Análise da obra “O Livro dos Espíritos – A obra interminável”

Sob um título muito interessante, encontrei, hoje, essa obra, um compêndio de perguntas e respostas, distribuída gratuitamente, em PDF, na Internet. Fui então analisá-la, razão pela qual deixo, aqui, minhas observações sobre esse trabalho.

Devo destacar que a intenção não é de denegrir ou zombar dos esforços que muitos fazem, e que, creio eu, tem uma boa intenção, quase sempre. Contudo, precisamos, quando falamos em Espiritismo, entender que essa ciência, em definitivo, não se faz de opiniões isoladas, e que qualquer comunicação espírita que não tenha atendido ao método do duplo controle da razão e da universalidade dos ensinamentos dos Espíritos não pode ser tomada, senão, como uma opinião. No artigo “O papel do pesquisador e do médium nas comunicações com os Espíritos” já apontamos, segundo o Espiritismo, as diversas razões para isso.

Essa obra assim inicia:

Esta obra, elaborada por espíritos encarnados e desencarnados, está estruturada em perguntas e respostas, notas explicativas e textos complementares, notas de rodapé e preces. Destina-se a todos que desejam iniciar ou aprofundar seu vínculo com o Criador através da leitura instrutiva e reflexiva, da oração, da prática do amor e da caridade, do autoconhecimento e da busca constante por reforma íntima

Até bem pouco tempo atrás eu não veria nisso problema algum. Hoje, porém, eu entendo que existe um grande equívoco na tão falada “reforma íntima”, que nunca esteve, nem com essas palavras, nem com outras, na obra de Allan Kardec. Por quê? Simplesmente porque não se reforma o que não está estragado. Ora, somos Espíritos em evolução, errando e acertando e, algumas vezes, adquirindo maus hábitos que se tornam imperfeições. Quando existe a imperfeição, haveremos de ter algum trabalho em nos desapegar dela – aí sim havendo um certo trabalho de “reforma” – contudo não podemos admitir como pressuposto generalizado o fato de que todos nós devamos nos reformar, como o Movimento Espírita tem apregoado largamente. Isso coloca um grande peso de culpa nas costas daqueles que estão simplesmente buscando aprender e evoluir, mas que passam a se acreditar, sempre, como “coisas quebradas” – e isso está, no fundo, ligado às falsas concepções da queda pelo pecado.

Complementação

No capítulo I – Complementação – I – Propósito da Obra, diz-se o seguinte:

1. Com qual propósito foi lançado O Livro dos Espíritos, em 1857, por Allan Kardec?
— Libertar os encarnados através da verdade, instruí-los e, consequentemente, levá-los à prática do bem.

A. Esse propósito foi alcançado?
— Sim; obviamente que depende do livre-arbítrio de cada indivíduo, mas tudo está nos planos de Deus.

B. Diante disso, é necessário complementá-lo?
— Sim, as comunicações e formas de entendimento modificam-se com o passar do tempo, e é importante que os ensinamentos acompanhem essas mudanças.

Nota: A intenção jamais será contestar o que já foi escrito, e sim afirmá-lo com mais clareza e objetividade, para que não haja dubiedade de entendimento, trazendo a verdade de modo mais explícito, com o intuito de promovermos a prática outrora exemplificada pelo mestre Jesus.

É claro que, para complementar alguma coisa, sobretudo quando se trata de complementar o Espiritismo, através de “comunicações de Espíritos Superiores”, é totalmente necessário que uma série de quesitos se cumpra:

  1. O ser humano deve estar preparado para isso, tendo conhecido e entendido profundamente, e de forma contextualizada, tudo aquilo que deu base à formação dessa Doutrina. Como veremos, esse primeiro ponto não foi atendido.
  2. Quando os Espíritos demandam auxiliar o homem a alcançar novos conhecimentos, eles agem distribuindo o mesmo conhecimento através de todos os cantos do mundo, simultaneamente. Isso é necessário a fim de que, à luz da lógica e da razão, os pesquisadores da doutrina possam confrontar as ideias transmitidas por todos os lados, realizando o mesmo método científico que Kardec realizou. Talvez os pesquisadores tenham realizado uma certa análise racional, mas, desde que isso não se dá pela universalidade dos ensinamentos dos Espíritos e desde que não nos foi dado conhecer o método empregado – que parece consistir apenas de perguntas e respostas realizadas a alguns Espíritos, supostamente superiores, através de um médium ou mais, do mesmo grupo, esse segundo ponto também não foi atendido.

Logo em seguida, apresenta-se o seguinte:

2. Quando a primeira obra foi lançada, o intuito era a criação de uma nova religião?
— No lançamento da primeira obra, a intenção era auxiliar na transformação da humanidade mediante o conhecimento, fazendo-a abdicar do orgulho e do egoísmo, potencializando a prática do amor através da caridade. Toda religião criada com o intuito de agregar ao invés de segregar os encarnados é positivamente encarada (ver item V – Religião não pode causar divisão).

E, em complemento a isso, vamos buscar o que é apresentado no item V do mesmo capítulo:

16. Como promover a integração do Espiritismo com as demais religiões?
— O conteúdo deve ser o guia de vossa consciência; esta não possui religião, apenas o discernimento do certo e do errado. Logo, tudo aquilo que a agradar deverá ser fator de união, e não de segregação.

Ora, o interlocutor parte do conceito errado de que o Espiritismo é mais uma religião, em contrário àquilo que Allan Kardec já demonstrou, no passado (leia mais clicando aqui). Assim, enviesa, com um conceito prévio, a característica da resposta.

Sobre a confiabilidade da obra, há o que segue:

7. O que garante que este trabalho seja oriundo de espíritos elevados?

— A garantia está na coesão e no conteúdo, alinhando-os ao que sentis no âmago, para entender se há coerência ou não. Ao filtrar, através da consciência, percebereis que a intenção da obra não é a de demonstrar a elevação de quem vos instrui, assim como não é a de vos convencer que apenas há uma nova comunicação, mas, sim, de fazer-vos praticar o amor e o bem.

Grifos meus.

Quando o Espírito supostamente diz que a garantia está na coesão e no conteúdo, “alinhando-os ao que sentis no âmago”, está apenas afirmando que as respostas serão coesas, já que nascem de uma mesma ideia, em um mesmo grupo – o que está em contrário com o método de Kardec – e abrem o precedente para que esse grupo, baseado em suas ideias, e vendo-as corroboradas pelos Espíritos, apenas as confirmem. Depois, em “ao filtrar, através da consciência”, abre-se a precedência para que o “filtro” seja a própria consciência, e não a lógica racional e científica de Kardec que, aliás, nunca se deu por satisfeito com qualquer ideia espírita, sem julgá-la sob o crivo da razão e, muitas vezes, lutava contra elas, de acordo com a ciência, para aceitá-las apenas quando verificava que a ideia atendia, com excelência, a todas as questões envolvidas.

Segue o autor:

8. O que Kardec diria a respeito de um complemento de sua obra de codificação?

— Que jamais pretendeu ser dono da verdade absoluta, mas abrir o caminho para que, por meio da ciência e das descobertas, as atualizações acontecessem de forma natural e constante. Diria, ainda, que a verdade acompanha a evolução moral humana; logo, necessita de atualizações conforme evoluímos.

Além disso, diria Kardec que, sem o método do duplo controle, os estudiosos seriam facilmente levados ao engano.

A. Como os espíritas que têm como verdade o fato de a primeira obra ser imutável poderão receber este complemento?

— Esperamos que o recebam com muito amor, mas, se assim não o for, obtê-lo-ão pela coerência, rebuscando na própria consciência o discernimento necessário.
Nada é imutável, apenas Deus. Todos sois aprendizes do eterno progresso; hoje conheceis mais do que ontem e menos do que amanhã.

É preciso muito cuidado com os conteúdos “complicados” que se encontram escondidos sob as diversas verdades, tomadas como refrões. Não digo que os Espíritos comunicantes tenham necessariamente desejado realizar uma mistificação, mas, no mínimo, refletiam as mesmas tendências e os mesmos pensamentos do grupo em questão, que se acreditava no papel de trazer, por ele mesmo, a atualização do Espiritismo, o que também está em contrário às lúcidas palavras de Allan Kardec na Revista Espírita de dezembro de 1868.

Uma outra questão é que precisamos notar as crenças das quais se achavam imbuídos os envolvidos nessa pesquisa: por que a necessidade de copiar a forma de se expressar como naquela época, imitando a linguagem de O Livro dos Espíritos? “Obtê-lo-ão”? Ninguém mais utiliza essas palavras, atualmente, e é natural que os Espíritos se comunicassem de forma diferente, hoje em dia, já que eles não se prendem às linguagens.

Sobre o trabalho dos encarnados, é dito que:

12. Os participantes podem ter sido influenciados por falsos profetas?

— Conhecemos a veracidade de algo pelo conteúdo. A forma de realização também tem relevância. Falsos profetas fazem bastante alarde, mas não conseguem sustentar a mentira por muito tempo.

O simples fato de esta obra ter sido concluída com tanto esforço, dedicação e de maneira despretensiosa já anula essa possibilidade.

Ora, Os Quatro Evangelhos, de Roustaing, desmentem essas afirmações: as ideias erradas foram mantidas do início ao fim, e foi produzida com bastante esforço das partes envolvidas. Se o esforço é despretensioso ou não, é outro problema. Aliás, o Espírito não precisa querer mentir para produzir uma obra com conceitos errados: basta que ele acredite nesses conceitos, apresentando-os. Vemos isso em André Luiz o tempo todo.

Outra crítica à obra é que ela não deixa claro, senão nas perguntas e respostas, de quem é o texto apresentado: é do grupo? É do revisor? É do Espírito? Assim acontece em cada uma das introduções aos capítulos.

Elementos Gerais do Universo

O capítulo II se inicia com um texto falando sobre quatro mudanças energéticas do globo terrestre, algo que mais parece ter saído das doutrinas orientais, que tanto falam das energias, do que da Doutrina Espírita. O texto é atribuído a Sócrates, um nome de peso, como que para dar mais confiabilidade a ela.

24. Existe hierarquia predeterminada na Criação ou ela é fruto do processo evolutivo?
— Na Criação, a “hierarquia” é consequência do processo evolutivo; conforme a evolução acontece, o ser ou elemento aumenta sua posição hierárquica.

Apesar de o autor lançar nota em comparação à questão nº 29 de OLE (O Livro dos Espíritos), a resposta não tem nada do que diria um Espírito conhecedor das verdades doutrinárias registradas por Kardec. Em OLE, os Espíritos respondem suscintamente que os Espíritos pertencem a diferentes ordens, e não a diferentes hierarquias, que são conceitos bastante diferentes. Além disso, o Espírito diz que “o ser ou elemento aumenta sua posição hierárquica”: ora, acaso elementos evoluem?

Em seguida, em III – Descobertas Científicas, o autor, quem quer que ele seja, parte de um pressuposto errado, segundo o Espiritismo, de que a moral deve avançar para que, apenas depois, avancemos em ciência. Isso está claramente em oposto àquilo que eles mesmos apresentaram, pouco antes, na nota 27, de O Livro dos Espíritos, e confirmado pelas observações:

O Livro dos Espíritos, questão 780: “O progresso moral segue sempre o progresso intelectual? — É a sua consequência, mas não o segue sempre imediatamente.”

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Grifo meu.

