Espiritismo e karma (ou carma), castigo, pecado e punição

Convidamos ao leitor a assistir com muita atenção a esse estudo em grupo, com a participação de Paulo Henrique de Figueiredo. É uma grande modificação na nossa forma de pensar, ainda tão arraigada nos velhos conceitos da heteronomia (a culpa é do outro). Karma (ou carma), ação e reação, resgate de débitos, todos são temas que jamais fizeram parte do Espiritismo. Está na hora de entendermos isso!




Evocação de Espíritos na Abissínia

O Império Etíope, também conhecido como Abissínia, foi um império que ocupou os presentes territórios da Etiópia e da Eritreia, existindo desde aproximadamente o ano de 1270 (início da dinastia salomónica) até 1974, quando a monarquia foi deposta por um golpe de estado. Portanto, ainda existia na época de Allan Kardec.

Kardec abre o artigo citando uma narração de James Bruce (1730 – 1794), um explorador e escritor escocês, em sua obra Voyage aux sources du Nil, em que diz estar estarrecido com as práticas de bruxaria e evocação do diabo praticadas pelo rei de Gingiro, pequeno reinado na parte meridional de Abissínia.

Kardec assinala que, tivesse Bruce conhecido o Espiritismo, veria que não havia ali nada de absurdo (no que tange às evocações). Além disso, seria um povo que, com certeza, guardou grande número de tradições judaicas e algumas ideias rudimentares do Cristianismo em que, por falta de conhecimento, sorveram a ideia do diabo, não entendendo que eram para Espíritos inferiores que faziam seus sacrifícios.

Dois embaixadores que Socínios, ao rei da Abissínia, enviou ao papa, por volta de 1625, e que tiveram de atravessar o Gingiro. Foi, então, necessário que fosse pedido ao rei uma audiência para que a caravana atravessasse seu território. Aconteceu de o rei estar em cerimonial e determinou que o embaixador e seu acompanhante esperassem oito dias para a audiência com ele. Findo o prazo, a comitiva foi recebida.

A área central em laranja corresponde ao território abissiniano.

O que Kardec cogita é que a tão pouca distância ainda havia degradação e ignorância em se fazer tudo mediante consultas a Espíritos estando tão perto dos principais centros intelectuais. Mescla essa ideia com a temperatura local que, sendo quente, poderia ser potencializada em climas frios. Compara os etíopes, que abrangem quase toda a Abissínia, com os gingiranos que nem adoram o diabo, nem pretendem ter com ele qualquer comunicação; bem como não sacrificam homens em seus altares; enfim, entre eles nenhum traço se encontrava dessa revoltante atrocidade.

Nosso codificador continua a censura ao afirmar que o rei de Gingiro sacrificava ao diabo, naquela época de comércio escravo, os pobres coitados que teriam o destino de serem degredados, dado à proximidade daquele reino com o mar, pois, afastados da costa, sua segurança era garantida.

Como vimos, o Sr. Bruce é o narrador da história e, se ele tivesse visto aquilo que hoje testemunhamos, nada de assombroso acharia na prática das evocações usadas em Gingiro. Ele só viu nelas uma crença supersticiosa, enquanto nós encontramos a sua causa no fato de manifestações falsamente interpretadas, que puderam produzir-se lá como em outros lugares documentados.

Para terminar o artigo, ao sacrificar seres humanos, Kardec conclui, com total confiança à luz do Espiritismo, que não podiam atrair ao seu meio Espíritos superiores. Atribui-se à credulidade o fato de os povos bárbaros cultuarem a um poder maléfico os fenômenos que não podiam explicar, pois tratava-se de um povo bastante atrasado moral e espiritualmente.




Sobre “o caso A Gênese”

Este artigo foi inspirado pelo artigo “O caso A Gênese“, apresentado no Portal Luz Espírita. Nesse artigo, bastante extenso, são apresentados diversos detalhes, passo a passo, que levam afinal o autor, Ery Lopes, e os colaboradores — Adair Ribeiro, Adriano Calsone, Carlos Luiz, Carlos Seth Bastos, Jorge Hessen e Wanderlei dos Santos — a assumir que, não, a Gênese não foi adulterada e que podemos fiar confiança total de que a 5.ª edição, segundo eles editada e impressa em 1869, foi sim uma versão impressa por Allan Kardec.

Devo reconhecer que o artigo tem o mérito de ter tentado se manter imparcial, apresentando inclusive os trabalhos de Simoni Privato, em O Legado de Allan Kardec, onde apresenta uma enorme coleção de provas e de evidências das adulterações.

Em que ponto, então, o artigo passa a assumir que tais adulterações não existem e que todas as evidências estão erradas? Principalmente a partir do item 37 — “As pistas do Catálogo Racional — o qual reproduzo abaixo:

Nesse quadro, apresentam-se algumas pistas, obtidas através da análise da obra Catálogo Racional, que teria tido sua primeira edição distribuída em 1 de abril de 1869, um dia após a morte de Allan Kardec:

  1. Há uma citação à obra La clef de la vie (A chave da vida), de Michel de Figagnères, sobre a qual Kardec teria feito um comentário reportando-se aos itens 4 a 7 do capítulo VIII de A Gênese. O item 7, porém, A Alma da Terra, apenas passou a existir a partir da 5ª edição dessa obra.
  2. Logo a seguir, apresenta-se a evidência de que a obra Os quatro evangelhos, de Roustaing, já teria sido citada pelo próprio professor Rivail nessa primeira edição do Catálogo, diferentemente do que algumas pessoas teriam dito, supondo que tal citação apenas teria se dado por adulteração. 

Há, porém, uma informação muitíssimo importante que se deixou de fora neste ponto: a referência de Kardec aos itens 64 a 68 do capítulo XV de A Gênese. Acontece que o item 68 apenas existiu até a 4.ª edição dessa obra, transformado em item 67 a partir da 5.ª edição, quando o item 67 original foi retirado. Esse item era muito importante, por tratar da questão de que a desaparição do corpo de Jesus, até então, seria assunto não solucionável, pela ausência, até então, da sanção do duplo controle da confirmação pela lógica rigorosa e pelo ensinamento geral dos Espíritos, e sua retirada parece muito estratégica, se considerarmos que as ideias contrárias, vindas de Roustaing, não tinham como se sustentar, pela ausência desse duplo controle.

Ora, por que essa contradição nas referências de Kardec? Por que teria ele, simultaneamente, se referido, em um ponto, a um item que ainda seria inserido em A Gênese, na 5a edição, enquanto que, em outro, se referia a um item que dela seria retirado, na mesma edição?

A lógica me leva pelo seguinte caminho:

  • Kardec já havia preparado a impressão do Catálogo Racional, mas ainda estava em vias de finalizar a impressão de A Gênese, que ainda estava, ao que tudo indica, nos estágios finais de reimpressão para correções e edições.
  • No Catálogo, Kardec faz referência a um item que ainda não existia em A Gênese (Cap. VIII, item 7) e outro que, a partir da 5a edição conhecida, deixou de existir (item 68). Isso pode demonstrar que Kardec, no Catálogo, faria referência a um item da nova edição de A Gênese, e que manteria a referência ao item 68, citado acima. Um provável adulterador, determinado a retirar o importantíssimo princípio da sanção do duplo controle, não notou o problema.
  • O Catálogo já havia sido encomendado e impresso com o conhecimento de Kardec, mas isso não significa que ele seria prontamente distribuído. Muito provavelmente, pela lógica dos fatos, ele esperaria a impressão da nova versão de A Gênese.

Suponho, também, pela lógica dos fatos, que a 5ª edição de A Gênese, por nós conhecida, foi baseada em alterações sobre os nos clichês do próprio Allan Kardec, visto que, nessa edição, o item 7 do capítulo VIII apresenta conteúdo em conformidade com o estilo e com o pensamento do próprio (a meu ver). Assim, as alterações que conhecemos, suponho, não são todas adulterações, mas a hipótese de adulteração fica muito evidente por todas as provas e evidências já apresentadas, até hoje, e pela simples análise de alguns pontos alterados ou suprimidos, que destoam do pensamento, do estilo e dos propósitos de Kardec e, sobretudo, do ensinamento dos Espíritos durante toda a primeira fase do Espiritismo.

Adiciono que não vejo nenhum motivo para Kardec não ter citado a obra de Roustaing em seu Catálogo, visto que ele próprio sugere, logo abaixo à recomendação, que o leitor busque melhores esclarecimentos em A Gênese, nos itens mencionados. Aliás, na 5.ª edição de A Gênese, há uma referência à Revista Espírita de setembro de 1868, pág. 261, que se refere ao mesmo tema contido no item 7 da primeira obra: A Alma do Mundo.

