seria capaz de fazer o bem. Essa vida é uma época de provação e, sem o mal físico e moral, não há lugar para coragem, paciência, dedicação e demais virtudes”. (Le Mansois-Duprey. Cours de Philosophie Élémentaire em L’école normale: journal de l’enseignement pratique. v. 13. Paris: Larousse et Boyer, 1864. p. 235.) A teoria moral espírita foi um desenvolvimento do Espiritualismo racional: “O Espiritismo repousa, pois, sobre princípios gerais independentes de todas as questões dogmáticas. Ele tem, é verdade, consequências morais como todas as Ciências Filosóficas”. (Revista Espírita, 1859.). (N. do E.))). Em primeiro lugar há o mal físico e o mal moral. Também podemos classificar os males entre aqueles que o homem pode evitar e os que são independentes de sua vontade. Entre estes últimos, é preciso incluir os flagelos naturais.

O homem, cujas faculdades são limitadas, não pode compreender todos nem abranger o conjunto dos desígnios do Criador; julga as coisas do ponto de vista de sua personalidade, dos interesses e das convenções artificiais que criou para si mesmo, não pertencentes à ordem da natureza. É por isso que, em geral, lhe parece prejudicial e injusto aquilo que consideraria justo e admirável, se conhecesse sua causa, seu objetivo e o resultado definitivo. Ao investigar a razão de ser e a utilidade de cada coisa, reconhecerá que tudo tem a marca da sabedoria infinita e se curvará ante a essa sabedoria, mesmo em relação a coisas que não compreenda.

5. O homem recebeu uma inteligência por meio da qual ele pode afastar, ou ao menos
diminuir bastante os efeitos dos flagelos naturais. Quanto mais conhecimento adquire e
avança na civilização, menos essas calamidades são desastrosas. Com sábia organização
social, poderá até mesmo neutralizar seus efeitos, quando não puderem ser totalmente
evitadas. Dessa forma, para os mesmos flagelos que são úteis na ordem geral da natureza e para o futuro, mas que nos atacam no presente, Deus deu ao homem, com as faculdades com as quais dotou seu Espírito, os meios para paralisar seus efeitos.

Assim, o homem limpa regiões insalubres, neutraliza os miasmas pestilentos, fertiliza
terras não cultivadas, preserva-as de inundações; constroem-se casas mais saudáveis, mais fortes para suportar os ventos, tão necessários para a purificação da atmosfera, e se protege do clima. É assim, finalmente, que, pouco a pouco, a necessidade o fez criar as Ciências, com a ajuda das quais ele melhora as condições de habitabilidade do globo e amplia o conjunto de seu bem-estar.

Como o homem deve progredir, os males aos quais está exposto constituem um incentivo para o exercício de sua inteligência e de todas as suas faculdades físicas e morais, convidando-o à pesquisa dos meios para evitá-los. Se ele nada tivesse a temer, nenhuma
necessidade o levaria à busca do melhor; ele se entorpeceria na inatividade de sua mente; não inventaria nem descobriria nada. A dor é o aguilhão que empurra o homem a seguir adiante, no caminho do progresso.

6. Mas os males mais numerosos são aqueles que o homem cria pelos próprios vícios;
provenientes de seu orgulho, de seu egoísmo, de sua ambição, de sua ganância, de seus
excessos em todas as coisas. Essa é a causa das guerras e calamidades que causam
desavenças, injustiças, a opressão do fraco pelo forte e, finalmente, a maioria das doenças.

Deus estabeleceu leis cheias de sabedoria, cujo objetivo é o bem. O homem encontra
em si mesmo tudo o que é necessário para segui-las. Seu caminho é traçado por sua
consciência, e a lei divina está gravada em seu coração. Além do mais, Deus o recorda,
constantemente, por seus messias e profetas, por todos os Espíritos encarnados que
receberam missão de esclarecer, moralizar e contribuir para seu aperfeiçoamento, assim
como, nesses últimos tempos, pela multidão de Espíritos desencarnados que se manifestam por todos os lados. Se os homens se conformarem rigorosamente com as leis divinas, não há dúvida de que evitariam os males mais graves, vivendo felizes na Terra. Se não o faz, é em virtude de seu livre-arbítrio, e deve aceitar as consequências.