Quando o autor diz que “um passo por vez. Solidificando a moral, a ciência dará saltos e desvendará muitos mistérios“, está deixando de lado o fato notório de que o Espírito somente progride moralmente quando faz um esforço de sua vontade consciente. Isso demanda avanço intelectual.

No parágrafo imediatamente anterior, é dito que “O avanço tecnológico poderá ser a salvação ou a destruição do planeta. É por esse motivo que os homens só irão possuir mais respostas quando tiverem a moral compatível com esse privilégio“. É como se dissessemos que Deus coloca um limite para a inteligência humana, devendo o homem primeiro aprender a amar para depois aprender a construir foguetes. Isso seria ilógico, porque é a consequência da construção do foguete, que gera a bomba que é utilizada para dizimar milhares de pessoas, que justamente promove o avanço moral, pelas consequências do ato.

Em seguida, é feita a seguinte pergunta:

28. Qual é a relação entre a ciência material e a espiritual?

— Na ciência material, os recursos são limitados, já na espiritual, são ilimitados. A ciência espiritual complementa a material, pois, oferecendo recursos infinitos, faz com que os avanços científicos aconteçam pelo uso da inteligência humana.

O que é falso. A ciência humana avança pelo desenvolvimento do intelecto do homem, e não por revelações científicas dos Espíritos, que, aliás, nada tem de materialista. Espíritos não desenvolvem automóveis super tecnológicos, porque eles não precisam da matéria, de maneira alguma, senão quando encarnam para avançar.

Na questão 35, outra incongruência é encontrada:

35. Desde a primeira obra, houve relevantes progressos na ciência.
Como os espíritos enxergam esse avanço?

— Com naturalidade, pois é um reflexo do esforço coletivo da humanidade. Entretanto, a utilização dessas descobertas nem sempre foi positiva; elas foram permitidas por Deus para que os encarnados as utilizassem para o bem, mas, em muitas ocasiões, utilizaram-nas para o mal.

Deus não permite nem proibe a utilização da ciência, nem seu avanço. Ela está de acordo com a capacidade da intelectualidade humana. O ser humano, pelo uso da inteligência, muitas vezes comete erros e, com eles, aprende. Isso não é fazer o mal: é o fruto do desenvolvimento.

O capítulo segue com uma enorme quantidade de perguntas e respostas sobre conceitos científicos que, na verdade, não levam a lugar algum. Não vou repetí-los aqui, mas deixo a questão: estaria nisso a “atualização científica” da Doutrina? Ora, sabemos que, no que tange à ciência, um dos pontos que mais foi estudado por Allan Kardec, embora limitado à ciência de sua época, é a questão do Fluido Cósmico Universal e do perispírito. Não seria esse um conhecimento importantíssimo em que avançar, frente às nossas descobertas científicas?

Outra questão: os Espíritos superiores, como demonstra Kardec em A Gênese, cap. XVI – Teoria da Presciência, não tem os nossos referenciais materiais para falar em questão de tempo ou questões que pertencem à ciência humana. É por isso que, mesmo na época de Kardec, eles jamais entraram no âmbito das particularidades, cabendo ao homem, no papel de pesquisador, tirar suas conclusões, com base nas observações, e não nas “revelações”.

Criação – A Infância do Espírito

Esse capítulo inicia com um questionamento respondido de forma totalmente contrária à Doutrina dos Espíritos:

60. O período de infância dos espíritos ocorre em um mundo primitivo?
— Sim, na maioria dos casos, a infância espiritual inicia-se no mundo primitivo, onde começa o estágio hominal.

A. Por que na maioria?
— A evolução de cada ser depende de suas escolhas, livre-arbítrio e merecimento. Em casos raros, o animal também pode dar saltos evolutivos, a ponto de passar a infância espiritual em outros mundos.

Nota: Nesses casos, em que o salto ocorre do mundo animal terrestre para gerar uma infância em outro mundo, há merecimento daquele espírito, que, através de seu esforço e resignação, ainda que com poucas ferramentas intelectuais, conseguiu evoluir a ponto de não necessitar vivenciar a infância em um mundo de provas e expiações. Embora pareça confuso aos vossos olhos, isso é uma prova de que Deus reconhece o esforço de forma individual e particular.

Grifos meus.

As respostas atribuídas a uma origem espiritual estão em total contrariedade ao Espiritismo, como dissemos. A evolução não dá saltos, muito menos de um Espírito vivenciando a fase animal, onde não tem consciência de si mesmo, nem livre-arbítrio, para vivenciar logo em seguida uma fase humana. Aliás, está em total contradita à resposta dada em OLE: “Há entre a alma dos animais e a do homem distância equivalente à que medeia entre a alma do homem e Deus”. Além disso, comete-se o erro absurdo de supor que um Espírito possa evoluir sem passar pelas provas, ao menos, que são as vicissitudes materiais que estimulam-no ao desenvolvimento intelectual e moral.

Logo em seguida, em II – Princípio material, na pergunta 62:

62. As moléculas possuem princípio espiritual?

— Não, elas são partes da matéria. Possuem fluidos vitais, que, por sua vez, as sustentam.
Os movimentos moleculares iniciam-se no princípio vital e são compostos por fluidos vitais e magnéticos. As moléculas são exclusivamente orgânicas, e não espirituais, porém servem ao espírito, por meio da matéria, quando compõem o organismo humano.

Grifos meus

O primeiro erro está em supor o fluido vital, que era uma teoria materialista da ciência da época de Kardec que, não podendo explicar o invisível, supôs a existência de partículas imponderáveis, como o fluido calórico, o fluido elétrico, etc. Allan Kardec, que inicialmente partiu dessa ideia, em A Gênese, abandonou-a, ficando apenas com o termo “princípio vital”, genérico, e com a teoria de Mesmer – a de que tudo o que existe, em questão de matéria e energia (é óbvio que os Espíritos não fazem parte de nenhum dos dois) se originam do Fluido Cósmico Universal. Isso está bem explicado em A Gênese:

O princípio vital é algo distinto, tendo uma existência própria? Ou então, para ser
integrado no sistema de unidade do elemento gerador, é apenas um estado particular, uma
das modificações do fluido cósmico universal, que se torna princípio de vida, como se torna
luz, fogo, calor, eletricidade? É nesse último sentido que a questão é resolvida pelas
comunicações reproduzidas anteriormente. (Cap. VI, Uranografia geral).

A Gênese – Editora FEAL

Me espanta, aliás, que aos pesquisadores, tão compenetrados de fórmulas científicas, as quais discutiram com os Espíritos, tenha faltado esse princípio fundamental teorizado por Mesmer e sustentado pela ciência moderna. Veremos, logo mais, que esse mesmo erro provocou outros enganos, na “atualização” de O Livro dos Espíritos, pelo grupo em questão.

Chegado a este ponto, agora noto que errei: as notas são quase todas, senão todas, dos Espíritos. Me pergunto o que fizeram os pesquisadores além de analisá-las, segundo suas ideias, e aceitá-las.

Fluidos no Universo

O capítulo em questão comete os mesmos erros citados acima: não tendo conhecido e compreendido a ciência do magnetismo de Mesmer e as concusões de Kardec, partem dos falsos pressupostos de uma ciência ultrapassada. Ou seja: para complementar o Espiritismo que, segundo pressupostos, estaria ultrapassado em ciência, utilizam uma ciência que o próprio Espiritismo já ultrapassou, há mais de 100 anos. Estranho, não?

É assim que se repete uma opinião erradíssima e que, aliás, seria prontamente corrigida por um Espírito superior:

74. É o fluido vital que determina o tempo de permanência humana na Terra?
— A quantidade de fluido vital é Determinada por Deus, porém, através das vossas escolhas, podeis encurtar ou prolongar o tempo de permanência no
orbe.

Em primeiro lugar, como demonstramos, não existe fluido vital, muito menos uma quantidade dele. Em segundo lugar, não é Deus quem determina nada, mas nós mesmos. É exatamente por isso que animais, sem o livre-arbítrio, morrem, de causas naturais, quase todos numa mesma idade, segundo suas espécie e raça, ao passo que o homem morre, das mesmas causas, nas mais diversas idades. E o fundamento disso também está em A Gênese, apresentado por Kardec:

Para ser mais exato, é preciso dizer que é o próprio Espírito que elabora seu envoltório e o adapta às suas novas necessidades. Ele aperfeiçoa, desenvolve e completa seu organismo à medida que experimenta a necessidade de manifestar novas faculdades. Em uma palavra, ele o molda de acordo com sua inteligência. Deus lhe fornece os materiais. Cabe a ele fazer uso. É dessa forma que as raças mais avançadas têm um organismo, ou se preferem, uma ferramenta mais aperfeiçoada que a das raças primitivas. Assim se explica igualmente o estilo especial que o caráter do Espírito imprime aos traços da fisionomia e as maneiras do corpo.

KARDEC, Allan. A Gênese. Editora FEAL.

Os erros, baseados nesses falsos conceitos, seguem a mancheias, no capítulo. Não vou comentá-los. No capítulo seguinte, “Transmissão Energética e Fluídica”, os autores continuam repetindo conceitos falsos, baseados nos mesmos erros, de origem materialista, difundidos pelos fluidistas do passado, que se contrapunham às ideias das ciências do Magnetismo e do Espiritismo. É assim que repetem, ipsis leteris, a erradíssima ideia de que o passe seria uma “transmissão energética e/ou fluídica”. Isso é falso, tão falso quanto as ideias que os supostos Espíritos repetem na resposta à pergunta nº 92:

  • “O magnetismo instiga a curiosidade e é uma ciência intrigante, mas exige o conhecimento necessário para não oferecer riscos a quem o pratica ou a quem o recebe. Não podeis incluir sua prática na Doutrina ou confundi-lo com fluido magnético.” – Não existe fluido magético, então do que é que esse Espírito está falando?
  • “Magnetizar é uma atividade antiga, que se utiliza do fluido vital” – não existe fluido vital!
  • “Fluido magnético é diferente de magnetismo e é exalado sempre que há a necessidade, através do concurso dos desencarnados ou de encarnados com o devido preparo” – mesmo erro, com um agravante: o magetismo é a interação da vontade, através do pensamento consciente, sobre a vontade do outro, que também precisa estar conscientemente com vontade de ser ajudado. Não há transferência de nada ((Mesmer – A Ciência Negada do Magnetismo Animal, por Paulo Henrique de Figueiredo)).

Retorno à Vida Espiritual

É claro que, pelo que vimos, não poderia faltar, ainda que em contrário a tudo aquilo que o Espiritismo já ensinou e que a razão confirma, uma grande discussão a respeito dos conceitos de “colônias espirituais”, umbral, dores físicas nos Espíritos, etc. É a velha mania de querer materializar o mundo dos Espíritos.

Sexualidade, Sexo e Moral

Para completar nossa análise, nos reportamos à questão nº 505, Parte Terceira, cap. III – aborto:

505. Ocorrendo concepção mediante o estupro, é correto abortar?

— Não, não é correto em nenhuma circunstância, pois todos deveis passar pelas vossas próprias provas. Ninguém é mãe ou filho por casualidade. A lei divina é sábia e tem como principal meta corrigir ou atenuar sofrimentos. A lei de causa e efeito gera responsabilidades por todos os vossos atos, desta e de outras encarnações. Interromper a reencarnação de um espírito, mesmo decorrente de um estupro, não é correto: somente trará mais dor e ampliará o sofrimento dos envolvidos. A preservação da vida diante da dor da violência é um ato de amor. Que possais sempre combater o mal com o amor, por mais difícil que seja.

