Caridade e Espiritismo:

Quando se quer fazer o bem, a ação, sem dúvidas, é indispensável, sem esquecer que o que conta é realmente a intenção. Não porque Deus esteja anotando as intenções, mas porque é ela que conta para o aprendizado ou para o apego do indivíduo. Mas não podemos esquecer que o ideal é saber o que se faz, para não fazer errado. Vamos falar sobre Caridade e Espiritismo.

Falando em Movimento Espírita, temos, infelizmente, a prática de alguns que se colocam a julgar. De um lado, alguns que se limitam ao acúmulo do saber para si mesmos, criticam aqueles que se concentram na prática. De outro lado, alguns, que se limitam à ação, sem vontade de buscar o conhecimento, colocam-se a julgar aqueles que buscam o conhecimento, como se o saber não fosse útil. Estou aqui para mostra que ambos os extremos estão errados.

O inferno está cheio de boas intenções

Há um ditado popular que diz: “o inferno está cheio de boas intenções”. Isso significa: querendo fazer o bem, mas não sabendo o que se faz, pode-se produzir o mal. Evidente, é claro, que não há condenação senão pela própria consciência e que o indivíduo que erra querendo fazer o bem sentirá sofrimento moral muito menor do que aquele que erra querendo fazer o mal. Mas o fato que destaco é que, para fazer o bem, o ideal é que se saiba o que se faz, e é por isso que o entendimento do Espiritismo é tão importante para a compreensão real do que seja a caridade.

Há algum tempo, um grupo de jovens se reuniu para satisfazer o sonho de um amigo: pular de bungee jump, que consiste em se prender a cordas e pular de um lugar alto. Conseguiram as cordas, amarraram o amigo que, então, saltou de um precipício, para se estatelar no chão e morrer. O problema? Eles não conheciam a ciência do que estavam fazendo e não calcularam bem o tamanho da corda. Penso na culpa que cada um deles deve carregar ainda hoje.

Acumular saber sem nada fazer

Existem também os indivíduos que se concentram em acumular conhecimentos. Mas esses conhecimentos eles não aplicam nem a si mesmos, nem ao bem dos demais: eles apenas os guardam para si, de modo que, sempre que possível, possam provar que sabem mais que os outros. É o cúmulo do orgulho e do egoísmo, mas, um dia, esse conhecimento lhe será útil para agir, quando se arrepender de seus desvios.

Relato: idosa, pobre e com oito crianças para cuidar

Como relato pessoal, posso contar de um centro espírita que frequentei por muitos anos. Desde que me lembro, a prática ali é voltada ao bem, mas conforme as ideias que moldam o movimento espírita atual, como se fosse uma religião: frequentar a reunião da “casa espírita” semanalmente, ouvir a palestra, tomar um passe e ir embora. Uma vez por mês há uma reunião mediúnica para assistência de Espíritos sofredores. Fora dali, não se fala em Espiritismo e muito menos se o pratica. O Centro está esvaziado, porque não há maior interesse. Com muito esforço e superando enormes dificuldades, os participantes da casa promovem mensalmente um ato de entrega de cestas básicas para famílias necessitadas. E é isso. Essas famílias não participam de atividades da casa e não conhecem a real beleza do Espiritismo. Saindo dali, elas vão em outras instituições e igrejas buscar mais itens necessários.

Certa vez, quando por acaso eu estava presente nesse dia de entrega de cestas-básicas, notamos uma senhora que já comparecia ali há mais de dois anos. Ela estava extremamente triste. Sua situação: com quase 70 anos, perdeu dois de seus filhos em acidentes diferentes. Esses filhos a deixaram com um total de oito crianças, que ela buscava sustentar catando lixo e contando com alguma ajuda que obtinha daqui e dali.

Revoltada com Deus

Nesse dia, essa senhora estava desesperada e revoltada com Deus. Não conseguia aceitar essa situação. Se perguntava: “que Deus é esse que permite tais coisas?”. Notando isso, minha mãe e eu começamos a conversar especialmente com ela. Conseguimos fazê-la compreender que essas coisas acontecem, como parte das provas. Que talvez tenha sido algo escolhido previamente ou não, mas que, de qualquer maneira, ela estava tendo um papel tão importante na vida dessas crianças, ensinando-as o exemplo do amor, da dedicação e, sobretudo, lhes dando valores morais tão importantes. Eu lhe disse: “esses Espíritos agradecerão demais o seu empenho”, o que lhe fez brotar um novo brilho no olhar.

Além disso, organizamo-nos de diversas maneiras e conseguimos doações diversas, inclusive colchões, pois as crianças dormiam no chão.

Desse dia em diante, vimos uma nova energia dominar seu Espírito. Uma nova determinação para enfrentar essas dificuldades lhe dominou o ser. Ela deixou de lado a revolta, porque algo claro e simples lhe atendeu ao raciocínio.