7. Mas, Deus, cheio de bondade, colocou o remédio ao lado do mal; quer dizer, do próprio mal faz nascer o bem. Chega um momento em que o excesso do mal moral se torna intolerável e faz o homem sentir a necessidade de mudar de vida. Instruído pela experiência, sente-se obrigado a procurar no bem o remédio que precisa, sempre em virtude de livrearbítrio. Quando toma um caminho melhor, é por sua vontade e porque reconheceu as desvantagens da outra estrada. A necessidade o compele a melhorar moralmente para ser mais feliz, pois essa mesma necessidade o obrigou a melhorar as condições materiais de sua existência.

Pode-se dizer que o mal é a ausência do bem, como o frio é a ausência do calor. O mal
não é mais um atributo distinto, assim como o frio não é um fluido especial; um é a
negação do outro. Onde o bem não existe, há necessariamente o mal. Não fazer o mal já é o começo do bem. Deus só quer o bem, o mal somente vem do homem. Se houvesse na Criação um ser encarregado do mal, o homem não poderia evitá-lo. Contudo, tendo a causa do mal em si mesmo e, ao mesmo tempo, tendo seu livre-arbítrio e por guia as leis divinas, ele o evitará quando desejar.

Tomemos um fato comum, por comparação: um proprietário sabe que, na extremidade
de sua terra, há um local perigoso, no qual pode se ferir ou morrer. O que faz para evitar
acidentes? Coloca, próximo do lugar, um aviso para se afastar, por causa do perigo. Essa é a lei; ela é sábia e previdente. Se, apesar disso, um imprudente ignora o aviso e sofre um acidente, quem poderia ser responsabilizado, senão ele próprio?

Assim acontece em relação ao mal. O homem o evitaria se observasse as leis divinas.
Deus, por exemplo, colocou um limite para a satisfação das necessidades; o homem é
avisado pela saciedade; se ele ultrapassa esse limite, age voluntariamente. As doenças, as fraquezas do corpo, a morte que podem resultar disso são obra sua, e não de Deus.

8. Sendo o mal resultado das imperfeições do homem, e o homem criado por Deus, dirão, que se ele não criou o mal, pelo menos teria criado a causa dele. Se tivesse criado o homem perfeito, o mal não existiria.

Se o homem tivesse sido criado perfeito, estaria fatalmente inclinado ao bem. Agora,
em virtude de seu livre-arbítrio, não tende fatalmente nem para o bem nem para o mal. Deus quis que ele fosse submetido à lei do progresso, e que esse progresso fosse fruto do próprio trabalho, a fim de que o mérito fosse seu, mesmo tendo a responsabilidade pelo mal que pratica por sua vontade. A questão, portanto, está em saber qual é, no homem, a origem da sua propensão ao mal((O erro consiste em pretender que a alma tenha saído perfeita das mãos do Criador, quando ele, ao contrário, quis que a perfeição fosse o resultado do refinamento gradual do espírito e sua própria obra. Quis Deus que a alma, em virtude de seu livre-arbítrio, pudesse escolher entre o bem e o mal, chegando aos seus derradeiros fins por uma vida dedicada e pela resistência ao mal. Se tivesse criado a alma com uma perfeição à sua semelhança – e que, saindo de suas mãos, ele a tivesse ligado à sua beatitude eterna –, Deus a teria feito, não à sua imagem, mas semelhante a si próprio, como já dito. Conhecedora de todas as coisas em razão de sua essência e sem ter aprendido nada, mas movida por um sentimento de orgulho nascido da consciência de seus atributos divinos, a alma seria induzida a renegar sua origem, a desconhecer o autor de sua existência, ficando em estado de rebelião contra seu Criador. (Bonnamy, juiz de instrução. A razão do Espiritismo, capítulo VI.) (Nota de Allan Kardec.))).