Grifos meus

Um completo desparate! Em contrário daquilo que encontramos em O Livro dos Espíritos, pergunta 359,

359. No caso em que o nascimento da criança puser em perigo a vida da mãe, haverá crime em sacrificar-se a primeira para salvar a segunda?

“Preferível é se sacrifique o ser que ainda não existe a sacrificar-se o que já existe.”

A resposta à questão nº 505, da obra em análise, afirma que jamais o aborto deve ser cometido. Pior: que se a mulher foi estuprada, é porque, nas palavras dos Espíritos, “a lei de causa e efeito gera responsabilidades por todos os vossos atos, desta e de outras encarnações“. Em outras palavras: o que está sendo dito nessa obra, que visa complementar e atualizar o Espiritismo é que a mulher estuprada apenas está pagando, pela lei de talião, uma falta de outra vida. Isso é um absurdo completo e desmoralizante. Preciso reafirmar, em encontro a OLE, que o aborto é preferível quando a mãe está em risco, e quem somos nós para avaliar o risco emocional e psicológico de uma mulher que tenha passado por tal trauma, que nasce do crime praticado por escolha do outro, e não pelo efeito de uma suposta cobrança de dívidas!

Conclusão

A obra, em si, parece uma verdadeira luta de incongruências, falsos conceitos, e algumas verdades. Parece que, se há realmente a participação de mais de um Espírito, esses Espíritos tem conhecimentos diferentes, pois a contradição é frequente. Há diversas ideias absurdas e erradas, em contradita com os postulados mais básicos do Espiritismo, como há algumas verdades espalhadas pelo meio. Que fazer, então? Cremos que o melhor é seguir o conselho do Espírito de Erasto:

[…] é melhor repelir dez verdades momentaneamente do que admitir uma só mentira, uma única teoria falsa, porque sobre essa teoria, sobre essa mentira podereis construir todo um sistema que desmoronaria ao primeiro sopro da verdade, como um monumento erigido sobre areia movediça, ao passo que se hoje rejeitardes certas verdades, certos princípios, porque não vos são demonstrados logicamente, logo um fato brutal ou uma demonstração irrefutável virá afirmar-vos a sua autenticidade.

Resta reafirmar que a intenção deste artigo não é nada mais que a de alertar, inclusive ao grupo de onde se originou esse livro, que tenham muito cuidado para não se envolverem sob essas teias de falsas ideias, que muito custarão sua tranquilidade, no futuro. Que estudem a fundo Allan Kardec, inclusive – e principalmente – na Revista Espírita. Que estudem as novas obras, que vêm recuperar os os conhecimentos esquecidos no tempo. Que deixem de lado, pelo menos por ora, os conceitos resultantes de obras mediúnicas, de modo a buscarem o aprendizado necessário. E que não se esqueçam, jamais, da importantíssima exortação de Allan Kardec, em A Gênese:

Generalidade e concordância no ensino, esse o caráter essencial da doutrina, a condição mesma da sua existência, donde resulta que todo princípio que ainda não haja recebido a consagração do controle da generalidade não pode ser considerado parte integrante dessa mesma doutrina. Será uma simples opinião isolada, da qual não pode o Espiritismo assumir a responsabilidade.

Essa coletividade concordante da opinião dos Espíritos, passada, ao demais, pelo critério da lógica, é que constitui a força da doutrina espírita e lhe assegura a perpetuidade.

É claro que o Espiritismo, até certo ponto, na parte que tange ao conhecimento humano, é interminável, mas não será sobre erros que ele será continuado, principalmente quando se parte do erro fundamental, que é tratar os Espíritos como reveladores, não respeitando o método necessário, pois os Espíritos não são reveladores da verdade, a Doutrina não se faz apenas por perguntas e respostas, mas também pela investigação e a observação dos Espíritos de todas as ordens, dos mais inferiores aos mais superiores.

É interessante notar, além disso, que, em se tratando de supostos Espíritos superiores, conforme pressupõem os pesquisadores humanos envolvidos, em nenhum momento corrigiram os erros flagrantes dos últimos, já que o conhecimento doutrinário já existe. Ao invés disso, sempre corroboraram as informações e os conceitos errados dos quais partiam os encarnados.

O erro principal desta obra surge da ausência de observação, como demonstramos, das características fundamentais da ciência espírita, tão bem explicada por Allan Kardec na introdução de O Evangelho Segundo o Espiritismo (grifos meus):

A concordância no que ensinem os Espíritos é, pois, a melhor comprovação. Importa, no entanto, que ela se dê em determinadas condições. A mais fraca de todas ocorre quando um médium, a sós, interroga muitos Espíritos acerca de um ponto duvidoso. É evidente que, se ele estiver sob o império de uma obsessão, ou lidando com um Espírito mistificador, este lhe pode dizer a mesma coisa sob diferentes nomes. Tampouco garantia alguma suficiente haverá na conformidade que apresente o que se possa obter por diversos médiuns, num mesmo centro, porque podem estar todos sob a mesma influência.”

Num momento em que os esforços pela retomada do Espiritismo se multiplicam, se multiplicam os esforços contrários, com a finalidade (tola, convenhamos) de causar confusão e atraso. É necessário estar em guarda, sobretudo no que tange ao frequente convite das sombras, instigado pelas imperfeições humanas, quais a vaidade e o orgulho. Ora, haverá algo mais instigante, nesse sentido, do que se dizer o novo eleito a continuar o grandiosíssimo trabalho de Allan Kardec? Não sejamos nós, e não seja você, em seu grupo e em suas palestras, a auxiliar o trabalho dos Espíritos que ainda não entenderam o bem e que contrários ao progresso da humanidade.

“Espíritas!, amai-vos, eis o primeiro ensinamento. Instruí-vos, eis o segundo.” – Espírito de Verdade




Punição e recompensa: você precisa estudar Paul Janet para entender Allan Kardec

Paul-Alexandre-René Janet

Nasceu em 30 de abril de 1823, em Paris, e morreu em 4 de outubro de de 1899, na mesma cidade.

Estudante da École normale supérieure em 1841, agrégé em filosofia em 1844 (primeiro) e doutor em letras em 1848, tornou-se professor de filosofia moral em Bourges (1845-1848), em Estrasburgo (1848-1857), depois em lógica em o Lycée Louis-le-Grand em Paris ( 1857 – 1864 ). A partir de 1862, foi professor adjunto de filosofia na Sorbonne, depois em 1864, ocupou a cátedra de história da filosofia nesta universidade até 1898. Foi eleito membro da Academia de ciências morais e políticas em 1864 e também foi membro do Conselho Superior da Instrução Pública em 1880.

A sua obra centra-se principalmente na filosofia, na política e na ética , em consonância com o ecletismo de Victor Cousin e, através dele, de Hegel.

https://pt.frwiki.wiki/wiki/Paul_Janet_%28philosophe%29

Janet foi contemporâneo de Allan Kardec. Suas obras demonstram, com excelência, o contexto filosófico no qual o codificador estava inserido, fazendo uso de seus conceitos.

Muitos, ao lerem Kardec, supõem que ele, devido às palavras que utilizou em suas obras, estava apenas reproduzindo ideias e conceitos originários da Igreja Católica. Nada mais longe da verdade, como veremos a seguir, pois, Kardec estava, na verdade, usando os conceitos largamente difundidos e compreendidos no meio da sociedade culta francesa que, aliás, era a classe que mais se interessava pelo estudo do Espiritismo.

Paulo Henrique de Figueiredo explica:

Durante o século dezenove, o que chamamos de ciências humanas foram estabelecidas a partir de um pressuposto espiritualista para sua constituição. Enquanto isso, nas ciências naturais, como Física e Química, predominavam o materialismo. Essa condição é muito diferente do que estamos habituados atualmente, quando a universidade é quase completamente orientada pelo pensamento materialista.

Essa corrente de pensamento era conhecida como Espiritualismo Racional. Pois era completamente independente das religiões formais e seus dogmas. A base fundamental era a psicologia, ciência da alma, que tinha como diretriz: “O ser humano é uma alma encarnada”.

Como está extensamente explicado no livro Autonomia, a história jamais contada do Espiritismo, Allan Kardec fez da psicologia a base conceitual para desenvolver a Doutrina Espírita. Seu jornal de publicação mensal era a Revista Espírita, jornal de estudos psicológicos.

O Espiritualismo Racional foi ensinado, desde 1830, na Universidade de Paris, também na Escola Normal, onde os professores se formavam, e também nos Liceus, na educação dos jovens. Para estes, haviam manuais, como o de Paul Janet. Esse manual foi traduzido para diversos idiomas e adotado em muitos países, inclusive no Brasil.

Esse manual é de fundamental importância para se compreender a base conceitual dos estudos de Kardec, principalmente quanto à moral espírita.

FIGUEIREDO, Paulo Henrique de. Tratado de Filosofia Paul Janet. Portal do Espírito, 22 de julho de 2019. Disponível em <https://espirito.org.br/autonomia/livros-tratado-de-filosofia-paul-janet>. Acesso em 19 de maior de 2022.

Utilizando, dissemos, os conceitos do Espiritualismo Racional, que era ensinado na Universidade de Paris e na Escola Normal Superior de Paris, Kardec desenvolve os mais diversos conceitos filosóficos da Doutrina Espírita, à luz dos ensinamentos concordes dos Espíritos. Assim, vai dar um desenvolvimento profundo às ideias da moral tratada por esses estudiosos, abordando os conceitos de dor e prazer, bem e mal, dever, caridade desinteressada, liberdade, mérito, punição e recompensa. Vamos, a título de ilustração, demonstrar a construção desses últimos dois conceitos:

A recompensa e a punição

Em sua obra Pequenos Elementos de Moral, disponível para download, em PDF, neste link, Janet constrói os diversos conceitos filosóficos que vão dar suporte àqueles da recompensa e da punição. Ele assim se expressa: “o prazer, considerado como a consequência devida à realização do bem, chama-se recompensa, e a dor, considerada como a consequência legítima do mal, chama-se punição”.

O prazer, para ele, é a busca de vivenciar aquilo que a vida permite, sendo que existiriam, assim, os prazeres bons e os prazeres ruins, variando, nesse intervalo, segundo certeza, pureza, intensidade, duração, etc. Assim, o prazer fugitivo da embriaguez seria um mau prazer, enquanto que o prazer durável da saúde seria um bom prazer:

Há prazeres muito vivos, mas passageiros e fugitivos, como os prazeres das paixões ((Assim define o dicionário Oxford: “no kantismo, inclinação emocional violenta, capaz de dominar completamente a conduta humana e afastá-la da desejável capacidade de autonomia e escolha racional.”. Esse é o sentido de paixão, utilizado por Kardec e pelos filósofos de sua época)). Há outros que são duráveis e contínuos, como os da saúde, da segurança, da comodidade, da consideração. Sacrificar-se-ão esses prazeres que duram toda a vida a prazeres que duram apenas uma hora?