Mais uma evidência que mostra que as alterações na 5.ª edição de A Gênese não são totalmente resultados de adulterações, embora, inclusive sobre esse item, eu não possa afirmar se teria sido, além de introduzido, também adulterado, visto que o trecho que na 5.ª edição de A Gênese finaliza o item 7 do cap. VIII, continua, na Revista Espírita, de uma forma muito importante: “O Espiritismo seria, com razão, ridicularizado por seus adversários, se se fizesse o editor responsável por utopias que não resistem a um exame. Se o ridículo não o matou, é porque só mata o que é ridículo.

Sobre a afirmação muito comum de que algumas cartas confirmam a impressão da 5.ª edição da obra pelas mãos do próprio Kardec, já abordei o caso no artigo “As adulterações nas obras de Kardec e o “CSI do Espiritismo” (clique aqui para ler).

O que quero afirmar com tudo isso é que, sim, é um assunto bastante profundo e complexo, com muitas informações cruzadas a serem analisadas sob uma metodologia muito racional, lógica e verdadeiramente imparcial. Infelizmente, parece que muitas pessoas tentam se agarrar desesperadamente a qualquer evidência de que as adulterações não ocorreram e, ao agirem assim, deixam de analisar os fatos com todo o cuidado que o assunto merece.

Sempre repito: o conteúdo apresentado nas obras “O Legado de Allan Kardec” e “Nem céu, nem inferno” é completo e profundo demais para ser tomado como se fosse apenas um erro qualquer, baseado em informações incompletas ou falsas. Ainda assim, se há espaço para dúvidas, que as demais informações sejam analisadas com o máximo de critério científico, como o próprio Kardec nos ensinou e, enquanto não possam ser sanadas, fiquemos na segurança das obras indubitavelmente impressas de seus próprios punho e bolso.

Quero, por fim, destacar o seguinte: uma das provas mais utilizadas para afirmar que a 5a edição foi de autoria integral do próprio Kardec, a tal 5a edição de 1869, apresenta em sua capa, como endereço de impressão, o novo endereço da sede da Sociedade Espírita Parisiense: “Librairie Spirite et des Sciences Psychologiques”, em “7, rue de Lille”.

Sabemos que Kardec morreu antes do estabelecimento da Sociedade no novo endereço, o que comprova que tal edição somente foi impressa após sua morte. Leia mais clicando aqui.




Autonomia, a moral do novo mundo

Vivemos em um mundo até agora dominado pelos conceitos de heteronomia. Para bem entender esse conceito, precisamos analisar a etimologia da palavra: heteronomia é formada do radical grego “hetero” que significa “diferente”, e “nomos” que significa “lei”, portanto, é a aceitação de normas que não são nossas, mas que reconhecemos como válidas para orientar a nossa consciência que vai discernir o valor moral de nossos atos. Esse entendimento é fundamental.

O mundo heterônomo

No mundo heterônomo, nós atribuímos tudo a algo externo: a culpa está no diabo ou no obsessor, o efeito está na ira divina e a reparação está na imposição carmática. Tudo, absolutamente tudo no mundo heterônomo, vem como imposição externa, através de leis que respeitamos por obrigação, e não por entendimento. E na ausência dela ou de seus atores, nos vemos sem limites e sequer sem amor-próprio.

A heteronomia é algo inerente e talvez mesmo necessário a uma condição de pouco avanço espiritual, quando, sem o entendimento mais profundo dos mecanismos da vida e da evolução, somos forçados a atender, por medo, às imposições de leis divinas, humanizadas, ou mesmo das leis humanas, divinizadas. Infelizmente, como já sabemos, também é algo extensamente utilizado pelas religiões para manter o controle sobre seus fieis. Mas isso é algo que, conforme podemos constatar, vai se modificando conforme o avanço do Espírito humano, tanto em ciência quanto em moralidade.

Um grande problema do conceito da heteronomia, ou, antes, da crença nele, é que ele entrava por certo tempo a evolução do Espírito: ora, se o indivíduo acredita que suas dificuldades na vida são um castigo imposto por Deus, ele apenas aceita seus efeitos, de forma submissa (o que, sim, é importante), mas sem fazer nada para se modificar. Aguarda apenas o fim de suas provações. Nem mesmo a caridade pode ser realmente entendida e praticada em um contexto heterônomo, pois o indivíduo pratica a caridade esperando um retorno, sem entender que ela é uma obrigação moral e natural do ser pensante.

Outro ponto muito problemático é que quando o indivíduo acredita no castigo divino — e, pior ainda, no castigo eterno — é muito comum que perca qualquer limite após cometer um erro. Com certeza o leitor já ouviu inúmeras vezes a afirmação: “já vou para o inferno mesmo, então, um pecado a mais, tanto faz”.

Mas nos enganamos se pensamos que o conceito heterônomo se encontra apenas nas religiões. Infelizmente, mesmo no meio espírita, tal conceito também se infiltrou, sobretudo com a adulteração das obras O Céu e o Inferno e A Gênese, de Allan Kardec. Se hoje ouvimos constantemente, da boca de espíritas, as palavras “carma”, “lei de ação e reação”, “resgate”, isso se dá em grande parte por essas adulterações, passadas de geração em geração e que hoje fazem muitos de nós, espíritas, ainda acreditarmos que o “carma” faz eu renascer nessa vida para “resgatar” um erro passado.

Vejamos bem: é justamente uma das mais sérias adulterações em O Céu e o Inferno que incutiu esse pensamento heterônomo, que atrasa o avanço do Espírito, no seio de uma Doutrina que era totalmente voltada à autonomia do ser. No capítulo VII, item 9 da obra citada, vamos ler: “Toda falta cometida, todo mal realizado é uma divida contraída que deverá ser paga; se não for em uma existência, será na seguinte ou seguintes”. Esse item não existia até a morte de Kardec, sendo que só apareceu em novas edições feitas mais de dois anos após a morte do Professor.

Não — insisto em dizer: no Espiritismo não existe carma, nem “lei de ação e reação” e, muito menos, “resgate”. São conceitos que, no fundo, tem o mesmo efeito da crença no castigo divino.

A Autonomia

Oposta ao conceito da heteronomia, a autonomia (auto — de si mesmo) coloca o indivíduo como peça central em sua evolução. Depende de sua vontade, única e exclusivamente, tanto suas ações, quanto seus pensamentos e os Espíritos atraídos ou repelidos por estes.

No conceito da autonomia, que não nasceu com o Espiritismo, mas que foi por essa Doutrina ampliado — e demonstrado — o Espírito é senhor de si mesmo e de suas escolhas desde o momento em que desenvolve a consciência e, com isso, passa a ter o livre-arbítrio. Escolhe, assim, entre bem e mau, ou melhor, escolhe sobre formas de agir frente às situações e se felicita ou não com seus efeitos. Contudo, quando o efeito é negativo, não significa que está sendo efetivamente castigado por um Deus punitivo, mas sim que está sofrendo as consequências morais de suas ações. E essas consequências morais só existem para o Espírito que já tem consciência de sua existência, razão pela qual os animais, por exemplo, não as tem.

É assim que, avaliando as consequências de nossos atos e, quando mais conscientes, as imperfeições morais que nos levam a cometer erros, nos impomos, a nós mesmos, vidas cheias de provas e de expiações, com o fim de tentar nos livrarmos dessas imperfeições, a partir do aprendizado:

“Uns, portanto, impõem a si mesmos uma vida de misérias e privações, objetivando suportá-las com coragem”, quando desejam conquistar paciência, resignação ou saber agir com poucos recursos. Outros desejam testar se já superaram as paixões inferiores e então “preferem experimentar as tentações da riqueza e do poder, muito mais perigosas, pelos abusos e má aplicação a que podem dar lugar”. Aqueles que lutam contra os abusos que cometeram, “decidem a experimentar suas forças nas lutas que terão de sustentar em contato com o vício” (O Livro dos Espíritos, p.220).

É claro: ao praticar o mal contra Espíritos Inferiores, teremos uma hipótese quase garantida de recebermos, em troca, a vingança; mas essa vingança, se houver, é efeito da escolha do outro Espírito, e não de uma reação “carmática” de uma suposta “lei de ação e reação” — que, aliás, é uma lei da Física Newtoniana, e não divina. Ao praticar a vingança, o outro Espírito também erra, pois dá margem ao hábito de suas imperfeições e, por isso, pode entrar em um círculo de erro e vingança com o outro que pode durar séculos. Quando isso não ocorre — e esse é o ponto-chave — o efeito é apenas o Espírito que erra permanecer por mais tempo afastado da felicidade dos bons Espíritos, por conta de suas próprias imperfeições.