9. Se estudarmos todas as paixões, e até mesmo todos os vícios, vemos que eles têm seu princípio no instinto de conservação. Esse instinto, em toda sua força nos animais e nos seres primitivos que estão mais próximos da vida animal, ele domina sozinho, porque, entre eles, ainda não há de contrapeso o senso moral. O ser ainda não nasceu para a vida intelectual. O instinto enfraquece, ao contrário, à medida que a inteligência se desenvolve, porque domina a matéria. Com a inteligência racional, nasce o livre-arbítrio que o homem usa à sua vontade: então somente, para ele, começa a responsabilidade de seus atos((Na teoria moral espírita, o livre-arbítrio surge após o desenvolvimento da inteligência racional. Desse modo, a responsabilidade moral só aí se inicia e se amplia gradualmente, na proporção direta do desenvolvimento racional. Nos animais e nos seres ainda simples e ignorantes, não surgiu o livre-arbítrio, o senso moral e a responsabilidade pelos seus atos. Esses conceitos psicológicos afastam completamente os dogmas do pecado original, da queda e da encarnação como castigo. Também são falsas as hipóteses científicas do egoísmo e do sentimento antissocial inatos em todos os indivíduos. Traz alento, pois quanto maior a inteligência, maior a responsabilidade. Por fim, para uma evolução moral plena da humanidade é necessário garantir para todos os indivíduos a oportunidade do desenvolvimento racional pela educação. (N. do E.))).

10. O destino do Espírito é a vida espiritual. Mas, nas primeiras fases de sua existência
corporal, ele só possui necessidades materiais para satisfazer. Com essa finalidade, o
exercício das paixões é uma necessidade para a conservação da espécie e dos indivíduos,
materialmente falando. Porém, saindo desse período, possui outras necessidades, a princípio semimorais e semimateriais, e depois exclusivamente morais. É então que o Espírito domina a matéria. Na medida em que se liberta de seu jugo, avança pela vida adequada e se aproxima de seu destino final. Se, ao contrário, deixar-se dominar pela matéria, se atrasa e se identifica com os irracionais. Nessa situação, o que antes era um bem, por ser uma necessidade da sua natureza, torna-se um mal, não só por não ser mais uma necessidade, mas porque se torna nocivo para a espiritualização do ser. Por isso, o mal é relativo, e a responsabilidade é proporcional ao grau de adiantamento.

Todas as paixões têm sua utilidade providencial, sem o que Deus teria feito algo inútil
e nocivo. É o abuso que constitui o mal, e o homem abusa, conforme seu livre-arbítrio. Mais tarde, esclarecido pelo próprio interesse, ele escolhe, livremente, entre o bem e o mal




Ação do Espírito sobre a matéria

Postulado. A teoria de Mesmer e a Doutrina Espírita afirmam que os Espíritos agem sobre a matéria apenas através do pensamento e da vontade:

Os Espíritos agem sobre os fluidos espirituais, não os manipulando como os homens manipulam os gases, mas com a ajuda do pensamento e da vontade, que são para o Espírito o que a mão é para o homem.