JANET, 1870 ((JANET, Paul. Pequenos Elementos de Moral. Tradução por Maria Leonor Loureiro. Paris, 1870))

Portanto, moralmente, o ser humano deveria buscar, sempre, os bons prazeres, que não produzam arrependimentos, preterindo-os aos maus prazeres, que geram arrependimentos e complicações:

A experiência nos ensina que não se deve buscar os prazeres sem discernimento e sem distinção, que é preciso usar a razão para compará-los entre si, sacrificar o presente incerto e passageiro a um futuro durável, preferir os prazeres simples e pacíficos, não seguidos de arrependimentos, aos prazeres tumultuosos e perigosos das paixões etc., numa palavra, sacrificar o agradável ao útil.

Ibidem

Fica claro, portanto, que o conceito de recompensa, utilizado nesse contexto, está ligado ao entendimento do regozijo de ter realizado uma ação ligada ao bem, ao passo que a punição é a dor gerada como consequência legítima do mal. Não existe nenhuma atribuição, portanto, a uma imposição mecânica de uma suposta “lei do retorno” ou “lei de reparação”, por Deus ou pelo “Universo”, pela má ação, como muitos insistem em apregoar, nem existem prêmios dados pela boa ação. Tudo é uma consequência moral, do próprio indivíduo para consigo mesmo, o que depende, necessariamente, do conhecimento da Lei:

Em moral, como em legislação, a ninguém aproveita o desconhecimento da lei. Há, portanto, em todo homem um certo conhecimento da lei, quer dizer, um discernimento natural do bem e do mal: esse discernimento é o que se chama a consciência ou às vezes o senso moral.

Ibidem

Porém, para que o indivíduo aja moralmente, é preciso que tenha o livre-arbítrio:

Não basta que o homem conheça e distinga o bem e o mal, e experimente por um e outro sentimentos diferentes. É preciso ainda, para ser um agente moral, que o homem seja capaz de escolher entre um e outro ((Aqui os estudos do Espiritismo nos conduzem a outro entendimento: na verdade, o homem não escolhe entre bem e mal, porque, no fundo, se escolhe mal, é porque ainda não conhece a lei. O Espírito que realmente conhece e entende a Lei de Deus somente faz o bem, sempre.)); não se pode ordenar-lhe o que ele não poderia fazer, nem lhe proibir o que ele seria forçado a fazer. Esse poder de escolher é a liberdade, ou livre-arbítrio.

Ibidem

Mas é importante lembrar que o homem, como uma alma encarnada, é um conceito básico do Espiritualismo Racional, como define Janet, na mesma obra:

Toda lei supõe um legislador. A lei moral suporá, portanto, um legislador moral: é assim que a moral nos eleva a Deus. Sendo toda sanção humana ou terrestre demonstrada insuficiente pela observação, a lei moral precisa de uma sanção religiosa. É assim que a moral nos conduz à imortalidade da alma.

Disso tudo, nasce o entendimento do vício e da virtude:

As ações humanas, dissemos nós, são ora boas, ora más. Essas duas qualificações têm graus, por causa da importância ou da dificuldade da ação. É assim que uma ação é conveniente, estimável, bela, admirável, sublime etc., por outro lado, a ação má ora é uma simples falta, ora um crime. Ela é condenável, baixa, odiosa, execrável etc.

Se, em um agente, se considerar o hábito das boas ações, uma tendência constante a se conformar à lei do dever, esse hábito ou tendência constante chama-se virtude, e a tendência contrária chama-se vício.

Ibidem

O mal, porém, é um julgamento de si mesmo (ninguém pode fazer mal ao outro ((Pelo princípio racional da autonomia, desenvolvido até aqui, o indivíduo pode apenas praticar um mal físico contra outrem, mas nunca um mal moral. Um sujeito pode roubar os pertences de outra pessoa, o que a ela causará algumas dificuldades, mas, em verdade, ele faz o mal a si mesmo, pois fere a lei moral, pelo que sofrerá a depender de seu estado de consciência. A vítima, por sua vez, à parte do contratempo material, poderá ou não fazer o mal a si mesma, à medida que se apegue ou não ao acontecido e gere, para ela mesma, algum sofrimento. Isto também dependerá de sua consciência da lei moral))), que depende da consciência do que se faz:

O julgamento que se faz de si mesmo difere segundo o princípio da ação que se admite. Aquele que perdeu no jogo pode afligir-se consigo mesmo e com sua imprudência ((Ou seja: ele pode perceber que fez um mal a si mesmo, perdendo dinheiro no jogo)); mas aquele que tem consciência de ter enganado no jogo (ainda que tenha ganhado por esse meio) deve desprezar-se quando julga a si mesmo do ponto de vista da lei moral ((Porque, ao se conscientizar do que fez, percebe que prejudicou o outro, e isso lhe gera remorso)).

Ibidem

E então, pouco mais adiante, ainda na mesma obra, Janet desenvolve o entendimento da satisfação moral e do arrependimento:

Relativamente às nossas próprias ações, os sentimentos se modificam conforme a ação esteja por fazer ou já feita. No primeiro caso, sentimos de um lado uma certa atração pelo bem (quando a paixão não é suficientemente forte para sufocá-lo), de outro, uma repugnância ou aversão pelo mal (mais ou menos atenuada segundo as circunstâncias pelo hábito ou pela violência do desejo). Esses dois sentimentos não receberam usualmente nomes particulares.

Quando ao contrário a ação foi realizada, o prazer que daí resulta, se agimos bem, chama-se satisfação moral, e se agimos mal, remorso ou arrependimento.

O remorso é a dor abrasadora, e, como indica a palavra, a chaga que tortura o coração após uma ação condenável. Esse sofrimento pode se encontrar naqueles mesmos que não têm nenhum pesar por terem feito mal e voltariam a fazê-lo. Ele não tem, portanto, nenhum caráter moral, e deve ser considerado como uma espécie de castigo infligido ao crime pela própria natureza. “A malícia, disse Montaigne, envenena-se com seu próprio veneno. O vício deixa como que uma úlcera na carne, um arrependimento na alma, que sempre se arranha e ensanguenta a si mesma.”

O arrependimento é também, como o remorso, um sofrimento que nasce da má ação; mas junta-se a ele o pesar por a tê-la realizado, e o desejo (ou a firme resolução) de não mais realizá-la.

Para Janet, então, o remorso não seria, ainda, o sofrimento gerado pelo arrependimento, mas apenas uma certa tortura por realizar a ação condenável. Em outras palavras, não se sofre porque se realizou o mal, mas apenas porque o que se realizou é reprovável. E então, Kardec, em O Céu e o Inferno ((Lembrando, sempre, que essa obra foi adulterada e mutilada a partir da quarta edição francesa, que serviu de base a todas as demais edições e traduções. Os temas abordados neste artigo foram os que mais sofreram com essas adulterações)), falando de castigo, que tem, para Janet, o mesmo significado que punição ((Diz Janet: “A ideia de punição ou castigo também não se explicaria se o bem fosse apenas o útil. Não se pune um homem por ter sido inábil; pune-se por ter sido culpado”)), assim se expressa:

A duração do castigo está subordinada ao aperfeiçoamento do espírito culpado. Nenhuma condenação por um tempo determinado é pronunciada contra ele. O que Deus exige para pôr fim aos sofrimentos é o arrependimento, a expiação e a reparação – em resumo: um aperfeiçoamento sério, efetivo, assim como um retorno sincero ao bem.

KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno. Tradução por Emanuel G. Dutra, Paulo Henrique de Figueiredo e Lucas Sampaio. 2021.

Ou seja: Deus não pronuncia castigos ou punições contra o indivíduo. É ele mesmo quem se pune, através das consequências legítimas do mal realizado. Então, para encerrar esse sofrimento, precisa se arrepender, em primeiro lugar, isto é, identificar que fez algo condenável (remorso) e juntar a isso o pesar de tê-lo realizado (arrependimento, que é moral), bem como o desejo de não mais realizá-lo. Para alcançar esse entendimento, é preciso que o Espírito avance em inteligência e, para reparar o mal realizado (que já ficou claro que cometeu contra si mesmo, e não contra outrem, do que decorre que ele deve reparar em si a origem desse mal), o Espiritismo demonstra, sem possibilidade de erro, a existência da lei da reencarnação.

Tudo isso, enfim, para entender os conceitos de punição e recompensa. Eis que, de acordo com todo o exposto, Kardec diz, em trecho anterior àquele supracitado:

A punição é sempre a consequência natural da falta cometida. O espírito sofre pelo próprio mal que fez, de maneira que, estando sua atenção concentrada incessantemente sobre as consequências desse mal, compreende-lhe melhor os inconvenientes e é motivado a corrigir-se.

E então, em razão de tudo isso, Kardec assim inicia o capítulo IV essa obra – O Inferno:

O homem sempre acreditou intuitivamente que a vida futura deveria ser mais ou menos feliz na razão do bem e do mal praticado neste mundo. A ideia, porém, que ele faz dessa vida futura está na proporção do desenvolvimento de seu senso moral e da noção mais ou menos justa que tem do bem e do mal. As penas e as recompensas são o reflexo dos instintos que nele predominam.

Mas cabe lembrar que, utilizando desses conceitos filosóficos de seu tempo, Kardec, ao mesmo tempo, os desenvolveu pelas consequências morais da ciência espírita.

O espiritualismo em Kardec

Cabe, antes de encerrar, lembrar que Allan Kardec várias vezes utilizou a palavra espiritualismo em sua obra. É ao Espiritualismo Racional que ele se refere:

Quem quer que acredite haver em si alguma coisa mais do que matéria, é espiritualista. Não se segue daí, porém, que creia na existência dos Espíritos ou em suas comunicações com o mundo visível. Em vez das palavras espiritualespiritualismo, empregamos, para indicar a crença a que vimos de referir-nos, os termos espírita e espiritismo, cuja forma lembra a origem e o sentido radical e que, por isso mesmo, apresentam a vantagem de ser perfeitamente inteligíveis, deixando ao vocábulo espiritualismo a acepção que lhe é própria. Diremos, pois, que a doutrina espírita ou o Espiritismo tem por princípio as relações do mundo material com os Espíritos ou seres do mundo invisível. Os adeptos do Espiritismo serão os espíritas, ou, se quiserem, os espiritistas.

Como especialidade, o Livro dos Espíritos contém a doutrina espírita; como generalidade, prende-se à doutrina espiritualista, uma de cujas fases apresenta. Essa a razão por que traz no cabeçalho do seu título as palavras: Filosofia espiritualista.

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 1857

Isso fica, enfim, comprovado pelo seguinte trecho da Revista Espírita de 1868:

A obra do Sr. Chassang é a aplicação dessas ideias à arte em geral, e à arte grega em particular. Reproduzimos com prazer o que dela diz o autor da crítica da Patrie, porque é uma prova a mais da enérgica reação que se opera em favor das ideias espiritualistas e que, como o dissemos, toda defesa do espiritualismo racional franqueia o caminho do Espiritismo, que é o seu desenvolvimento, combatendo os seus mais tenazes adversários: o materialismo e o fanatismo.

KARDEC, Allan. Revista Espírita, novembro de 1868

Conclusão

Eis aqui claramente apresentada a prova de que não podemos conhecer e compreender a filosofia de Kardec sem compreender a filosofia e a moral de seu tempo, plenamente inseridas no contexto do Espiritualismo Racional francês, assim como não podemos compreender plenamente a ciência espírita sem o entendimento das ciências do Magnetismo [de Mesmer] e da Psicologia (esta também inserida no ER, sob a divisão das ciências morais).