A face real do Espiritismo

Esse “algo”, claro e simples, é o Espiritismo em sua essência. Não esse “espiritismo” com “e” minúsculo, afastado dos estudos científicos de Kardec e preso aos mais diversos erros nascidos da aceitação cega das opiniões dos Espíritos, quase sempre em romances mediúnicos. Não: o Espiritismo, doutrina filosófica, desenvolvida pelo método científico. “O Espiritismo não é obra que marche na sombra. Ele é conhecido; seus princípios são formulados com clareza, precisão e sem ambiguidades” (Revista Espírita, Março de 1863).

Outros poderiam erradamente dizer que essa senhora estaria “quitando” débitos de vidas passadas, o que é falso ((Ainda que ela possa ter tido ligações passadas com esses Espíritos e que, sentindo-se em débito por algo, tenha escolhido ajudá-los nesta vida, não se trata de “quitar” algo, mas sim de aprender auxiliando.)) ou, ainda, que essas crianças nasceram naquele meio para quitar suas dívidas. Esquecem-se ou desconhecem que o Espírito também escolhe tais situações para aprendizado, e não apenas para expiações (sendo as escolhas dos Espíritos que buscam se desapegar de uma imperfeição adquirida). Além disso, não refletem no que tais palavras podem fazer com uma mente já perturbada.

A questão aqui não é dizer que um faz mais que outro ou que um seja melhor que o outro. O ponto é: o Movimento Espírita, sem o conhecimento do Espiritismo, se tornou manco, incompleto, incapaz de dar a verdadeira face do Consolador Prometido. Sem o conhecimento, a caridade se torna mero assistencialismo. Quem sabe, se naquela oportunidade dada por Deus, não tivéssemos dado atenção àquela senhora ou não tivéssemos condição de dizer algo melhor, ela poderia ter continuado revoltada ou se amargurado mais ainda, para, quem sabe, tomar atitudes lastimáveis, abalada por nossas palavras?

Fora da Caridade não há salvação

Quando Kardec estipulou esse estandarte do Espiritismo, “fora da caridade não há salvação”, ela fazia um contrapeso à frase da Igreja Católica, que dizia que “fora da Igreja não há salvação”. Mas não apenas isso: ele definia exatamente o princípio de caridade pelo Espiritismo, como meio de salvação, sendo o esforço próprio em fazer o bem ou voltar para ele.

O que é a caridade para o Espiritismo? É o dever moral. É a ação pelo bem, que não espera recompensas. E fazer o bem é desejar ser útil ao próximo, auxiliando e sendo auxiliando, aprendendo e ensinando. Ora, como ser realmente útil, sem saber o que se faz? Poderíamos, desejando ser úteis, amarrar cordas nas pernas do outros, para empurrá-la de um barranco, sem medir o tamanho dessa corda.

Sempre tenho destacado, porque eu mesmo passei por isso, como aquela senhora também passou e como muitos outros também passaram: nos momentos mais difíceis de nossa vida, nos mais avassaladores, nossa consciência busca respostas racionais para o que passamos. E a fé, como bem dizia Kardec, quando não pode encarar a razão, esmorece. Muitos se afastam da religião e de qualquer espiritualidade quando isso acontece.

Repito o que disse Kardec sobre o Espiritismo: “seus princípios são formulados com clareza, precisão e sem ambiguidades“. Foi o conhecimento desses princípios, adquiridos apenas após trinta e três anos vivendo no Movimento Espírita, que me permitiram dar palavras claras, simples e racionais àquela senhora. Foi esse conhecimento que me permitiu sair de uma depressão, por um trabalho longo e ininterrupto de estudo.

Conclusão

O que pretendo demonstrar, enfim, é que o Espiritismo é uma doutrina científica que nos dá o conhecimento para errar muito menos, fazendo o bem com mais assertividade e transmitindo menos ideias erradas. Hoje, olho para trás e vejo incontáveis exemplos de pessoas que se afastaram do Movimento Espírita por conta das falsas ideias que dominam esse meio, que se tornou uma religião como todas as outras.

Aquecer um ser que passa frio; dar-lhe alimento para não sucumbir pela fome; água para matar-lhe a sede: todas são ações de caridade necessárias e inadiáveis. Mas e sobre auxiliá-lo a mudar suas disposições interiores pelo entendimento, coisa que o Espiritismo consegue com clareza inigualável? E sobre acolhê-lo, ouvindo suas queixas, suas dores, para então dar-lhe uma ideia de uma filosofia que permite ver a vida de outra maneira, clara e racional, além de simples? Afinal, a muitos que estão nessas condições, falta a vontade, muitas vezes justamente por crerem que estão assim por castigo.