(KARDEC, [1868] 2018, P. 290)

Para Mesmer, não existem fluidos, como a ciência de sua época postulava, como os fluidos calórico, elétrico, magnético, vital, etc. Sua teoria concebia o Fluido Cósmico Universal, de onde toda a matéria seria formada e que, portanto, preenche a tudo, como se fôssemos peixes, mergulhados no oceano((FIGUEIREDO, Paulo Henrique de. Mesmer – A Ciência Negada do Magnetismo Animal. FEAL, 2022)). Os diferentes estados da matéria estariam ligados a um diferente estado de onda, o que é comprovado pela física moderna. Assim, para um Espírito agir sobre a matéria fluídica, ele não age com suas mãos ou com força física, mas através de sua vontade. É assim que um Espírito pode, pelo seu perispírito, aparecer de diferentes formas, moldando-o como quiser. Contudo, ele somente pode agir sobre a matéria fluídica. Para agir sobre a matéria mais densa, é necessário algo a mais: ou um corpo, no qual se encarne, ou um corpo cujo controle é momentaneamente cedido por outro Espírito encarnado, ou, simplesmente, o auxílio de um encarnado, lúcido e por sua própria vontade.

É por esse princípio que um Espírito, como ficou comprovado nas experiências à época de Kardec, NÃO PODE se fazer visível, materialmente, muito menos tangível, sem a existência de um médium especial, que lhe forneça o “ectoplasma”, que seria uma espécie de fluido espiritual mais animalizado. Não fosse assim — o que está determinado pelas leis da Natureza, ou Leis Divinas — bastaria um Espírito, que queira fazer o mal, tomar uma faca ou uma pistola e cometer um crime qualquer. Ele pode, contudo, inspirar alguém a fazê-lo, sendo que essa pessoa, ao aceitar a sugestão, tem sua própria responsabilidade.

Espíritos agem sobre os fenômenos da Natureza?

De início, vamos encontrar algo que parece incongruente com tudo o que foi dito até aqui. Deixo claro que, neste tópico, estou me apoiando naquilo que nasceu do meu entendimento, e não totalmente em postulados do Espiritismo.

Primeiramente temos a questão nº 537 de O Livro dos Espíritos:

537. A mitologia dos antigos se fundava inteiramente em ideias espíritas, com a única diferença de que consideravam os Espíritos como divindades. Representavam esses deuses ou esses Espíritos com atribuições especiais. Assim, uns eram encarregados dos ventos, outros do raio, outros de presidir ao fenômeno da vegetação, etc. Semelhante crença é destituída de fundamento?

“Tão pouco destituída é de fundamento, que ainda está muito aquém da verdade.”

Então os Espíritos estão dizendo que existem aqueles que governam os fenômenos da Natureza? Parece que sim. Mas, em primeiro lugar, fomos ensinados, por Kardec, a nada aceitar sem passar pelo crivo da razão. Ora, conhecemos hoje as forças da natureza que fazem surgirem as tempestades. Conhecemos a ação da temperatura sobre os ventos, a razão da formação das nuvens que geram as precipitações e até mesmo a razão da descarga elétrica pelos raios. São fenômenos tão predizíveis que já existem modelos matemáticos computacionais que conseguem predizer, com grande taxa de acerto, quando e quanto vai chover, e com algumas semanas de antecedência.

Então, por que é que haveria de existirem Espíritos comandando algo previsível e que obedece às Leis da Natureza?

Prossigamos para a questão 538:

538. Formam categoria especial no mundo espírita os Espíritos que presidem aos fenômenos da natureza? Serão seres à parte, ou Espíritos que foram encarnados como nós?

“Que foram ou que o serão.”

a) – Pertencem esses Espíritos às ordens superiores ou às inferiores da hierarquia espírita?

“Isso é conforme seja mais ou menos material, mais ou menos inteligente o papel que desempenhem. Uns mandam, outros executam. Os que executam coisas materiais são sempre de ordem inferior, assim entre os Espíritos, como entre os homens.”

Assim, fica entendido que os Espíritos mais elevados não interagiriam diretamente sobre os elementos, mas deixam isso para os Espíritos menos desenvolvidos — o que é racional, afinal isso se torna um exercício de aprendizado para esses também. Segue Kardec, com grifos meus:

539. A produção de certos fenômenos, das tempestades, por exemplo, é obra de um só Espírito, ou muitos se reúnem, formando grandes massas, para produzi-los?