Não existe “lei de ação e reação” no Espiritismo

Muitas pessoas, apegadas a velhos conceitos do passado, se sentem perplexas com tal afirmação, mas qualquer um que se tenha colocado dedicadamente a estudar o Espiritismo consegue perceber que a moral autônoma, em tudo, é colocada bastante clara aos nossos olhos, através da concordância universal dos ensinamentos dos Espíritos. O que ganhamos ao fazer o bem? Avançaremos mais rápido. E o que sofreremos ao praticar o mal? Ficaremos mais tempo retidos à inferioridade espiritual e à roda das sucessivas encarnações em mundos inferiores.

O Espiritismo nos demonstra que, ao entrarmos no círculo da consciência, passamos a versar sobre nossos próprios destinos, sendo que as provas e as expiações que enfrentamos na atual encarnação se devem às nossas próprias escolhas, realizadas antes de encarnarmos, ainda que muito difíceis, posto que, em estado de Espírito errante (libertos do corpo), avaliamos de forma muito mais clara nossas imperfeições e, assim, escolhemos oportunidades, ainda que sofridas, para aprendermos e nos elevarmos. O Espiritismo, aliás, quando bem compreendido, favorece muito a que tomemos melhores escolhas, pois paramos apenas de desejar a expiação de erros passados, numa mecânica de pecado e castigo, e passamos a escolher oportunidades que nos levem mais a fundo a aprender e a desenvolver melhores hábitos, abafando as imperfeições que tenhamos transformado em hábitos.

Já abordamos um caso bem típico, extraído da Revista Espírita, que trata da questão das escolhas do Espírito quanto às suas provas, tratado por Kardec na evocação do assassino Lemaire, na edição de março de 1858.

Outro caso bastante interessante é o de Antônio B, que, tendo emparedado viva sua esposa na vida anterior, não sabendo lidar com essa culpa, planejou uma encarnação onde terminou enterrado vivo, após ser pensado morto. Acordou no caixão e lá dentro padeceu horrivelmente até sua morte, como se tivesse “pagado” aquela dívida com sua própria consciência. O que realmente interessa nesse caso é que, efetivamente, em vida, foi um homem probo e bom, e não precisaria desse fim trágico para “quitar” qualquer coisa.

Uma prova racional de que não existe tal “lei”: se um Espírito inferior praticar o mal contra um Espírito superior, o que ele receberá em troca? Nada além de compreensão e amor. O próprio exemplo do assassino Lemaire nos demonstra isso. Onde estaria então o retorno? Num outro Espírito que Deus designaria para sua “vingança”, para “cobrar uma dívida”, tornando-o, assim então, também um Espírito em débito para com a Lei?

Não, prezado irmão: não existe retorno senão na constatação, cedo ou tarde, por parte do próprio Espírito, de que ele não é feliz enquanto for imperfeito. Claro, precisamos também lembrar: o Espírito se encontra no meio em que se apraz, e atrai para si os Espíritos de mesma vibração. Portanto, poderá até se sentir alegre, mas jamais será feliz o Espírito que, por suas predisposições, só atrai para si Espíritos inferiores. Nisso também consiste uma espécie de castigo.

A razão explica, conduz e conforta

A maior característica do Espiritismo é ser uma Doutrina científica racional, cuja teoria nasceu da observação lógica dos fatos e dos ensinamentos dos Espíritos. Ora, em se tratando de Deus, qual seria a razão de ele nos punir com castigos, sendo que ele nos criou e sabe que nossos erros nascem de nossas imperfeições? Não há racionalidade nisso. É como se puníssemos nossas crianças por errarem contas de matemática ou por colocarem o dedo na tomada: em ambos os casos, a dor ou a sensação de ficar para trás é a punição em si mesma e, ao adicionarmos a isso uma punição adicional, estamos apenas condicionando o ser a não pensar e apenas a ter medo de errar — e, portanto, a ter o medo de tentar.

Falávamos da razão: pois é por ela, principalmente, que o Espiritismo nos conduz a melhores escolhas evolutivas. Ao entender profundamente a Doutrina, deixamos de fazer escolhas por conta de imposições ou expectativas externas, seja porque “Deus quer”, porque “Jesus espera”, ou porque “o diabo assombra”. Passamos a fazer melhores escolhas, com uma vontade mais ativa, quando entendemos que, quanto mais tempo dermos margem às nossas imperfeições ou à nossa materialidade, mais tempo demoraremos para sair dessa “roda de encarnações” dolorosas e embrutecidas.

Também esse entendimento é um grande remédio contra o suicídio: não mais o vemos com as concepções de pecado e castigo — que ainda são divulgados e defendidos até no meio espírita — mas, sim, com o entendimento racional: se sou Espírito inferior, cheio de imperfeições, significa que a vida é rica oportunidade de aprendizado. Encurtá-la por minha escolha, além de ser uma enorme oportunidade perdida, será apenas perda de tempo, pois me verei, em Espírito, imperfeito como sou, talvez de forma ainda mais escancarada, e terei que voltar e recomeçar uma nova existência para poder aprender e me livrar das imperfeições que me impossibilitam de me tornar mais feliz.

A expiação explicada à luz da Doutrina Espírita

Define assim Kardec, em Instruções práticas sobre as manifestações espíritas, de 1858:

EXPIAÇÃO — pena que sofrem os Espíritos em punição de faltas cometidas durante a vida corpórea. Como sofrimento moral, a expiação se verifica no estado errante; como sofrimento físico, no estado de encarnado. As vicissitudes e os tormentos da vida corpórea são, ao mesmo tempo, provas para o futuro e expiação para o passado.

Parece, por esse texto, que Kardec então defendia que, sim, pagamos na vida atual pelos erros passados? Não exatamente. Não podemos esquecer que, para a Doutrina Espírita, a autonomia, ou o Espírito como ator central de tudo, é a peça-chave de tudo. Portanto, mesmo no caso da expiação, é algo que consiste na escolha do próprio Espírito, com o intuito de buscar superar uma imperfeição adquirida:

A duração do castigo está subordinada ao aperfeiçoamento do espírito culpado. Nenhuma condenação por um tempo determinado é pronunciada contra ele. O que Deus exige para pôr fim aos sofrimentos é o arrependimento, a expiação e a reparação – em resumo: um aperfeiçoamento sério, efetivo, assim como um retorno sincero ao bem.

KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno. Tradução por Emanuel G. Dutra, Paulo Henrique de Figueiredo e Lucas Sampaio. Editora FEAL, 2021.

E, para bem entender o uso dos termos castigo e punição, por Allan Kardec, é necessário entender o contexto filosófico do Espiritualismo Racional, no qual ele estava inserido. Já falamos sobre isso no artigo “Punição e recompensa: você precisa estudar Paul Janet para entender Allan Kardec“.

Contudo, bem sabemos que “os tempos são chegados” e que o planeta Terra deixará, lentamente, de ser um planeta de provas e expiações para ser um mundo de regeneração, onde deverá haver encarnações um pouco mais felizes do que as atuais. Usemos, um momento, a razão para avaliar tudo isso que temos exposto até aqui:

Se a Doutrina Espírita, nos ensinando a moral autônoma, nos traça melhores rumos e melhores escolhas, pensemos: o que ensina mais ao indivíduo? Um sofrimento de mesmo gênero e mesmo grau, como no caso de Antônio B, acima, ou, entendendo as imperfeições que nos levaram a praticar o mal, em primeiro lugar, uma vida cheia de oportunidades, muitas vezes bastante desafiadores e trabalhosas, de exercitarmos o aprendizado e a prática do bem?

Entende onde estamos chegando? Tudo, absolutamente tudo, depende de nossas escolhas frente à nossa capacidade de entendimento consciente de nós mesmos, e, nisso, o estudo do Espiritismo nos alavanca em vários degraus.

É por isso que o mundo vai deixar de ser um mundo de provas e expiações: porque os Espíritos que aqui encarnam passarão a escolher melhor suas encarnações, deixando de aplicar a si mesmos a lei de talião (olho por olho, dente por dente) para, então, cuidarem de desenvolver hábitos morais mais saudáveis. Até nisso contatamos que tudo parte do indivíduo para fora, e não o contrário.