A ideia original do Espiritismo é muito mais clara, racional e clemente. Ela reflete a bondade da justiça divina. A caridade, segundo o Espiritismo, é algo simples e profundo: consiste fazer o bem sem esperar retorno. Afastarmo-nos desse conhecimento tem nos tornado pouco úteis ou até mesmo danosos em nossas falas e em nossas ações, mesmo quando aspiramos fazer o bem.




A Caridade verdadeira, segundo o Espiritismo

Caridade: termo tão usado em toda parte, mas, ainda, tão mal compreendida. Que seria a Caridade verdadeira, segundo o Espiritismo?

Para nós, espíritas, ela aparece em todo canto, em toda literatura. Kardec a tornou base necessária para toda e qualquer felicidade, dizendo: “fora da caridade não há salvação”. A afirmativa, é claro, nasceu de uma certa oposição ao dogmatismo religioso, que tentava apregoar que a salvação estava em cada seita, de forma exclusivista e mesmo egoísta, mas não deixa de ser verdade, pois, sem caridade, não há amor ao próximo.

Contudo, o termo caridade tomou, hoje, conotação de assistencialismo, quase que exclusivamente, tornando-se sinônimo de doação material. Mas, para que realmente possamos entendemo-la dentro do contexto espírita, precisamos voltar ao contexto de Allan Kardec, na França de meados de 1850:

É importante destacar que o termo caridade utilizado por Kardec, para o Espiritualismo Racional, naquele tempo (divergindo da definição atual do termo, que se aproxima do assistencialismo), representava agir pelo dever, ou seja, de forma livre, consciente, intencional, independentemente de castigos e recompensas, com a plena compreensão da lei moral. A caridade é um princípio que orienta o agir integral do ser, e não uma atividade complementar, como se fosse um comportamento acessório […].

Paulo Henrique de Figueiredo – O Legado de Allan Kardec

Vemos, assim, que a caridade, bem entendida, deve constituir o ser, o modo de proceder, e não apenas se constituir de ações isoladas que, muitas vezes, falam mais pela necessidade de se fazer visto como “pessoa caridosa”, situação na qual não há real caridade, mas apenas ego e vaidade. Mais que isso, a caridade não se resume à doação material. Na verdade, eu diria, ela é, na maioria das vezes, oposta à doação material, visto que quem doa materialmente, seja dinheiro, seja comida, sejam coisas, muitas vezes o faz como uma forma de alívio de consciência.

O caro leitor que me perdoe, pois o intuito realmente não é julgar ninguém em suas ações. O próprio Cristo exemplificou, na “parábola do óbulo da viúva”, que a intenção real, ou, se quisermos, a fé, é quem fala mais alto. Muitas pessoas doam dinheiro ou outros recursos querendo realmente fazer o bem e, claro, isso conta muito. Mas quantas vezes nós nos limitamos a fazer uma doação material, sem mesmo refletir sobre o que estamos fazendo e sobre a situação real daquela pessoa que nos pede, num ato [enganoso], quase sempre, de desobrigação de ir além, ou apenas para nos sentirmos bem?

Pensemos: quantas pessoas utilizam doações para, revendendo recursos, obter dinheiro para obter entorpecentes? Quantas pessoas, dispondo de recursos fáceis, se lançam nos piores vícios e desregramentos, cavando mais e mais o próprio buraco em que se afundam? Será que doar a essas pessoas, regularmente, está realmente ajudando em suas situações? Será, realmente, que se os ricos simplesmente doassem suas fortunas, a miséria humana acabaria?

Não digo, de forma alguma, que não devemos doar recursos materiais; mas pensemos além, analisando cada situação e buscando ser fraternos com o irmão que nos busca, nos importando realmente com a situação dessa pessoa. Muitas vezes, uma simples pergunta do tipo “por que está na rua, irmão? O que está passando?” pode abrir caminho para uma relação muito mais frutífera que, não esqueçamos, beneficia os dois lados.

O indivíduo que realmente deseja fazer o bem, não faz a caridade uma vez por mês ou por semana: ele é caridoso, o tempo todo. E ser caridoso consiste em colocar o outro à frente de nossas próprias vontades e necessidades. Quantas vezes, pessoas passando pelos mais difíceis momentos de suas vidas, encontram forças para fazer a caridade de um dar sorriso a quem chora ainda mais? Minha avó, por exemplo, passando por uma grave e dolorida doença, encontrava forças para ser doce e afável, sorrindo a todos que vinham visitá-la em seus últimos dias da última encarnação. Não será isso um gênero de caridade – talvez dos maiores que existem?