Ficou claramente evidenciado que Kardec não fazia uso de conceitos religiosos dogmáticos, mas apenas de palavras que, se encontrando nesses conceitos, foram ressignificadas primeiramente sob a filosofia de então e, depois, sob a filosofia espírita.

Portanto, faz-se muito necessário o estudo e a difusão desse conhecimento. Uma vez mais, convidamos o leitor a estudar e distribuir, em todos os meios espíritas possíveis, a obra referida neste artigo, bem como o presente texto, que resulta de um esforço realizado também nesse sentido.




Em defesa de Allan Kardec: sobre as adulterações

Estou me afastando totalmente da discussão a respeito de provas e evidências das adulterações em suas obras. É minha opinião de que se tornaram uma enorme perda de tempo. Explico:

De início, ao meu ver, provas e evidências da adulteração foram muito contundentes((Fatos detalhadamente apresentados em “O Legado de Allan Kardec”, de Simoni Privato, e “Nem céu, nem inferno”, de Paulo Henrique de Figueiredo e Lucas Sampaio.)).

Depois, surgiram evidências que poderiam indicar que não ocorreram adulterações e que tudo foi fruto do trabalho do próprio Kardec, segundo a interpretação de alguns, e isso levado por indícios e evidências de que ele, Kardec, tinha a clara intenção de publicar novas edições, com alterações, de O Céu e o Inferno e de A Gênese. Eu destaco que, a meu ver, até o momento, todas as evidências apontam que Kardec, ao menos em A Gênese, teria iniciado um trabalho nesse sentido, trabalho esse que nunca foi concluído e que deu espaço, justamente, a quem quer que teria a intenção de causar estragos da única forma possível em uma Doutrina inatacável: adulterando-se seus postulados, em sua origem.

Há quem discorde, claro. Mas tem um grande porém, nesse assunto, que não consigo ignorar: a questão justamente ligada à ciência espírita e a Allan Kardec como o probo, perspicaz, paciente, cuidadoso e honesto cientista que foi. De duas, uma: ou ele escreveu coisas muito importantes e sérias sob uma ansiedade que ele nunca teve, tendo depois retrocedido em suas opiniões — o que demonstraria uma grave falha em seu método e representaria um grande perigo para toda a Doutrina Espírita — ou ele foi muito cuidadoso, até o fim, e só concluiu o que deveria ser concluído, após anos de pesquisa e sob a orientação dos Espíritos superiores, como ele sempre buscou fazer.

Ora, ele mesmo disse, anos antes da publicação dessas obras, que certos assuntos doutrinários precisavam ainda aguardar alguns anos e que ele não publicaria nada muito cedo, sem que o desenvolvimento da Doutrina desse lugar a isso. O Céu e o Inferno e A Gênese foram, justamente, essa conclusão. Não vejo como, portanto, principalmente na primeira obra, fazer mudanças que, em certos pontos, alteram completamente o entendimento da ideia e que, em A Gênese, fazem o conceito ou postulado doutrinário ficarem incompletos ou mal entendidos. Mas não é só: Kardec foi muito austero nessas duas obras, justamente no que tange aos pontos mais sensíveis, e que davam motivo a temer nos adversários do Espiritismo, e foi justamente nesses pontos onde houveram as “alterações”.

Vamos a alguns exemplos:

Em A Gênese, capítulo III, item 19, a partir da 5.ª edição, o texto encontra-se assim:

“O homem que só pelo instinto agisse constantemente poderia ser muito bom, mas conservaria adormecida a sua inteligência. Seria qual criança que não deixasse as andadeiras e não soubesse utilizar-se de seus membros. Aquele que não domina as suas paixões pode ser muito inteligente, porém, ao mesmo tempo, muito mau. O instinto se aniquila por si mesmo; as paixões somente pelo esforço da vontade podem domar-se.

Contudo, na 4.ª edição, hoje recuperada e traduzia para o português pela editora FEAL, existe o seguinte complemento:

Todos os homens passam pelas paixões. Os que as superaram, e não são, por natureza, orgulhosos, ambiciosos, egoístas, rancorosos, vingativos, cruéis, coléricos, sensuais, e fazem o bem sem esforços, sem premeditação e, por assim dizer, involuntariamente, é porque progrediram na sequência de suas existências anteriores, tendo se livrado desse incômodo peso. É injusto dizer que eles têm menos mérito quando fazem o bem, em comparação com os que lutam contra suas tendências. Acontece que eles já alcançaram a vitória, enquanto os outros ainda não. Mas, quando alcançarem, serão como os outros. Farão o bem sem pensar nele, como crianças que leem correntemente sem ter necessidade de soletrar. É como se fossem dois doentes: um curado e cheio de força enquanto o outro está ainda em convalescença e hesita caminhar; ou como dois corredores, um dos quais está mais próximo da chegada que o outro.

Kardec, A Gênese, 4.ª edição — Editora FEAL

Ora, parece crível que Kardec tirasse essa conclusão tão importante, profunda e libertadora desse postulado?

Um pouco mais adiante, no capítulo XVIII, “Os tempos são chegados”, o seguinte trecho foi suprimido (removido) a partir da 5.ª edição da obra. Leia com atenção:

Dizer que a humanidade está madura para a regeneração não significa que todos os indivíduos estejam no mesmo degrau, mas muitos têm, por intuição, o germe das ideias novas que as circunstâncias farão desabrochar. Então, eles se mostrarão mais avançados do que se possa supor e seguirão com empenho a iniciativa da maioria. Há, entretanto, os que são essencialmente refratários a essas ideias, mesmo entre os mais inteligentes, e que certamente não as aceitarão, pelo menos nesta existência; em alguns casos, de boa-fé, por convicção; outros por interesse. São aqueles cujos interesses materiais estão ligados à atual conjuntura e que não estão adiantados o suficiente para deles abrir mão, pois o bem geral importa menos que seu bem pessoal — ficam apreensivos ao menor movimento reformador. A verdade é para eles uma questão secundária, ou, melhor dizendo, a verdade para certas pessoas está inteiramente naquilo que não lhes causa nenhum transtorno. Todas as ideias progressivas são, de seu ponto de vista, ideias subversivas e, por isso, dedicam a elas um ódio implacável e lhe fazem uma guerra obstinada. São inteligentes o suficiente para ver no Espiritismo um auxiliar das ideias progressistas e dos elementos da transformação que temem e, por não se sentirem à sua altura, eles se esforçam por destruí-lo. Caso o julgassem sem valor e sem importância, não se preocupariam com ele. Nós já o dissemos em outro lugar: “Quanto mais uma ideia é grandiosa, mais encontra adversários, e pode-se medir sua importância pela violência dos ataques dos quais seja objeto”.

Kardec, A Gênese, 4.ª edição — Editora FEAL

Se a supressão desse trecho não parece algo realizado justamente por um adversário da Doutrina, não sei o que mais pareceria.

Já em O Céu e o Inferno, a partir da 4.ª edição, temos, dentre outras coisas, a supressão de importantes postulados, como estes (cap. VIII):

Pelos exemplos que o Espiritismo coloca diante de nossos olhos, ensina-nos que a alma no mundo invisível sofre por todo o mal que fez, assim como por todo o bem que poderia ter feito e não fez durante sua vida terrestre. Que a alma não é condenada a uma penalidade absoluta, uniforme e por um tempo determinado, mas que sofre as consequências naturais de todas as suas más ações, até que se tenha melhorado pelos esforços da sua própria vontade. Ela carrega em si mesma seu próprio castigo, e isso onde quer se encontre, para o que não há necessidade de um lugar circunscrito. O Inferno, então, está onde quer que existam almas sofredoras, como o Céu está em toda parte onde existam almas felizes, o que não impede que umas e outras se agrupem, por afinidade de posição, ao redor de certos pontos.

O Céu e o Inferno, Cap. IV, item 6.º, parágrafo suprimido na adulteração, p. 85

Sendo todos os espíritos perfectíveis, em virtude da lei do progresso, trazem em si os elementos de sua felicidade ou de sua infelicidade futura e os meios de adquirir uma e de evitar a outra trabalhando em seu próprio adiantamento.

Allan Kardec, O Céu e o Inferno, 3.ª edição — Editora FEAL

Constatamos, então, uma grande perda, pela supressão desses postulados. Há diversos outros pontos, que, de acordo com certo entendimento, podem até ser ressignificados sob uma possível autoria de Allan Kardec, mas o fato é que existem, também nessa obra, alterações estranhas e que não fazem sentido. Basta comparar o capítulo “As penas futuras segundo o Espiritismo“, de O Céu e o Inferno, completamente desfigurado na “alteração”.

Tem mais: admitir que as todas as alterações existentes nessas obras foram realizadas por Kardec, significa dizer que ele teria realizado um erro grotesco, e não apenas uma vez, mas duas: não ter obtido a permissão necessária, do governo, para a impressão de novas edições dessas obras. Nunca conheci esse Kardec descuidado e afoito que têm apresentado por aí.

Conhecendo um pouquinho da face extremamente séria, conscienciosa e cuidadosa do professor Rivail quanto a essa ciência (como com as outras), não posso admitir as teorias das alterações por seu próprio punho, sobretudo das supressões, e, do ponto de vista científico, tudo o que vi até agora, sem contar as conclusões forçadas sob cadeias de lógica com alguns problemas, no máximo, indica uma intenção de editar uma nova edição, o que nunca foi concluído e que, justamente, deu lugar às adulterações posteriores à sua morte, através da alteração do tipos móveis((peças utilizadas para realizar impressões prévias, naquele tempo. Essas impressões eram analisadas e corrigidas, através da alteração dos tipos (letras, pontuações, etc.) e, quando se verificava que a obra estava finalizada, eram utilizadas para a impressão da matriz, sendo esta utilizada para a impressão em larga escala)) existentes.

Aliás, de posse dos manuscritos de Kardec, disponibilizados pelo CDOR, da FEAL, foi possível identificar que:

Algumas cartas manuscritas demonstram que, em fevereiro de 1868, Kardec estava interessado em acrescentar trechos em A Gênese, pois era de seu costume, depois de um tempo do lançamento, revisar suas obras. Para isso, pediu conselhos aos espíritos para organizar esse trabalho.

Alguns amigos espirituais deram orientações para uma revisão da obra, com a expressa indicação para não alterar em nada as questões doutrinárias, como se percebe pelos seguintes trechos desta comunicação:

Minha opinião é que não há absolutamente nada de doutrina a ser retirado; tudo aí é útil e satisfatório sob todos os aspectos” e

É necessário deixar intactas todas as teorias que aparecem pela primeira vez aos olhos do público”.

No caso, além da demonstração jurídica da adulteração de A Gênese, também esta comunicação reforça o fato em razão das alterações doutrinárias identificadas na obra, com a supressão de diversos trechos em que Kardec critica a moral heterônoma do fanatismo religioso, dentre outras manipulações.

Ainda nesta comunicação, o espírito sugeriu também que ele trabalhasse sem pressa e sem dedicar muito tempo:

Sobretudo, não se apresse demais. (…) Comece a trabalhar imediatamente, mas não de forma exagerada. Não se apresse”.

https://espirito.org.br/autonomia/ncni-conselhos-sobre-a-genese/

Ora, o que observamos nas alterações de A Gênese, senão pressa e descuido?

Essa recomendação era justificada porque Kardec, em meio a sua difícil condição de saúde, tinha questões prioritárias para se preocupar, como a Revista Espírita e o projeto para a continuidade do Espiritismo através da fase de direção coletiva.