Conclusão

Portanto, irmãos, avante: estudemos o Espiritismo de forma aprofundada e, hoje sabendo das adulterações em O Céu e o Inferno e A Gênese, estudemos as versões originais (já disponibilizadas pela FEAL) de modo a não mais perdermos tempo com conceitos heterônomos e, sobretudo, de modo a não mais repetirmos, no meio Espírita, as lastimáveis afirmações como aquelas que dizem que “fulano nasceu com problemas mentais porque está pagando por um erro na vida passada”. Isso, além de ser um erro absurdo, afasta as pessoas do Espiritismo.

Veja um exemplo:

Pasmemos: essa frase não é de Kardec. Nem parece ser sua, nem pode ser encontrada em NENHUMA de suas obras. Essa é uma prova a mais do quanto o Espiritismo foi invadido por falsas ideias, quase sempre antidoutrinárias.

Nossas provas são ricas oportunidades, quase sempre escolhidas por nós mesmos, sendo impostas apenas nos casos em que não temos condições conscienciais para tais escolhas e, mesmo assim, se dão por ação de benevolência de Espíritos superiores, e não como castigo divino.

A alma ou Espírito sofre na vida espiritual as consequências de todas as imperfeições que não conseguiu corrigir na vida corporal. O seu estado, feliz ou desgraçado, é inerente ao seu grau de pureza ou impureza. (O céu e o inferno).

O maior castigo que há está em continuarmos por eras incontáveis nos arrastando na lama de nossas imperfeições. Isso já é o bastante.


Nota: o nome do artigo vem do texto de mesmo título, que serviu de inspiração a este, do livro Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo, de Paulo Henrique de Figueiredo.

Sugestões de estudos

Sugerimos ao leitor os seguintes conteúdos complementares:




O Período Psicológico

Kardec traz à reflexão o fato de que o Espiritismo entrava, passados os momentos iniciais de manifestações puramente materiais, no Período Psicológico.

Discorda, todavia, que a Ciência humana estaria encerrada: muito longe disso, ainda teria muito a se desenvolver, no futuro.  

Para melhor entender o artigo, precisamos entender o significado de Psicologia no contexto de Allan Kardec e no contexto atual.

A Psicologia atual

A Psicologia, nos dias atuais, de característica terapêutica materialista, tem 3 vertentes:

Behaviorismo
Tem como objeto de estudo o comportamento. Essa teoria psicológica defende que a psicologia humana ou animal pode ser objetivamente estudada por meio de observação de suas ações, ou seja, observando o comportamento.  Os Behavioristas acreditam que todos os comportamentos são resultados de experiência e condicionamentos.

Psicologia da forma (Gestalt)
É uma doutrina da psicologia baseada na ideia da compreensão da totalidade para que haja a percepção das partes.  A proposta deste modelo é associar praticas cognitivas com as emoções e sentimentos do paciente, para que ele possa enxergar novos meios de encarar as situações difíceis da vida.

Psicologia analítica (Psicanálise)
Psicologia analítica, também conhecida como psicologia junguiana ou psicologia complexa, é um ramo de conhecimento e prática da Psicologia, iniciado por Carl Gustav Jung. Ela enfatiza a importância da psique, do inconsciente, dos arquétipos e do processo de individuação.

A Psicologia no contexto de Kardec

No contexto de Kardec, a Psicologia não tinha a característica terapêutica materialista de hoje: ela era uma ciência moral, espiritualista, inserida no contexto do Espiritualismo Racional, e seu principal objetivo era investigar e analisar as leis naturais que regem a natureza humana, inclusive de forma experimental.

Nesse contexto, a Psicologia compreendia o ser humano como um ser constituído de corpo e de alma. A alma, que sobreviveria ao corpo, era a causa primária da psique, não sendo esta um efeito apenas material de química e estímulos.

Antes de Allan Kardec, ou antes do Espiritualismo Racional, a filosofia tradicional tratou da alma de forma especulativa, por meio de sistemas criados por pensadores como Platão, Aristóteles, Leibniz e Kant. O advento da psicologia experimental abriu novo caminho: o das ciências filosóficas, que o Espiritismo vem complementar. Nas palavras de Allan Kardec:

O Espiritismo, a seu turno, vem dar a sua teoria. Ele se apoia na psicologia experimental; ele estuda a alma, não só durante a vida, mas após a morte; ele a observa em estado de isolamento; ele a vê agir em liberdade, ao passo que a filosofia ordinária só a vê em união com o corpo, submetida aos entraves da matéria, razão pela qual muitas vezes confunde causa e efeito

 Allan Kardec – R.E. – Maio de 1864

A psicologia é a ciência que estuda os processos mentais (sentimentos, pensamentos, razão) e o comportamento humano. Deriva-se das palavras gregas: psiquê, que significa “alma” e logia, que significa “estudo de”.

E de que forma o Espiritismo estuda a alma? Através dos fenômenos espíritas que, contudo, não são mais estudados apenas pelo entretenimento ou pela curiosidade, mas, justamente, com o fim de investigar as leis naturais que regem a natureza humana!

E por que tudo isso acabou?

O fim do período psicológico, ou, antes, o crepúsculo das Ciências Filosóficas, segundo Paulo Henrique de Figueiredo, se deu por conta da união do poder da Igreja com o Estado Ditatorial, que eram hostis ao esclarecimento da sociedade e contra a doutrina liberal defendida pelo Espiritualismo Racional.

Importa dizer: o liberalismo nesse contexto não diz respeito a uma liberdade desenfreada, fruto do egoísmo, mas sim a uma liberdade conduzida pela razão e iluminada pela consciência.

Aliado a isso, um forte movimento materialista começa a se levantar na Alemanha, por volta de 1860, e acaba por invadir a França, onde destitui as Ciências Morais da cátedra oficial.

E no Brasil? O Espiritualismo Racional, que formou a primeira escola filosófica estabelecida no país e que chegou a ser implantado na estrutura curricular de ensino, também se deparou com

 […] condições adversas que os primeiros indivíduos conscientes da teoria original enfrentaram quando pretenderam criar um movimento espírita brasileiro. Uma Igreja combativa, lutando para manter seus privilégios e o poder que se esvaía desde o Segundo Império. E uma corrente científica materialista, embalada pelos pensamentos retrógrados de Comte e dos fisiologistas alemães, como Vogt, Moleschott, Virchow e Büchner. A corrente espiritualista racional, bravamente defendida pela liderança de Gonçalves de Magalhães e Porto-Alegre, que se tornaram divulgadores do magnetismo animal e depois do Espiritismo, apesar de contagiar professores e estudantes de seu tempo, logo foi silenciada e esquecida. Em realidade, não foi possível estabelecer em nossas terras o cenário favorável que Kardec encontrou na França

Paulo Henrique de Figueiredo – Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo

O resultado disso tudo é o que vemos hoje: uma sociedade totalmente materialista, voltada aos prazeres da carne e esquecida da espiritualidade, amedrontada ante a vida e desesperada ante o túmulo!

O que esperar para o futuro?

Apenas o melhor, porque, da mesma forma que o Espiritualismo Racional nasceu em oposição ao materialismo da época, vivemos agora um fervilhar de iniciativas como a nossa e ainda melhores, que, com certeza, produzirão, em alguns anos, frutos importantíssimos para esta época de mudanças que atravessamos!

Lembra Kardec, com o que encerramos o artigo:

Esses excessos, entretanto, têm a sua utilidade, a sua razão de ser. Eles assustam a sociedade, e o bem sai sempre do mal; é preciso o excesso do mal para fazer sentir a necessidade do melhor, sem isto o homem não sairia de sua inércia

(KARDEC, [RE] 1868, p. 201)




Karma e Espiritismo

Karma e Espiritismo são como água e óleo: não se misturam. Cuidado com as pessoas que pregam a doutrina do karma dentro do meio espírita, pois o entendimento da Doutrina Espírita vai no sentido oposto: não estamos encarnados para pagar nada a ninguém, porque não devemos nada a ninguém, muito menos a Deus!

Encarnamos para vivenciar nossas escolhas e com elas aprender, através de provas e dificuldades, mas também através de abençoadas oportunidades, qual é a de ter o contato com o Espiritismo, que alavanca nosso progresso em muitos degraus, quando bem entendido e vivenciado.

Tudo faz parte de escolhas nossas, inclusive, na maior parte das vezes, a nossa forma de morrer. Mas, nisso, não há Karma. “Mas Paulo, fulano disse que as pessoas morreram queimadas na Boate Kiss porque mataram outras queimadas em outras vidas!”