“Reúnem-se em massas inumeráveis.”

540. Os Espíritos que exercem ação nos fenômenos da natureza operam com conhecimento de causa, usando do livre-arbítrio, ou por efeito de instintivo ou irrefletido impulso?

“Uns sim, outros não. Estabeleçamos uma comparação. Considera essas miríades de animais que, pouco a pouco, fazem emergir do mar ilhas e arquipélagos. Julgas que não há aí um fim providencial e que essa transformação da superfície do globo não seja necessária à harmonia geral? Entretanto, são animais de ínfima ordem que executam essas obras, provendo às suas necessidades e sem suspeitarem de que são instrumentos de Deus. Pois, bem: do mesmo modo, os Espíritos mais atrasados oferecem utilidade ao conjunto. Enquanto se ensaiam para a vida, antes que tenham plena consciência de seus atos e estejam no gozo do livre-arbítrio, atuam em certos fenômenos, de que inconscientemente se constituem os agentes. Primeiramente, executam. Mais tarde, quando suas inteligências já houverem alcançado um certo desenvolvimento, ordenarão e dirigirão as coisas do mundo material. Depois, poderão dirigir as do mundo moral. É assim que tudo serve, que tudo se encadeia na natureza, desde o átomo primitivo até o arcanjo, que também começou pelo átomo. Admirável lei de harmonia, que o vosso acanhado espírito ainda não pode apreender em seu conjunto!”

Aqui chegamos a algo muito importante. Na resposta à questão n.º 539, fica esclarecido que os Espíritos a agir sobre tais fenômenos agem reunidos em massas. Não é um Espírito, então, que interage sobre esses fenômenos. Sendo que são massas de Espíritos, na questão n.º 540 Kardec busca entender se essas massas são inteligentes e racionais, agindo por sua vontade, ou não.

Observemos, primeiramente, algo importante: o Espírito não utiliza as tempestades para exemplificar sua resposta, mas usa o exemplo de uma ilha que pode ser formada pela ação de infinitos minúsculos animais, com a ação do tempo, como se dá com os corais. Na pergunta n.º 537, é Kardec quem dá vários exemplos das possibilidades de ação espiritual, incluindo, dentre elas, os ventos, os raios e os fenômenos da vegetação. A resposta do Espírito, limitada por diversas questões, sendo a primeira dela o compromisso de não revelar ao homem aquilo que ele mesmo deve concluir, pela ciência, foi respondida de forma genérica, e se encaixa bem com os fenômenos da última classe.

A resposta à questão n.º 540 demonstra que os seres inferiores (do ponto de vista evolutivo) obedecem às leis da natureza, isto é, ao instinto, de forma cega, mas que, ao fazer assim, atendem a um propósito maior. Esse propósito maior não se cumpre por milagres ou trancos, mas sim através das leis da Natureza, que são as leis de Deus, que visam a harmonia geral. Isso quer dizer que não são Espíritos de qualquer classe que provocam um desastre natural, mas a consequência, justamente, da Natureza. Um desastre pode se dar, por exemplo, pela ação de bactérias que, lentamente, corroam o ferro de uma ponte que, em certo momento, cai, ou pela ação de fungos que atuem de certa forma em um solo de região montanhosa que, saturado então pela chuva, se torne encharcado e deslize sobre toda uma cidade.

E aqui chegamos a um ponto importante: os seres vivos mais simples, desde a célula, o vírus e a bactéria, também tem um princípio espiritual. Estaria explicado, portanto, os Espíritos reunidos em “massas inumeráveis”, governadas pela Natureza, que fazem a harmonia que nosso “acanhado espírito ainda não pode apreender em seu conjunto”.

Então, quando se diz que os Espíritos presidem sobre os fenômenos da Natureza, o que está sendo dito é que existem os Espíritos mais elevados, que, pela sua influência, governam os menos elevados, ligados diretamente à matéria.