Essa é minha conclusão. Contudo, podemos até chegar a dizer que essas questões de adulteração ou não são um mero “detalhe”, um “tropeço” mesmo, que será superado quando a ciência for restaurada em sua essência. Ora, essa essência segue inalterada e está disponível para o nosso estudo. Basta estudá-la, de forma honesta, pois o homem honesto e humilde se rende frente aos resultados da investigação científica. Mas, finalizo, esse estudo precisa ser contextualizado, e um dos maiores pesquisadores desse contexto, Paulo Henrique de Figueiredo, está sendo colocado para baixo do tapete, por muitos, apenas porque ele compartilha da opinião da adulteração. E essa atitude, definitivamente, não é ciência.




O que é a Revista Espírita e como estudá-la?

No momento em que escrevo este artigo, estamos entrando no estudo da 10.ª edição da Revista Espírita — outubro de 1858. Começamos esse estudo semanal (clique aqui para conhecê-lo), transmitindo-o ao-vivo, sabendo, por uma intuição, que ele seria muito importante e útil, mas, de fato, não sabíamos o que esperar desse estudo. A verdade é que, senão pela leitura de algumas citações de trechos dessa obra, não sabíamos nem sequer do que se tratava a Revista Espírita.

Ouça ao podcast:

Hoje, então, passadas nove edições dessa publicação, dentre as 136 das quais o próprio Kardec esteve à frente, de janeiro de 1858 a abril de 1869 (ele morreu em março, mas já havia deixado pronta essa última e importante edição, da qual falaremos mais adiante) — e continuamos nos perguntando onde é que ele arrumava tempo e disposição para isso, coisa digna de missionário — já conseguimos vislumbrar um pouco do brilhantismo de Rivail no encadeamento lógico do desenvolvimento dos temas que, agora compreendemos um pouco, dão base e rumo ao crescimento e ao fortalecimento da Doutrina Espírita — lembremos que as próximas obras foram produzidas, em grande parte, justamente a partir de muitos dos temas e estudos desenvolvidos na Revista Espírita.

Importa dizer, antes de tudo, que a Revista Espírita, como demonstra o nome, foi um periódico mensal, onde Allan Kardec apresentava diversos temas, sendo alguns deles totalmente doutrinários, outros deles ligados às questões sociais, histórias e científicas e outros nos quais percebemos uma crescente e ininterrupta elaboração de pesquisas e conhecimentos que foram dando cada vez mais base à Doutrina Espírita.

Revista Espírita: Jornal de Estudos Psicológicos

Muitos não sabem, mas esse é o subtítulo completo desse periódico: jornal de estudos psicológicos. E isso é importante ser destacado, pois, pelos olhos de hoje, não parece que psicologia tem muito a ver com um jornal espírita, não é mesmo? É aqui que entra o valoroso e importante trabalho de Paulo Henrique de Figueiredo, um dos mais expoentes pesquisadores espíritas da atualidade, que foi buscar, no passado, um conhecimento esquecido, varrido para baixo do tapete: em resumo, aquele que se encerrava no contexto do Espiritualismo Racional, sobre o qual já falamos um pouco aqui. É somente através do estudo desse conhecimento esquecido que poderemos, adiantamos, contextualizar muito do que se fala na R.E. e, sobre isso, destacamos a importância da obra Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo, desse mesmo autor.

No contexto de Kardec, a Psicologia não tinha a característica terapêutica materialista de hoje: ela era uma ciência moral, espiritualista, inserida no contexto do Espiritualismo Racional, e seu principal objetivo era investigar e analisar as leis naturais que regem a natureza humana, inclusive de forma experimental.

Nesse contexto, a Psicologia compreendia o ser humano como um ser constituído de corpo e de alma. A alma, que sobreviveria ao corpo, era a causa primária da psique, não sendo esta um efeito apenas material de química e estímulos. Tratamos um pouco disso nos estudos baseados no artigo “O Período Psicológico”, que você pode ler aqui.

O nascimento da Revista e sua finalidade

Kardec criou a Revista Espírita baseado, em parte, nas sugestões de um Espírito que se comunicou através da Srta. Hermance Dufaux (é com H, mesmo) que, segundo Canuto de Abreu, cooperou para a transmissão de valiosas orientações para esse periódico:

No final de 1857, Kardec teve a ideia de publicar um periódico espírita e quis ouvir a opinião dos guias espirituais. Hermance foi a médium escolhida e, através dela, um Espírito deu várias e ótimas orientações ao Mestre de Lion. O órgão ganhou o nome de “Revista Espírita” e foi lançado em janeiro do ano seguinte.

Um dos maiores interesses de Kardec era o de se corresponder, de forma facilitada, com os adeptos do Espiritismo espalhados pela Europa. Através da Revista, uma publicação de fácil circulação e de interesse geral — Kardec, nela, abordava até os fatos cotidianos e de grande interesse, envolvendo os Espíritos — a Doutrina foi rapidamente permeando as massas, que liam avidamente suas folhas. Não faltaram as cartas de assinantes, milhares delas, muitas das quais Kardec sequer encontrava tempo para responder.

Destacamos a palavra “assinantes” de propósito: Kardec, ou melhor, a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, cobrava por uma assinatura desse periódico, mas jamais para enriquecimento próprio, e sim com a finalidade de obter recursos para baratear custos das obras, fornecer apoio social, etc. Fizemos uma citação a esse respeito no artigo Propagação do Espiritismo.

Dizíamos dos propósitos da Revista. Bem sabemos que Kardec identificou, logo de início, com sua perspicácia de pesquisador formado, desde criança, pelo método investigativo da Natureza, de Pestalozzi, que…

… A opinião isolada de um Espírito não passa disso — uma opinião — portanto, não pode ser tomada, isoladamente, como se fosse fonte inquestionável da verdade, já que Espíritos de todos os tipos podem se comunicar, sendo que os Espíritos enganadores tomam os nomes até mesmo dos santos e de Jesus, sem pudor, principalmente quando percebem que não são questionados.

Portanto, Kardec buscava um meio de fortalecer o princípio básico e inexorável da Doutrina, que é o da concordância universal do ensinamento dos Espíritos, que deve, além disso, atender à lógica, à razão, ao bom-senso e à ciência já formada, tanto da parte dos homens, quanto da parte dos Espíritos, pelo mesmo método. Ora, como já podemos perceber, através da Revista Espírita, onde recebia os diversos relatos de várias partes do mundo, através de seus correspondentes, o mestre lionês obteve justamente isso, em grande parte! Vemos um exemplo disso na carta do Sr. Jobard, em julho de 1858, e nas observações de um correspondente em setembro de 1858.

As evocações de Kardec

Há também um aspecto ainda mais importante apresentado na Revista, que demonstra claramente uma face pouquíssimo conhecida do Espiritismo, no atual movimento espírita: o da natureza e da utilidade das evocações de Espíritos. Ora, num momento onde virou lei a famosa frase do querido Chico Xavier — “o telefone só toca de lá para cá” — sobre a qual já fizemos uma análise no artigo “O Espiritismo sem os Espíritos” — qual não foi nosso espanto (pelo menos para aqueles que não conhecíamos essa realidade) ao verificarmos que Kardec fazia uso das evocações com tanta naturalidade — mas com a necessária seriedade — como aquela que usamos para conversar com as pessoas ao nosso redor.

Em praticamente todas as edições, Kardec apresenta evocações de Espíritos, as quais realizava com a finalidade de obter melhores compreensões a respeito da moral compreendida em certos acontecimentos, bem como o de tentar sondar alguns fatos científicos envolvendo fenômenos Espíritas, como se deu em “Uma nova descoberta fotográfica“, de julho de 1858.

Foi assim que, número após número, Kardec apresentou as mais diversas evocações, algumas feitas por ele mesmo e outras feitas por correspondentes seus. Evocaram-se Espíritos de suicidas, de loucos, de assassinos, de reis, de plebeus, de gente de grande moral e benevolência e de Espíritos inferiores. Muitos desses, diga-se de passagem, a pouquíssimos dias de sua morte, o que contraria aquilo que grande parte do movimento espírita atual tem dito.

Importa destacar, é claro, que as evocações não tinham a finalidade de atenderem à curiosidade vazia e inferior ou à diversão de ninguém: além dos ensinamentos que se podiam colher de todas elas, para os Espíritos superiores sempre foi uma felicidade nos ajudar e, para os inferiores, muitas vezes forneceram preciosos momentos de reflexão e de reequilíbrio.

Fortalecimento da Doutrina e descontrução de falsos ou inconpletos conceitos

A forma para o Espírito

Para dar um exemplo prático, nessas desconstruções de ideias fartamente enraizadas atualmente, temos, ainda que em primórdios, uma delas que começou a chamar nossa atenção: a questão da forma para o Espírito errante (entre as encarnações). É de praxe, hoje em dia, a concepção de todo um mundo fantástico e cheio até mesmo de automóveis no plano espiritual… Contudo, Kardec, a partir de certa edição, passa a sondar o que é a forma para os Espíritos, através de perguntas como “de que forma lhe veríamos se pudéssemos vê-lo com nossos olhos?” ou “vê outros Espíritos? De que forma?”.

Foi assim que, em julho de 1858, no artigo “O tambor de Berezina“, Kardec faz as seguintes perguntas, após realizar uma série de indagações tentando compreender o estado moral e racional daquele Espírito, que foi um soldado em sua última encarnação:

28. ─ Vês outros Espíritos ao teu redor? ─ Sim, muitos.

29. ─ Como sabes que são Espíritos? ─ Entre nós, vemo-nos tais quais somos.

30. ─ Com que aparência os vês? ─ Como se podem ver Espíritos, mas não pelos olhos.

31. ─ E tu, sob que forma aqui estás? ─ Sob a que tinha quando vivo, isto é, como tambor.

32. ─ E vês os outros Espíritos com as formas que tinham em vida? ─ Não. Nós não tomamos uma aparência senão quando somos evocados. Fora disso vemo-nos sem forma.

A última resposta foi bastante interessante, mas, até o momento, era apenas a opinião de um Espírito. Digno de nota a metodologia de Kardec, sondando os assuntos de interesse, ao invés de fazer perguntas diretas que poderiam ser respondidas de forma enviesada. Então, em setembro do mesmo ano, no artigo “Palestras de além-túmulo — Senhora Schwabenhaus. Letargia Extática“, Kardec faz as seguintes perguntas, obtendo as seguintes respostas. Notem bem:

29. ─ Sob que forma estais entre nós? ─ Sob minha última forma feminina.

30. ─ Vós nos vedes tão distintamente quanto se estivésseis viva? ─ Sim.

31. ─ Desde que aqui vos encontrais com a forma que tínheis na Terra, é pelos olhos que nos vedes? ─ Não, o Espírito não tem olhos. Só me encontro sob minha última forma para satisfazer às leis que regem os Espíritos quando evocados e obrigados a retomar aquilo a que chamais perispírito.

Vejamos, então: já são dois os Espíritos, de elevações diferentes, dizendo a mesma coisa: para o Espírito liberto da matéria, não há forma, como a que compreendemos. Eles assumem o perispírito, atendendo a uma lei natural, apenas quando precisam agir materialmente, quando, por exemplo, se aproximam de nós para se comunicar (com materialmente quero dizer: eles precisam assumir o perispírito para poder se colocar em comunicação conosco, o que, antes de tudo, se dá através dessa “roupagem”. É, portanto, matéria, mas uma matéria muito sutil, extraída do fluido cósmico universal[1]).