Sinto dizer, mas fulano está quase totalmente errado. Que Deus seria esse, que castiga a ignorância na mesma moeda, à moda de Talião, em uma forma que nada ensina a ninguém? Isto posto, quero dizer: sim, existem Espíritos que ESCOLHEM castigos, seja durante a vida, seja na forma de morrer, por ACREDITAREM no karma e não saberem lidar com a culpa sobre seus erros. Veremos isso em O Céu e o Inferno, Segunda Parte, Capítulo VIII: tendo matado sua esposa emparedada, na vida precedente, mesmo tendo sido por ela perdoada, PLANEJOU uma morte horrível a fim de tentar se livrar dessa culpa. Vejam: planejou! E precisava? Não, porque na vida atual, foi bom homem, ou seja, buscou APRENDER a ser uma pessoa melhor.

Entende? Não estamos aqui para pagar dívidas, mas para aprender a sermos Espíritos mais felizes, através do abafamento de nossas imperfeições através do aprendizado! E isso, muitas vezes, é feito através de duras penas, inclusive no contato difícil com uma pessoa a quem, no passado, fizemos algum mal, e que, ainda sofrendo seus efeitos, tentamos auxiliar em uma nova encarnação. Mas, vejam: é questão de escolha consciente.

É nesse sentido que a Terra está deixando de ser um planeta de provas e expiações para ser um planeta de regeneração, pois a expiação consiste justamente no tipo de escolha de Antonio B, ou do assassino Lemaire (capítulo VI), enquanto que Espíritos melhor esclarecidos escolhem não apenas sofrer na pele, mas, sim, oportunidades melhores de aprenderem. E, junto a isso, chegamos ao tema da educação proposta por Pestalozzi, a cada dia mais tão necessária e importante.

Portanto, chega de se culpar. É claro: se fizemos um mal que ainda existe no momento em que nossa consciência desperta sobre ele, busquemos, sim, repará-lo, mas através do trabalho, e não da auto-flagelação. E isso vale para qualquer momento, seja na carne, seja na erraticidade. O que realmente importa é aprender, desenvolver melhores hábitos, desenvolver em si a humildade e a caridade. Isso sim interrompe o ciclo do mal e da dor.




O Livro dos Espíritos é a “Bíblia dos Espíritas”?

Hoje cedo me deparei com exatamente essa opinião, em uma discussão em certo grupo do Youtube. Compreensível que muitas pessoas a tenham, por não entenderem o que é o Espiritismo, mas inquestionável que só pode emiti-la aquele que não se dedicou a ler, sequer, a introdução de O Livro dos Espíritos – que dirá as demais obras de Allan Kardec. Mas, antes de adentrar por tais caminhos, vamos aqui fazer uma introdução explicativa ao assunto.

A Bíblia

Em primeiro lugar, é preciso compreender o que é, de fato, a Bíblia: um compêndio doutrinário constituído de histórias, afirmações e opiniões do homem a respeito da divindade e da Espiritualidade. Não podemos objetar, porém, que não tenha sido adulterado em diversos pontos pelos interesses pessoais e de grupos diversos, como o fez a Igreja Católica Romana em episódios historicamente conhecidos. Assim, em resumo, é uma obra repleta de muita moralidade, mas também permeada de erros humanos por toda a parte, inclusive introduzidos por uma interpretação anacrônica tanto da história, como da cultura e da língua original. Sabemos, hoje, que sobretudo no Velho Testamento, mas também no Novo Testamento, a linguagem era repleta de neologismos e figuras que, para aquele povo, naquela época, faziam todo sentido.

Há, ainda, uma enorme diferença entre os dois livros que compõem a Bíblia – O Velho Testamento e O Novo Testamento – posto que, entre eles, há um espaço de séculos que introduziram nova mentalidade na humanidade. No primeiro momento, os “textos sagrados” são repletos de ideias ainda mais atrasadas e permeados de leis e afirmações humanas, inaceitáveis nos dias atuais, que, naquele tempo, tinham a finalidade de legislar com poderes divinos sobre um povo que não tinha a menor capacidade de entender conceitos que, mais tarde, seriam aceitáveis. Já o Novo Testamento carrega um enorme conteúdo moral, inatacável em sua essência, ensinado e exemplificado por um Espírito Puro, conhecido por nós como Jesus. Kardec, em O Evangelho Segundo o Espiritismo, se ocupa apenas do Novo Testamento, por seu grau de elevação, deixando o Velho Testamento de lado.

A grande questão é que, através dos tempos, com adulterações ou não, a Bíblia, em seu todo, foi sempre utilizada como “palavra da salvação”, que deveria ser obedecida cegamente. Justamente aí as religiões encontraram largo campo para disseminarem as suas ideias próprias, introduzindo os diversos dogmas que, em verdade, não estavam lá, a fim de comandarem seus fieis segundo seus interesses políticos e materiais particulares.

O Espiritismo

Diferentemente da Bíblia, que nasceu de relatos e histórias de poucos homens, a teoria espírita, que constitui uma Ciência Filosófica, nasceu da observação racional dos fatos espalhados sobre todo o globo e por todos os tempos. É justamente sob essa autoridade que Kardec vê espaço e necessidade de buscar trazer à compreensão espírita os fatos ou as histórias narrados na Bíblia. O estudo aprofundado do Espiritismo nos demonstra, como sempre, que Allan Kardec não pode ser considerado “pai” ou “profeta” do Espiritismo, como nenhum outro poderia, pois sua qualidade foi apenas a de um pesquisador, como tantos outros, que, frente a uma “nova” descoberta, se coloca a analisá-la com paciência, persistência e método, juntando as peças de um quebra-cabeças para compor uma imagem que, em suas peças separadas, não pode ser compreendida ou que não faz sentido algum.

O Livro dos Espíritos foi a primeira obra por ele concluída, nascida de um vasto estudo sobre as diversas mensagens espirituais obtidas antes e após o início de seus estudos. Ainda assim, entre a primeira edição e a segunda há enormes diferenças, sobretudo em conceitos que foram posteriormente investigados mais a fundo e complementados ou corrigidos. Mas como Kardec realizava tal estudo?

O Estudo Metodológico do Espiritismo

O mundo dos Espíritos não pode ser vislumbrado como nós vemos o nosso mundo. Ele não produz os efeitos que em nossos sentidos produzem a matéria densa que constituem o nosso mundo: o ar, invisível aos olhos, através do vento é sentido pelo tato; o sabor é sentido pelas papilas gustativas; a luz é captada pelos olhos e processada pelo cérebro. Contudo, o mundo dos Espíritos só pode ser perebido por sentidos especiais, que constituem aquilo que chamamos mediunidade.

Na mediunidade existem diversos tipos de sentido – para fazer uma aproximação com o mundo que entendemos – e que dão, aos seus “portadores”, as capacidades de sentir e de se comunicar, ou de dar comunicação, aos seres que constituem esse mundo, sendo que esses seres são os Espíritos, mais ou menos libertos da matéria e mais adiantados e superiore ou bastante atrasados e inferiores. Através das mediunidades, podemos constatar a existência de algo acima do mundo material, de uma inteligência que sobrevive à matéria, sendo que algumas delas, como diversos pesquisadores, além do próprio Kardec, se mostram de forma apenas questionável pelo pior dos orgulhos, tais como são a mediunidade de efeitos físicos e o sonambulismo. A primeira obtem efeitos físicos sem grande extensão moral, enquanto que, na segunda, o conteúdo moral é muitas vezes vasto, totalmente fora das capacidades e dos conhecimentos do médium que a transmitem. Mas reservaremos esse assunto a outro artigo.

Importa dizer que era sobretudo nos médiuns sonambúlicos e nos psicógrafos mecânicos que Kardec mais buscava as comunicações, por percebê-las mais ricas e menos suscetíveis aos conteúdos próprios. Ainda assim, como pesquisador, Kardec sabia muito bem que não podia confiar apenas na opinião de um ou outro médium ou um ou outro Espírito: precisava buscar na generalidade e na concordância dos ensinamentos dos Espíritos a base inabalável da Doutrina Espírita:

Generalidade e concordância no ensino, esse o caráter essencial da doutrina, a condição mesma da sua existência, donde resulta que todo princípio que ainda não haja recebido a consagração do controle da generalidade não pode ser considerado parte integrante dessa mesma doutrina. Será uma simples opinião isolada, da qual não pode o Espiritismo assumir a responsabilidade.

Essa coletividade concordante da opinião dos Espíritos, passada, ao demais, pelo critério da lógica, é que constitui a força da doutrina espírita e lhe assegura a perpetuidade.