Pode um Espírito agir diretamente sobre a matéria?

Creio que a questão ficou bem esclarecida, mas, para reforçar o conceito, vamos recorrer novamente a O Livro dos Espíritos. Nas três questões seguintes e em suas respostas, está muito claro o princípio de que os Espíritos não podem agir diretamente sobre a matéria:

526. Tendo, como têm, ação sobre a matéria, podem os Espíritos provocar certos efeitos, com o objetivo de que se dê um acontecimento? Por exemplo: um homem tem que morrer; sobe uma escada, a escada se quebra e ele morre da queda. Foram os Espíritos que quebraram a escada, para que o destino daquele homem se cumprisse?

“É exato que os Espíritos têm ação sobre a matéria, mas para cumprimento das leis da natureza, não para as derrogar, fazendo que, em dado momento, ocorra um sucesso inesperado e em contrário àquelas leis. No exemplo que figuraste, a escada se quebrou porque se achava podre, ou por não ser bastante forte para suportar o peso de um homem. Se era destino daquele homem perecer de tal maneira, os Espíritos lhe inspirariam a ideia de subir a escada em questão, que teria de quebrar-se com o seu peso, resultando-lhe daí a morte por um efeito natural e sem que para isso fosse mister a produção de um milagre.”

527. Tomemos outro exemplo, em que não entre a matéria em seu estado natural. Um homem tem que morrer fulminado pelo raio. Refugia-se debaixo de uma árvore. Estala o raio e o mata. Poderá dar-se tenham sido os Espíritos que provocaram o raio, dirigindo-o para o homem?

“Dá-se o mesmo que anteriormente. O raio caiu sobre aquela árvore em tal momento porque estava nas leis da natureza que assim acontecesse. Não foi encaminhado para a árvore por se achar debaixo dela o homem. A este, sim, foi inspirada a ideia de se abrigar debaixo de uma árvore sobre a qual cairia o raio, porquanto a árvore não deixaria de ser atingida, só por não lhe estar debaixo da fronde o homem.”

528. No caso de uma pessoa mal intencionada disparar sobre outra um projétil que apenas lhe passe perto sem a atingir, poderá ter sucedido que um Espírito bondoso haja desviado o projétil?

“Se o indivíduo alvejado não tem que perecer desse modo, o Espírito bondoso lhe inspirará a ideia de se desviar, ou então poderá ofuscar o que empunha a arma, de sorte a fazê-lo apontar mal, porquanto, uma vez disparada a arma, o projétil segue a linha que tem de percorrer.”

Os Espíritos não derrogam as Leis da Natureza por um princípio moral, mas simplesmente porque essas Leis são naturais e se cumprem tanto quanto se cumpre que, sobre a superfície de um corpo celeste qualquer, ao soltar um objeto, ele vai cair, por conta da lei da gravidade, com uma velocidade que dependerá da massa desse corpo (planeta, estrela, etc.).

Conclusões

A digressão realizada até aqui serviu para dar um maior embasamento a outro artigo de minha autoria, “Magia negra, feitiços, banhos de sal grosso e ervas, amuletos, wicca: tudo isso existe?” (clique aqui para ler). A magia, como muitos imaginam, não existe. Caso contrário, estaríamos sujeitos a sermos atingidos, contra a nossa vontade, e não importa o quão no bem estejamos, por um feitiço qualquer. Podemos, é claro, ser atingidos por meios materiais, pela ação da vontade de indivíduo, secundado ou não por Espíritos encarnados. Mas, por meios não materiais, o máximo possível é que um Espírito interaja sobre a matéria fluídica, que, para se identificar com a nossa, depende exclusivamente da nossa permissão ostensiva ou da nossa impotência em combatê-la, por não termos subsídios morais para tanto.

E você, o que achou de todo esse pensamento desenvolvido aqui? Deixe seu comentário abaixo!