Significa então que os estudos de Kardec desmentem André Luiz? Bem, apesar de a metodologia de Kardec ser bastante lógica, deixando pouco espaço para erro, seria talvez precipitado tirar conclusões baseados apenas nesses dois Espíritos — ainda não sabemos se existem, mais adiante, mais evocações que deem suporte a essa tese — mas também não estamos dizendo que Chico Xavier errou, já que ele foi uma ferramenta dos Espíritos, nem que André Luiz mentiu, mas sim que ele falou segundo suas concepções e seus entendimentos. Quem sabe, ele poderia estar falando de uma situação de “encarnação” de Espíritos, em matéria mais sutil? Também não descartamos a existência de verdadeiras cidades, formadas pelos Espíritos ainda muito dependentes da matéria e da forma — o que, em suma, não é nada bom, mas compreendemos que seja uma fase.

O suicídio

Outro tema que foi fartamente desconstruído de suas concepções modernas é aquele a respeito do suicídio. Reinam, hoje, no meio espírita, as afirmações de que o suicida fica no “umbral” ou no “vale dos suicidas”; o de que ele ficará preso ao corpo, “sentindo-o” ser roído pelos vermes; o de que ele ficará anos em perturbação extrema, sendo impossível se comunicar; e, ainda, o de que o suicida amanhã nascerá com defeitos físicos de modo a “resgatar um débito cármico” (esse último trecho causa aversão até para escrever).

Bem, até o momento, Kardec já fez a evocação de dois suicidas: O Suicida da Samaritana, em junho de 1858, e Suicídio por Amor — setembro de 1858 — onde um rapaz se matou à porta da namorada, num ápice das emoções, pois ela se obstinara em não aceitá-lo de volta, após uma grande discussão.

O primeiro é evocado cerca de dois meses após o episódio fatídico: “Peço a Deus Todo-Poderoso permita ao Espírito do indivíduo que se suicidou a 7 de abril de 1858, nos banhos da Samaritana, venha comunicar-se conosco” — notem a simplicidade na evocação. Esse Espírito denotou um grande sofrimento moral, que vinha desde antes de sua morte, a qual buscou por um desespero em não saber lidar com os desgostos e as provações da vida. São Luís encerra a comunicação dizendo apenas que o suicídio interrompe a vida bruscamente, o que pode provocar uma certa dificuldade momentânea de se desapegar do corpo.

O segundo é evocado sete ou oito meses após o suicídio. Esse espírito já não sofre tanto, pois entendeu a falta de utilidade no que fez, e que o fez por um ato irrefletido levado pelas paixões (emoções) incontidas. Nesse, há apenas um “aprisionamento mental” ao momento do ato, que ficava se repetindo na mente desse Espírito, já que a ele se ligava com arrependimento.

Em nenhum deles, nenhuma menção àquilo que se tornou lugar-comum no meio Espírita, que, na verdade, são meias-verdades: existem as diversas possibilidades, segundo a mentalidade de cada um, mas o espírita atual insiste em tomar a exceção por regra.

A moral autônoma

Paulo Henrique de Figueiredo muito tem falado e defendido a essência do Espiritismo como moral autônoma. E muito tem sido criticado por alguns poucos que ainda não conseguiram ver isso na Doutrina. Aqui, há mais um conceito atual desconstruído pelo estudo da Revista Espírita. Não vou me aprofundar sobre o assunto, pois neste artigo já apresentei o conceito. Apenas quero destacar que, na própria Revista, nós vemos esse conceito muito bem fundamentado, e não por Kardec, apenas, mas pelos Espíritos.

Logo na primeira edição da RE, em janeiro de 1858, temos o artigo “Uma conversão“, que apresenta a seguinte sequência de perguntas e respostas, feitas ao pai falecido de um rapaz, por esse mesmo rapaz, que buscava acreditar no Espiritismo:

15. — Seremos punidos ou recompensados de acordo com nossos atos? — Se você fizer o mal, sofrerá.

16. — Serei recompensado se fizer o bem? — Avançará em seu caminho.

17. — Estou no bom caminho? — Faça o bem e estará.

Observe a profundidade moral desse simples diálogo. Não há castigo e recompensa, mas apenas nós mesmos, diante de nossa própria consciência, segundo nossas escolhas.

Mais adiante, em outubro de 1858, no artigo “Assassinato de cinco crianças por outra de doze anos — Problema moral“, Kardec questiona a São Luís sobre a possibilidade daquele Espírito, do assassino, voltar a encarnar sobre a Terra, e não sobre um planeta ainda mais atrasado:

11. ─ Então pode ele encontrar na Terra os meios de expiar sua falta, sem ser obrigado a regressar a um mundo inferior?

─ Aos olhos de Deus, o arrependimento é sagrado, porque é o homem que a si mesmo se julga, o que é raro no vosso planeta.

Prezado(a) amigo(a), vê a beleza da Doutrina Espírita, verdadeiramente consoladora e autônoma, transparecida em sua face original? Nada de carma. Nada de “ação e reação”. Nada de “lei do retorno”. Estudemos, estudemos, porque o movimento espírita atual, inundado de conceitos exíguos e contrários à Doutrina dos Espíritos, anda muito afastado de suas essência e realidade originais!

Como estudar a Revista Espírita

Muito bem: já apresentamos a importância inestimável desse periódico de Kardec; já apresentamos, também, a profundidade que ele tem e o encadeamento lógico e racional de algo que vai formando o corpo de uma Doutrina Científica, muito bem estabelecida, que é o Espiritismo. Resta saber: como estudar esses 136 números dessa publicação?

Cremos haver duas formas principais, sobre as quais, aliás, estamos discutindo e nos adequando, no momento, de modo a chegar no melhor método. A primeira delas é aquela que respeita a forma cronológica, edição a edição; a segunda é aquela que “passa a perna”, no bom sentido, em Kardec, e avança por assuntos, de forma mais ou menos cronológica. Explico:

Na primeira modalidade, que é o que fizemos até então, pegamos a Revisa, edição por edição, e nos dedicamos a estudá-la individualmente, em primeiro lugar, a fim de extrair de cada número e assunto o melhor entendimento, enriquecendo o estudo. Isso porque existem, nela, assuntos acessórios, que não apresentam grande ganho em trazer para o estudo em grupo, como é o caso dos fenômenos apresentados por Kardec, no que chamaríamos hoje de “causos espíritas”. Não que não sejam artigos úteis, pois reforçam muito o entendimento a respeito do fato dos fenômenos espíritas, principalmente para aqueles que ainda tem dúvidas sobre eles.

Já outros assuntos são tão importantes e profundos que merecem uma atenção especial, por vezes buscando complementos não só em Kardec, mas também em obras complementares de outros pesquisadores contemporâneos ou não de Kardec. Por diversas vezes já encontramos grande utilidade em abordar não apenas demais obras de Kardec que, se fôssemos nos basear pela cronologia correta, sequer haviam sido publicadas, mas também obras como as de Ernesto Bozzano e aquelas recentes de Paulo Henrique.

Outra forma de realizar esse estudo é, como dissemos, “passar a perna” em Kardec e avançar sobre os assuntos em todos os anos da Revista e da obra completa do Professor. Mas isso no bom sentido: Kardec, cronologicamente, o que é óbvio, vai amadurecendo a própria compreensão a respeito da Doutrina dos Espíritos, através da pesquisa incessante. Assim, podemos ver, por exemplo, Kardec falando em fluido vital, em 1858, mas, em A Gênese, descartando os fluidos e ficando com a tese de Mesmer, do Magnetismo Animal e do princípio vital. Portanto, pode-se desrespeitar a ordem cronológica de modo a estudar os assuntos abordados na Revista, complementando-os e relembrando-os conforme se avança pelos números, na ordem.

No momento, estamos optando por um meio-termo: descartamos o aprofundamento nos assuntos acessórios, nos atendo aos assuntos principais e, deles, fazendo o devido aprofundamento, conforme observamos a necessidade. Talvez passaremos a abordar mais de uma edição num mesmo estudo, quando verificarmos que os assuntos de mais de uma delas é construído e complementado sequencialmente. Apena não julgamos útil avançar a passos grandes demais, pois compreender a construção do pensamento de Kardec, de seu método, dos ensinamentos dos Espíritos nas entrelinhas, é algo que julgamos muito proveitoso e importante.

O fim da Revista Espírita sob a tutela de Kardec

Chegamos, enfim, ao final do artigo, citando o fim da Revista Espírita com a morte de Allan Kardec. “Mas, Paulo, a Revista Espírita continuou sendo veiculada por muitos anos após sua morte”. Sim, continuou… Mas, infelizmente, foi subvertida pelos interesses mesquinhos do dinheiro e da vaidade. Enquanto esteve sob Kardec, foi uma publicação metódica, bem formulada e, sobretudo, impessoal, voltada aos interesses do Espiritismo, isto é, da Doutrina dos Espíritos, que não pertence a nenhum encarnado e nem sai das ideias de nenhum deles, de forma isolada.

Após a morte de Kardec, aqueles que assumiram e subverteram a Sociedade (para mais detalhes leia O Legado de Allan Kardec, de Simoni Privato) passaram a utilizar desse periódico para veicular os mais completos absurdos, dentre eles, sob a direção de Pierre Leymarie, artigos promovendo um falso médium, que dizia obter fotografias dos Espíritos. A promoção era literal, pois, na Revista Espírita, chegou-se a dar a indicação e os valores cobrados para se obter uma suposta fotografia de um parente morto. O caso rendeu um grande processo judicial contra Leymarie e seus associados, naquilo que ficou conhecido como O Processo dos Espíritas e que manchou absurdamente a reputação da Doutrina perante a sociedade.

Mas não parou por aí. A Revista Espírita, depois de 1869, passou a ser constantemente lugar de veiculação de absurdos artigos, muitos contrários à Doutrina até então formada pela metodologia indispensável aplicada por Kardec. É por isso que, juntamente aos demais estragos causados à Doutrina, que, hoje, ficamos com a Revista apenas sob o tempo em que ela esteve sob as conscienciosas mãos de Allan Kardec, e é por todo o exposto, até aqui, que…

… Convidamos a todos a montarem grupos de estudos sobre essa publicação, juntando a isso as pesquisas mais atuais, de modo que o aprendizado do Espiritismo, como Doutrina Científica que é, possa, a cada dia mais, sair dos círculos dos estudiosos espíritas e espalhar suas influências sobre a sociedade, que está desesperada em busca de respostas, uma vez mais.

Para isso, recomendamos observar as obras recomendadas para estudo, bem como acompanhar os estudos do grupo Espiritismo para Todos, no YouTube.


1. Diz Paulo Henrique de Figueiredo, em A Gênese (FEAL, 2018):

“Havia a teoria do fluido cósmico universal, adotada inicialmente por Franz Anton Mesmer (na Ciência do Magnetismo Animal), segundo a qual o Universo seria composto de um só elemento gerador, ocupando plenamente o espaço, dividido em inúmeras fases de densidade, progressivamente, desde a matéria tangível, líquida, gasosa, o éter e demais condições ainda mais sutis, imperceptíveis aos sentidos. Nessa outra teoria, as forças não seriam substâncias, mas estados de vibração em diversos níveis sutis do fluido universal. Por exemplo, a luz seria um estado de vibração do éter. Por analogia, considerando a adoção nessa obra da teoria do único elemento gerador como explicação universal dos fenômenos físicos, os fluidos espirituais estariam entre os estados mais sutis do fluido cósmico universal”. Recomendamos a obra Mesmer: a ciência negada do magnetismo animal, desse mesmo autor.