Allan Kardec – A Gênese

E não poderia ser diferente, afinal, do ponto de vista do pesquisador, o mundo dos Espíritos é inatingível e impossível de ser sondado e analisado. Façamos um breve esforço de imaginação: digamos que, querendo nos mudar para outro país, sem que o conheçamos, queiramos colher o máximo de informações a respeito desse lugar e do seu povo. Digamos que não tenhamos acesso à Internet e que dispomos apenas do meio telefônico. Pegamos um número de um habitante desse país e ligamos para ele – claro, pensamos que ambos falam uma mesma língua – a fim de obter um relato desse lugar: como são as pessoas lá? São boas ou más? Há violência ou não? Poderei contar com apoio ou não? Bem, é fácil se supor que o relato dessa única pessoa estará alinhado com sua capacidade de percepção cultural, política, educacional, histórica, social e mesmo com suas tendências e concepções próprias. Pode ser, aliás, que tenhamos inadvertidamente ligado para um criminoso, sem que o saibamos. Vamos, então, fiar nossa decisão ou nossa concepção daquele povo através de apenas um único relato? É claro que não: precisamos, nesse quadro, ligar para muitas outras pessoas, analisar obras bibliográficas e artísticas produzidas por seus habitantes, etc.

É exatamente o mesmo que Allan Kardec realizou, analisando incontáveis comunicações obtidas de todos os lados, por incontáveis médiuns e por incontáveis Espíritos, tirando, disso tudo, conclusões racionais e lógicas, postulados e, às vezes, teorias científicas, que somente estudos futuros poderiam sancionar ou derrogar.

Conclusão

Poderíamos, verdadeiramente, passar horas e horas falando muito mais sobre os estudos de Allan Kardec, mas o fato é que já existe muito material a respeito disso, sobretudo na obra do próprio Kardec que, como sempre demonstrava, não tinha um conteúdo nascido de suas próprias ideias. Deixamos ao leitor essa busca necessária. Nos limitamos a encerrar este artigo, depois de toda essa abordagem anterior, demonstrando que o Espiritismo não uma religião e que, como Ciência é uma Doutrina que apresenta seus estudos e suas conclusões, de forma racional e lógica, e deixa a cada um a tarefa que raciocinar por si mesmo sobre todo o conteúdo apresentado. Ora, como mesmo as Ciências Modernas, tão bem estabelecidas, encontram seus dissidentes com suas ideias mais absurdas, o Espiritismo não poderia esperar menos. Ainda assim, é questão de liberdade de cada um.

Nós, espíritas, acreditamos no Espiritismo não por medo ou imposição, mas, sim, porque compreendemos de forma natural a racionalidade contida nessa Doutrina Científica. Acreditamos na reencarnação não por provas incontundentes, mas por uma racionalidade incontundente; acreditamos na existência dos Espíritos e na sua comunicação conosco também pela razão, mas também pela seriedade dos pesquisadores que já se lançaram a estudar as manifestações com grande cuidado e que, por si próprios, constataram provas irrefutáveis de tal existência; mas não acreditamos de forma cega nos ensinamentos dos Espíritos, muito menos em qualquer suposto fenômeno. O próprio Kardec asseverava: O Espiritismo deve andar de mãos dadas com a Ciência. Se, um dia, esta desmentir alguns postulados de sua Doutrina, devemos abandoná-los e ficar com a Ciência. Ora, pelo contrário, a Ciência Moderna vem a cada dia mais se aproximando e dando confirmação aos postulados espíritas, assim como a Ciência do século XIX e início do século XX o fez.




Lei de ação e reação, lei do retorno, carma: por que sofremos, segundo o Espiritismo?

Talvez você que esteja lendo, como eu, já tenha feito aquela pergunta: “Deus, por que comigo?”

Esse questionamento, bastante natural quando ainda não temos plena compreensão dos ensinamentos dos Espíritos superiores através do Espiritismo, ainda encontra muitas explicações inexatas ou mesmo erradas, justamente por essa falta de compreensão, que nasce pela falta de estudo.

Vamos apresentar algumas dessas opiniões incongruentes com o Espiritismo:

  • Porque Deus quer
  • Porque estou pagando por um mal passado
  • Porque estou sendo castigado por um erro de outras vidas
  • Porque é o acaso
  • É karma (ou carma)
  • É a Lei de Ação e Reação (o que reflete um mal passado)
  • É “resgate” de outras vidas

Todas as explicações, exceto a que diz ser obra do acaso, refletem, no fundo, uma mesma opinião: se estou sofrendo é porque Deus está me submetendo a um castigo, já que eu errei. Uma opinião ainda vai além: Deus não gosta de mim.

Nós precisamos nos descolar um pouco mais dessas velhas concepções, de uma época em que a mentalidade humana não estava pronta para avançar alguns passos à frente e entender um Deus que é todo bondade e amor. No passado, acreditávamos que Deus era um ser cruel, vingativo, cheio de ira e de cólera, porque Lhe atribuíamos nossas imperfeições, por não conseguirmos entender um ser que não as tivesse. Hoje, contudo, não é mais dessa forma.

Allan Kardec, em O Livro dos Espíritos, apresenta uma face de Deus, obtida dos ensinamentos dos Espíritos superiores, nunca antes conhecida na face da Terra – pelo menos não como doutrina:

1. Que é Deus?

“Deus é a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas” *

2. Que se deve entender por infinito?

“O que não tem começo nem fim; o desconhecido; tudo que é desconhecido é infinito.”

3. Poder-se-ia dizer que Deus é o infinito?

“Definição incompleta. Pobreza da linguagem dos homens, insuficiente para definir o que está acima de sua inteligência.”

[…]

13. Quando dizemos que Deus é eterno, infinito, imutável, imaterial, único, onipotente, soberanamente justo e bom, temos ideia completa de seus atributos?

“Do vosso ponto de vista, sim, porque credes abranger tudo. Sabei, porém, que há coisas que estão acima da inteligência do homem mais inteligente, as quais a vossa linguagem, restrita às vossas ideias e sensações, não tem meios de exprimir. A razão, com efeito, vos diz que Deus deve possuir em grau supremo essas perfeições, porquanto, se uma lhe faltasse, ou não fosse infinita, já ele não seria superior a tudo, não seria, por conseguinte, Deus. Para estar acima de todas as coisas, Deus tem que se achar isento de qualquer vicissitude e de qualquer das imperfeições que a imaginação possa conceber.”

Sendo que nossa concepção de Deus evoluiu muito, como então podemos atribuir a ele a execução de castigos ou de cobranças, posto que Ele sabe que as imperfeições que temos são apenas momentâneas e que desaparecerão com a nossa evolução?

Mas, podemos objetar, fatos são fatos: se não há acaso, mas sofro, deve então haver uma razão para tais sofrimentos. Se não fui eu quem causou o sofrimento, então alguém está me submetendo a eles, portanto, só pode ser Deus.

Precisamos, porém, analisar essa cadeia de pensamentos de forma racional, que é o convite sempre feito por Kardec frente a quaisquer questões:

Em primeiro lugar, precisamos compreender que somos Espíritos encarnados e enquanto estivermos ligados ao corpo, sobretudo em estado tão denso, estaremos sujeitos às vicissitudes da matéria, incluindo as dores e os sofrimentos naturalmente causados por algo como, por exemplo, frio e calor.

Em segundo lugar, precisamos aprender a analisar e distinguir os gêneros de sofrimentos causados por nós mesmos, na presente encarnação, pelas nossas formas de agir e de pensar. Nesse sentido, Kardec nos chama à reflexão:

Remontando-se à origem dos males terrestres, reconhecer-se-á que muitos são consequência natural do caráter e do proceder dos que os suportam.

Quantos homens caem por sua própria culpa! Quantos são vítimas de sua imprevidência, de seu orgulho e de sua ambição!

Quantos se arruínam por falta de ordem, de perseverança, pelo mau proceder, ou por não terem sabido limitar seus desejos!

Quantas uniões desgraçadas, porque resultaram de um cálculo de interesse ou de vaidade e nas quais o coração não tomou parte alguma!

Quantas dissensões e funestas disputas se teriam evitado com um pouco de moderação e menos suscetibilidade!

Quantas doenças e enfermidades decorrem da intemperança e dos excessos de todo gênero!

Quantos pais são infelizes com seus filhos, porque não lhes combateram desde o princípio as más tendências! Por fraqueza, ou indiferença, deixaram que neles se desenvolvessem os gérmens do orgulho, do egoísmo e da tola vaidade, que produzem a secura do coração; depois, mais tarde, quando colhem o que semearam, admiram-se e se afligem da falta de deferência com que são tratados e da ingratidão deles.