Quando pensarmos, portanto, em caridade, precisamos pensar necessariamente em uma coisa: ir além. Se doamos algo material, que isso seja apenas a porta para criar um vínculo e uma abertura para aprofundar a relação com o irmão que pode estar em grande sofrimento. Mas, sobretudo, não esqueçamos que a maior caridade que podemos fazer ao próximo é lhe levar amor, fé e consolação, sobretudo através do exemplo de quem vivencia o que fala e não apenas como quem joga palavras ao vento.

É, portanto, um gênero de caridade com a humanidade nos esforçarmos em nosso próprio adiantamento moral, buscando modificarmo-nos à luz daquilo que nos consola e, em nosso caso, estudando dedicadamente O Espiritismo, doutrina que, muitas vezes na vida, nos salvou de escolhas ruins ou nos conduziu a melhores caminhos. Aprendamos a espalhá-lo sem chocar, isto é, sem iniciar as conversas falando em reencarnação e obsessão, mas, sim, apresentando a filosofia tão consoladora encontrada nessa Doutrina.

Sairemos, então, portão afora, e encontraremos por todos os lados pessoas precisando, desesperadamente, de algo que as console, que as ajude a tirar o pensamento de desistência de suas cabeças, que as auxilie a passar pelas provas da vida com fé inabalável e com firmeza decidida. São pessoas quase sempre difíceis, pelo momento de crise que vivem, e não seria caridade maior nos esforçarmos por ajudá-la, de forma persistente e fraterna, mesmo sabendo que, muitas vezes, viveremos dificuldades nesse contato inicialmente difícil?

Acreditem, irmãos: fazemos caridade muito maior deixando para trás nossas imperfeições e espalhando consolações e conhecimentos que podem mudar, para sempre, o rumo de um Espírito, do que apenas doando uma “coisa”, que ele vai usar e descartar, enquanto nós viramos nossas costas e seguimos nossa vida, sem vontade de ir além. Afinal, de que adianta doar um saco de arroz para alguém que pede no portão enquanto não somos caridosos, sequer, com os membros de nossa própria família ou com nossos subordinados no trabalho?

Encerro deixando a mensagem de “Um Espírito Protetor”, apresentada no capítulo XIII de O Evangelho Segundo o Espiritismo:

Meus amigos, a muitos dentre vós tenho ouvido dizer: Como hei de fazer caridade, se amiúde nem mesmo do necessário disponho?

Amigos, de mil maneiras se faz a caridade. Podeis fazê-la por pensamentos, por palavras e por ações. Por pensamentos, orando pelos pobres abandonados, que morreram sem se acharem sequer em condições de ver a luz. Uma prece feita de coração os alivia. Por palavras, dando aos vossos companheiros de todos os dias alguns bons conselhos, dizendo aos que o desespero, as privações azedaram o ânimo e levaram a blasfemar do nome do Altíssimo: “Eu era como sois; sofria, sentia-me desgraçado, mas acreditei no Espiritismo e, vede, agora, sou feliz.” Aos velhos que vos disserem: “É inútil; estou no fim da minha jornada; morrerei como vivi”, dizei: “Deus usa de justiça igual para com todos nós; lembrai-vos dos obreiros da última hora.” Às crianças já viciadas pelas companhias de que se cercaram e que vão pelo mundo, prestes a sucumbir às más tentações, dizei: “Deus vos vê, meus caros pequenos”, e não vos canseis de lhes repetir essas brandas palavras. Elas acabarão por lhes germinar nas inteligências infantis e, em vez de vagabundos, fareis deles homens. Também isso é caridade.

Dizem, outros dentre vós: “Ora! somos tão numerosos na Terra, que Deus não nos pode ver a todos.” Escutai bem isto, meus amigos: Quando estais no cume da montanha, não abrangeis com o olhar os bilhões de grãos de areia que a cobrem? Pois bem: do mesmo modo vos vê Deus. Ele vos deixa usar do vosso livre-arbítrio, como vós deixais que esses grãos de areia se movam ao sabor do vento que os dispersa. Apenas, Deus, em sua misericórdia infinita, vos pôs no fundo do coração uma sentinela vigilante, que se chama consciência. Escutai-a, que somente bons conselhos ela vos dará. Às vezes, conseguis entorpecê-la, opondo-lhe o espírito do mal. Ela, então, se cala. Mas, ficai certos de que a pobre escorraçada se fará ouvir, logo que lhe deixardes aperceber-se da sombra do remorso. Ouvi-a, interrogai-a e com freqüência vos achareis consolados com o conselho que dela houverdes recebido.

Meus amigos, a cada regimento novo o general entrega um estandarte. Eu vos dou por divisa esta máxima do Cristo: “Amai-vos uns aos outros.” Observai esse preceito, reuni-vos todos em torno dessa bandeira e tereis ventura e consolação. – Um Espírito protetor. (Lião, 1860.)