Interroguem friamente suas consciências todos os que são feridos no coração pelas vicissitudes e decepções da vida; remontem passo a passo à origem dos males que os torturam e verifiquem se, as mais das vezes, não poderão dizer: Se eu houvesse feito, ou deixado de fazer tal coisa, não estaria em semelhante condição.

Allan Kardec – O Evangelho Segundo o Espiritismo – cap. V

Fica muito evidente que muitos sofrimentos há que nascem por conta de nossas ações, mesmo que em pensamento, e sobre os quais não podemos acusar senão a nós mesmos.

Mas, e a respeito dos sofrimentos que não causamos nesta vida? De onde vem eles então? Se não vem de hoje, muitos dirão, são reflexos de outras vidas. Estou apenas pagando por erros passados. Mas, refletiremos, se Deus não cobra nem nos castiga, quem é que está me cobrando por supostos débitos? Minhas vítimas do passado, alguns dirão. Supomos mesmo que, muitas vezes, vítimas nossas nos perseguem por mais de uma encarnação, buscando vingança. Mas seria isso uma regra? Não há os inúmeros casos dos Espíritos que perdoam seus algozes e seguem suas vidas? Quem, então, quem estaria nos cobrando e punindo? Onde estaria o tribunal?

Há, neste ponto, um ensinamento muitíssimo importante dado pelos Espíritos superiores, citado em O Livro dos Espíritos:

621. Onde está escrita a lei de Deus?

“Na consciência.”

Essa resposta é tão sucinta, mas tão completa, que nos espanta. Ora, já entendemos que o Espírito só passa a ter livre-arbítrio quando entra no reino da consciência. Antes disso, suas ações são maquinais, respondendo apenas aos instintos. Quando, consciente, porém, passa a ter a livre escolha sobre os seus atos e, por assim dizer, entre bem e mau.

Estou tomando uma linha de exposição bastante construtiva a fim de bem elaborar o pensamento: entendemos, então, que, a partir do momento em que desenvolvemos a consciência, a Lei de Deus passa a vigorar em nossa própria mente. Assim, enfim, chegamos à resposta crucial: quem nos persegue somos nós mesmos.

Quando fazemos de uma imperfeição, um hábito, passamos a cometer erros que, então, passam a nos fazer infelizes a partir do momento em que nos conscientizamos sobre eles. Quando no estado de erraticidade, então, avaliamos nossos atos e suas consequências, sobre nós e sobre os outros, e passamos a planejar novas encarnações com provas que visamos nos ajudem a aprender e a vencer essas imperfeições. Muitas vezes, contudo, perseguidos por uma grande culpa e ainda pouco desenvolvidos no entendimento, chegamos ao ponto de planejar grandes e dolorosas expiações, como a criança que, não sabendo lidar com a culpa por algum mal cometido, pede ao pai que a castigue.

Vemos, portanto, que as dificuldades e dores de nossas vidas, quando não oriundas de nossas ações presentes, são ricas oportunidades de aprendizado e reajuste. Outras vezes, tragédias e dores terríveis são planejadas pelo próprio Espírito para buscar aliviar sua consciência sobre algo passado. Contudo, fica uma lição muito importante: conforme entendemos mais profundamente a mecânica da evolução espiritual, faremos melhores planejamentos para nossas encarnações.

Ainda somos Espíritos muito ligados a essas concepções de pecado e castigo, chegando ao ponto de elaborar planejamentos reencarnatórios ligados à “Lei de Talião” — olho por olho, dente por dente. Mas, conforme compreendemos que o que realmente importa é identificar nossas imperfeições transformadas em maus hábitos e corrigi-las, entendendo que o castigo ensina pouco ou quase nada, buscaremos formas melhores de planejar novas oportunidades, nos desligando progressivamente da necessidade das expiações muito brutas para, então, buscar oportunidades mais ligadas a uma educação espiritual basilar, desde os primeiros passos da infância material, com vistas a fortalecer virtudes e a abafar imperfeições.

Afinal, queremos dizer: as dificuldades desta vida, por pior que pareçam, se não são efeito negativo de nossas ações presentes ou da própria Natureza, são oportunidades planejadas por nós mesmos para nossa elevação. Nos esforcemos, portanto, para encarar de forma diferente essas provações, buscando aprender com elas, nos apoiando sempre na prece e nos estudos do Espiritismo, que muito podem fazer por ajudar a mudar nossas concepções ainda nesta vida.

Para complementar esta leitura, sugerimos a leitura do artigo sobre Punição e Recompensa, publicado recentemente.


Sugestões de leitura:

  1. O caso de Antonio B, em O Céu e o Inferno
  2. Nossas reflexões sobre o artigo A Fatalidade e os Pressentimentos, apresentado na edição de Março da Revista Espírita de 1858
  3. O Assassino Lemaire, na Revista Espírita de Março de 1858



Júpiter e alguns outros mundos

Nesse artigo, muito conectado ao anterior, Kardec, se reportando à Escala Espírita, faz algumas outras conjecturas a respeito de como poderia ser um planeta todo habitado por Espíritos da nona (décima) classe, as dificuldades imensas, o estado geral de crime, de horror, de padecimentos físicos e morais.

Em seguida, conjectura um planeta habitado por Espíritos todos da terceira ordem – Espíritos impuros, levianos, pseudo-sábios e neutros. Dominaria, aí, ainda o mal, embora cada vez menos presente conforme se afastassem da nona (décima) classe tais Espíritos. O orgulho, o egoísmo, as paixões, a escravização e diversas outras imperfeições morais ainda aí dominariam.

NUMA TAL SOCIEDADE, SE DOMINAR, O ELEMENTO IMPURO ESMAGARÁ O OUTRO; CASO CONTRÁRIO, OS MENOS MAUS PROCURARÃO DESTRUIR OS SEUS ADVERSÁRIOS; EM TODO CASO HAVERÁ LUTA, LUTA SANGRENTA, DE EXTERMÍNIO, PORQUE SÃO DOIS ELEMENTOS QUE TÊM INTERESSES OPOSTOS. PARA PROTEGER OS BENS E AS PESSOAS, HAVERÁ NECESSIDADE DE LEIS, MAS ESSAS SERÃO DITADAS PELO INTERESSE PESSOAL E NÃO PELA JUSTIÇA; SERÃO FEITAS PELO FORTE, EM DETRIMENTO DO FRACO

Em seguida, Kardec nos convida a imaginar, no meio desses Espíritos, alguns da segunda ordem: veríamos, então, em meio às perversidades, algumas virtudes.

SE OS BONS FOREM MINORIA, SERÃO VÍTIMAS DOS MAUS; À MEDIDA, PORÉM, QUE SE ACENTUA SEU PREDOMÍNIO, A LEGISLAÇÃO TORNA-SE MAIS HUMANA, MAIS EQUITATIVA E A CARIDADE CRISTÃ DEIXA DE SER PARA TODOS LETRA MORTA. DESSE MESMO BEM NASCERÁ OUTRO VÍCIO. A DESPEITO DA GUERRA QUE OS MAUS DECLARAM INCESSANTEMENTE AOS BONS, ELES NÃO PODEM EVITAR ESTIMÁ-LOS EM SEU FORO ÍNTIMO. VENDO O ASCENDENTE DA VIRTUDE SOBRE O VÍCIO E NÃO TENDO FORÇA NEM VONTADE DE PRATICÁ-LA, PROCURAM PARODIÁ-LA E TOMAM A SUA MÁSCARA. DAÍ OS HIPÓCRITAS, TÃO NUMEROSOS EM TODA SOCIEDADE ONDE A CIVILIZAÇÃO É AINDA IMPERFEITA.

Afinal, Kardec chega, pela imaginação, a um mundo todo habitado por Espíritos da segunda ordem, para onde, pela simples leitura, gostaríamos de nos transportar neste exato momento. Não reina ali a igualdade absoluta, posto que a segunda ordem ainda abrange Espíritos de vários graus de desenvolvimento. Contudo, essa desigualdade não gera inveja do menos avançado nem orgulho do mais avançado: todos estariam unidos no propósito de aprendizado e elevação.

AS CONSEQUÊNCIAS QUE TIRAMOS DESTE QUADRO, EMBORA APRESENTADAS DE MANEIRA HIPOTÉTICA, NÃO SÃO MENOS RACIONAIS, E CADA UM PODE DEDUZIR O ESTADO SOCIAL DE UM MUNDO QUALQUER, CONFORME A PROPORÇÃO DOS ELEMENTOS MORAIS DE QUE O SUPOMOS CONSTITUÍDO.

VIMOS QUE, ABSTRAÇÃO FEITA DA REVELAÇÃO DOS ESPÍRITOS, TODAS AS PROBABILIDADES SÃO PARA A PLURALIDADE DOS MUNDOS. ORA, NÃO É MENOS RACIONAL PENSAR QUE NEM TODOS ESTEJAM NO MESMO GRAU DE PERFEIÇÃO E QUE, POR ISSO MESMO, NOSSAS SUPOSIÇÕES PODEM PERFEITAMENTE SER EXPRESSÃO DA REALIDADE.

Vemos, através desse exercício, em que momento espiritual a Terra se encontra e em quais já se encontrou. Baseados nesse pensamento e na Escala Espírita, vemos quais males ainda precisamos extirpar de nossas individualidades a fim de avançar para melhores posições.

Sobre alguns planetas vizinhos, Kardec informa que, segundo os Espíritos, Marte seria um planeta ainda mais atrasado que a Terra, onde se encarnariam Espíritos quase exclusivamente da nona (décima) classe. Mas, pelo fato de que não encontramos nada em Marte além de poeira devemos imaginar que os Espíritos enganaram Kardec? Ora, não! Apenas que essa encarnação deve se dar em estado fluídico, fora de nossos sentidos.

Segue Allan Kardec comentando alguns ensinamentos a respeito de outros planetas, sendo o mais interessante aqueles que falam a respeito de Júpiter, que seria um planeta de muito maior elevação espiritual que o nosso. Ali encarnariam, segundo relatos dos Espíritos, apenas Espíritos da segunda ordem. Retratam, esses Espíritos, cidades maravilhosas.

Será que um dia pousaremos lá uma sonda e constataremos uma civilização perceptível aos nossos sentidos e aparelhos? Talvez sim, talvez não. Pode ser que um dia pousemos lá e encontremos um planeta gélido e deserto, como pode ser que encontremos alguma forma de vida. Não sabemos e, caso se dê o primeiro caso, também poderemos supor que tais cidades e civilização se constituem, também, em matéria etérea, como já sabemos que mesmo nas circunvizinhanças de nossos planeta tal fato se dá.

De qualquer forma, são conjecturas de um tempo passado que, embora válidas em muitos sentidos, talvez possam ser um dia – quando os estudos metodológicos das comunicações dos Espíritos possam ser retomados – revisitadas e complementadas ou corrigidas.




A pluralidade dos mundos

A ciência da época de Kardec é algo bastante diferente do que é hoje. Muitos avanços científicos foram obtidos e, enquanto Kardec podia apenas imaginar como seriam os planetas vizinhos e mesmo lua, hoje já visitamos o último corpo celeste diversas vezes, já pousamos pelo menos 3 veículos autônomos em Marte e, há pouco, fizemos chegar à órbita de Mercúrio a primeira sonda humana. Enorme revolução, se comparada a uma época onde apenas se podia fazer cogitações, através de uma luneta.

Iniciamos assim de forma a nos colocar no tempo de Kardec, o que é imprescindível para entender suas conjecturas a respeito dos corpos astrais próximos. É muito importante, também, notar que há duas partes distintas na Doutrina Espírita a esse respeito: os conhecimentos e conjecturas humanos e os conhecimentos ensinados pelos Espíritos, da forma que o homem podia entender àquela época.

Da parte humana, Kardec, nesse artigo, faz diversas conjecturas a respeito de como seriam os outros mundos, baseado naquilo que a ciência humana de então já havia podido observar. Cria hipóteses, bastante plausíveis para o conhecimento de então, sobre as formações atmosféricas desses orbes distantes, conjecturando, então, a respeito das possíveis formas de vida que aí poderiam haver, inclusive aquelas não detectáveis pelos nossos cinco sentidos, ou seja, aquelas que poderiam estar em estados muito mais sutis da matéria.

Mas a intenção desse artigo de Kardec não é apenas fazer conjecturas filosóficas a respeito da vida, vista de forma científica, fora da Terra: é também fazer o leitor refletir a respeito da grandeza divina, que nada faz por acaso e que, também nesse sentido, não teria feito planetas apenas para a nossa apreciação. Aliás, Kardec faz essa abordagem baseado nos ensinamentos dos Espíritos, como podemos verificar em O Livro dos Espíritos:

55. SÃO HABITADOS TODOS OS GLOBOS QUE SE MOVEM NO ESPAÇO?

“SIM E O HOMEM TERRENO ESTÁ LONGE DE SER, COMO SUPÕE, O PRIMEIRO EM INTELIGÊNCIA, EM BONDADE E EM PERFEIÇÃO. ENTRETANTO, HÁ HOMENS QUE SE TÊM POR ESPÍRITOS MUITO FORTES E QUE IMAGINAM PERTENCER A ESTE PEQUENINO GLOBO O PRIVILÉGIO DE CONTER SERES RACIONAIS. ORGULHO E VAIDADE! JULGAM QUE SÓ PARA ELES CRIOU DEUS O UNIVERSO.”

[…]

57. NÃO SENDO UMA SÓ PARA TODOS A CONSTITUIÇÃO FÍSICA DOS MUNDOS, SEGUIR-SE-Á TENHAM ORGANIZAÇÕES DIFERENTES OS SERES QUE OS HABITAM?

“SEM DÚVIDA, DO MESMO MODO QUE NO VOSSO OS PEIXES SÃO FEITOS PARA VIVER NA ÁGUA E OS PÁSSAROS NO AR.”

Cientificamente, naquela época, já era possível constatar que a Lua não tinha atmosfera, que Mercúrio seria muito quente e que Saturno seria muito frio. Como, então, poderia haver vida nesses orbes? Sobre isso, temos duas hipóteses, adotadas por Allan Kardec:

  1. Os seres que ali vivem, se forem de constituição física de mesma densidade da nossa, poderiam ser adaptados a esses lugares, como na Terra existem seres vivos que sobrevivem ao frio e ao calor extremos ou mesmo a compostos químicos que nos matariam em pouco tempo, bem como existem animais adaptados a viverem a vida toda dentro da água e outros apenas na terra.
  2. Os seres que ali vivem são constituídos de matéria etérea, mais sutil que a nossa matéria e, por isso, vivem em condições totalmente adversas das nossas. Sobre isso, também em O Livro dos Espíritos, há um indício:

58. OS MUNDOS MAIS AFASTADOS DO SOL ESTARÃO PRIVADOS DE LUZ E CALOR, POR MOTIVO DE ESSE ASTRO SE LHES MOSTRAR APENAS COM A APARÊNCIA DE UMA ESTRELA?

“PENSAIS ENTÃO QUE NÃO HÁ OUTRAS FONTES DE LUZ E CALOR ALÉM DO SOL E EM NENHUMA CONTA TENDES A ELETRICIDADE, QUE, EM CERTOS MUNDOS, DESEMPENHA UM PAPEL QUE DESCONHECEIS E BEM MAIS IMPORTANTE DO QUE O QUE LHE CABE DESEMPENHAR NA TERRA? ADEMAIS, NÃO DISSEMOS QUE TODOS OS SERES SÃO FEITOS DE IGUAL MATÉRIA QUE VÓS OUTROS E COM ÓRGÃOS DE CONFORMAÇÃO IDÊNTICA À DOS VOSSOS.”

O que Kardec faz nesse artigo é, de posse de informações obtidos pela ciência humana e pela ciência espírita, raciocinar, junto ao leitor, sobre a possibilidade muito natural de haver vida, de alguma forma, em todos os orbes existentes no espaço e, inclusive, no espaço, isto é, no espaço “vazio”. Não há, nesse pensamento, nada de errado.

Contudo, podemos pensar: “já chegamos à Lua e a Marte e não encontramos nada daquilo que ele imaginava. Kardec, portanto, errou”. Ora, pela segunda hipótese, não, ele não errou. Podem ali existir seres em estado etéreo, como entre nós os Espíritos vivem, passeiam e interagem, através de seus perispíritos, sem que sequer os notemos (senão quando temos faculdades mediúnicas para tal). Outrossim, precisamos lembrar que Kardec nunca se disse dono da última verdade: apenas raciocinava com base no que a ciência lhe fornecia.

Pode ser que um dia pousemos num planeta próximo e lá encontremos novas formas de vida, sensíveis aos nossos sentidos, ou pode ser que estejam todos os planetas próximos vazios de vida biológica, talvez mesmo por sabedoria divina que, quem sabe, entenda que o homem apenas encontraria motivos para guerras se encontrasse outros seres vivos em planetas próximos. Agora, vocês vêem, sou apenas eu conjecturando.