O papel do pesquisador e do médium nas comunicações com os Espíritos

Neste estudo em grupo, tratamos do artigo em questão de uma forma um tanto diferente, pois notamos que ele nos dava ensejo a um aprofundamento bastante importante a respeito da mediunidade e das diferenças existentes entre como ela era tratada no Espiritismo, como doutrina científica nascida da observação racional dos fatos e das comunicações espíritas (espirituais) e como ela é tratada hoje. Assim, abordamos os seguintes tópicos principais:

  • Qual é a influência do médium na comunicação?
  • Animismo e o medo de ser médium
  • Podemos e devemos julgar as comunicações mediúnicas? De que forma?
  • Mitos: não podemos evocar Espíritos; evocar Espíritos provoca obsessões
  • Lições aprendidas: a distância entre o “movimento espírita” atual e o Espiritismo original; a necessidade da retomada dos estudos

Baseado no artigo “Espíritos impostores — o falso Padre Ambrósio” — Revista Espírita de julho de 1858

Esperamos que, tanto o vídeo de nosso debate, quanto esta leitura, sejam de grande proveito para você!

Os escolhos da mediunidade

Reconhecemos: estudar Kardec por conta própria, nem sempre é fácil. É uma linguagem difícil e, muitas vezes, repleta de referências a neologismos e ao contexto no qual o professor Rivail estava inserido, de forma que se faz muito oportuna tal contextualização¹, em primeiro plano, quanto o emprego de pesquisas na web, durante a leitura.

“Escolho” significa, no sentido figurado, uma dificuldade. E Kardec abre o referido artigo falando sobre tais dificuldades:

Um dos escolhos apresentados pelas comunicações espíritas é o dos Espíritos impostores, que podem induzir em erro quanto a sua identidade e que, ao abrigo de um nome respeitável, tentam passar os mais grosseiros absurdos. Em muitas ocasiões esse perigo nos tem sido explicado. Entretanto, ele nada é para quem perscruta tanto a forma quanto o conteúdo da linguagem dos seres invisíveis com os quais entra em comunicação. […] Nada é mais fácil do que se premunir contra fraudes semelhantes, por menor que seja nossa boa vontade.

Kardec parece tornar bastante simples, banal mesmo, essa tarefa de identificar a comunicação de um Espírito impostor, não? Mas por que, então, hoje em dia, tantos absurdos tem sido aceitos, via comunicações mediúnicas, como se fossem a legítima expressão de um Espírito sério e honesto, conhecedor das verdades absolutas?

Acontece que o “movimento espírita” (eu chamo de movimento a fim de distinguir o Espiritismo daquilo que fazem os seus adeptos, nem sempre bem informados e conhecedores da Doutrina) anda bastante esquecido dos postulados mais básicos da Doutrina dos Espíritos. Ora, logo no início da segunda parte de O Livro dos Espíritos, nos itens 100 a 113, Kardec nos apresenta, didaticamente, uma escala geral, nomeada por ele “Escala Espírita“, onde, agrupando de uma forma mais ou menos geral, o caríssimo professor nos demonstra as características gerais dos Espíritos em suas diferentes escalas evolutivas, agrupando-os em três ordens principais: Espíritos Imperfeitos (terceira ordem), Espíritos Bons (segunda ordem) e Espíritos Puros (primeira ordem).

Constatado é, até mesmo pela observação lógica de nossa condição evolutiva, que nós nos colocamos em contato principalmente os os Espíritos das duas últimas ordens, especialmente com os da terceira, com os quais mais facilmente nos afinizamos mentalmente. Também é fato conhecido que os Espíritos se diferem de nós, encarnados, apenas por não terem a constrição do corpo físico e, pela ausência deste, terem o pensamento mais liberto, em geral, do abafamento do cérebro físico. Portanto, assim como nós, eles não mudam de opinião ou de conhecimentos simplesmente por deixarem a matéria por meio da desencarnação e, assim como nós, podem falar do que sabem, do que acreditam que sabem ou, então, podem procurar enganar, por maldade ostensiva ou por orgulho em querer dizer do que reconhecidamente não sabem.

Nós já reproduzimos a Escala Espírita em um artigo anterior, mas vamos destacar alguns detalhes importantes dessa terceira ordem de Espíritos, que é onde se concentram os problemas nas comunicações mediúnicas.

Como se comunicam os Espíritos da terceira ordem – Espíritos Imperfeitos

Décima Classe – Espíritos Impuros

São inclinados ao mal, com o que se preocupam. Dão conselhos traiçoeiros, desleais, sopram a discórdia e a desconfiança e se mascaram de todas as maneiras para melhor enganar.

Na linguagem, são triviais, grosseiros, apresentam baixeza de inclinações e não conseguem enganar por muito tempo com uma falsa sensatez.

Nona Classe – Espíritos Levianos

São ignorantes, malévolos, inconsequentes e zombeteiros. Metem-se em tudo, respondem a tudo, sem se preocupar com a verdade. Gostam de causar pequenos aborrecimentos e pequenas alegrias; de produzir discórdias; de induzir maliciosamente ao erro por mistificações e por travessuras.

Suas comunicações são quase sempre espirituosas e alegres, mas quase sempre sem profundidade.

Oitava Classe – Espíritos pseudossábios

Dispõem de conhecimentos bastante amplos, porém, creem saber mais do que realmente sabem.

É uma mistura de algumas verdades com os erros mais absurdos, através dos quais penetram a presunção, o orgulho, o ciúme e a obstinação, de que ainda não puderam despir-se.

Ora, temos, aqui, um conhecimento de base já bastante importante a respeito da forma como se expressam esses Espíritos, não? E é claro que, como bons espíritas, não pararemos aqui e buscaremos estudar O Livro dos Espíritos e as demais obras, a fim de adquirir ainda mais conhecimentos que possam auxiliar no nosso contato com os Espíritos. Afinal, não é à toa que Kardec, na introdução de O Livro dos Médiuns, começa assim:

Todos os dias a experiência nos traz a confirmação de que as dificuldades e os desenganos, com que muitos topam na prática do Espiritismo, se originam da ignorância dos princípios desta ciência, e feliz nos sentimos de haver podido comprovar que o nosso trabalho, feito com o objetivo de precaver os adeptos contra os escolhos de um noviciado, produziu frutos e que à leitura desta obra devem muitos o terem logrado evitá-los.

Natural é, entre os que se ocupam com o Espiritismo, o desejo de poderem pôr-se em comunicação com os Espíritos. Esta obra se destina a lhes achanar o caminho, levando-os a tirar proveito dos nossos longos e laboriosos estudos, porquanto muito falsa ideia formaria aquele que pensasse bastar, para se considerar perito nesta matéria, saber colocar os dedos sobre uma mesa, a fim de fazê-la mover-se, ou segurar um lápis, a fim de escrever.

Uma coisa é certa: Kardec não tinha tempo a perder com palavras vazias destinadas a enfeitar um orgulho ou uma vaidade que, conforme ficou muito bem demonstrado, ele não as tinha. Portanto, temos nós é que deixar o orgulho de lado e nos dedicar a estudar, ao invés de ficarmos achando que sabemos de tudo simplesmente por termos qualquer contato prático com os Espíritos! Dessa forma, fica muito mais fácil julgar uma comunicação espiritual ou tentar penetrar a real face do Espírito que se comunica – e Kardec, nesse mesmo artigo (do falso Pe. Ambrósio) vai dar uma lição simples e clara de como fazê-lo. Trataremos disso mais à frente.

Como lidar com Espíritos mistificadores?

Mistificar significa enganar, ludibriar. E vamos destacar duas perguntas feitas por Kardec, diretamente ao Espírito mistificador (o do falso Pe. Ambrósio, que ele havia evocado) que trazem questões importantes, tratadas a seguir.

“14. ─ Que pensas do que disseste em seu nome?

Penso como pensavam os que me escutavam.”

A questão aqui é: quem os escutava? O médium estaria o escutando, necessariamente? Em outras palavras: seria culpa daquele médium aquela falsa comunicação?

“16. ─ Por que não sustentas a impostura em nossa presença?

Porque minha linguagem é uma pedra de toque [material utilizado para avaliar a pureza de um material], com a qual não vos podeis enganar.”

Por que naquele meio (o de Kardec) aquele Espírito afirma que não conseguiria enganar?

Mas, para responder a essas perguntas, vamos avançar em nossas reflexões, o que deixará muito claras as respostas.

Animismo

Pensamos ser importante levantar, aqui, a questão do animismo, já que é algo que persegue e tira o sono de muitos médiuns e dirigentes de grupos espíritas. O animismo é o conceito no qual o médium apresenta conteúdos próprios, de seus próprios pensamentos, ao invés de apresentar puramente o pensamento do Espírito que se comunica.

É algo que, realmente, acontece muito, sendo motivo de muitos medos, como dissemos, pois criou-se a hipótese de que o médium precisa ser uma ferramenta totalmente passiva para a comunicação espiritual. Isso não deixa de ser uma verdade, quando falamos na comunicação de um Espírito através de um médium. Contudo, não deve ser transformada em ferramenta de perseguição ou autoperseguição. A importância da questão, aqui, está ligada à honestidade do médium:

  • Quando o médium age de forma totalmente honesta, buscando ser uma boa ferramenta para os Espíritos, despido de vaidade e de orgulho, sua mediunidade poderá ser desenvolvida mediante à prática e favorecida pelo estudo. Assim, em mais ou menos tempo, as comunicações dadas através dele serão cada vez mais “limpas”, expressando o pensamento original do Espírito. Não deve, portanto, o animismo, nesse caso, ser algo a se temer, pois está relacionado ao grau do desenvolvimento da mediunidade, considerando que, nos primeiros estágios, o médium comumente completará pensamentos ou os traduzirá segundo ideias próprias, que não necessariamente são contrárias às do Espírito.

  • Quando o médium age conscientemente (sob o olhar da lucidez material) expressando ideias que não são de um Espírito, isto é, quando ele não está agindo como médium, mas apenas por si próprio, em estado de vigília, mas tenta enganar, como se fosse uma comunicação mediúnica, expressando os mais terríveis disparates, este sim é um caso grave, um problema diretamente ligado à moral do médium, que precisa ser tratado com fraternidade mas com firmeza, a fim de que esse médium não ponha a harmonia do grupo em cheque. Quando age de forma isolada, nesse caso, é preciso que apenas não seja levado de forma séria, como, infelizmente, muitos espíritas tem feito.

O médium honesto deve aprender que, sempre que estiver desconcentrado ou que não se comunique nenhum Espírito, deve informar ao grupo, sem nenhum medo de ser atingido em um amor-próprio que, nesse caso em especial, jamais deveria existir. Infelizmente, os centros espíritas atuais, com as reuniões mediúnicas abertas ao público, fizeram cair sobre os ombros dos médiuns uma responsabilidade deletéria de ter que estar sempre pronto e à disposição para os fenômenos mediúnicos, o que não é lógico, já que, sendo a mediunidade uma capacidade radicada no organismo, como uma sexto sentido, também pode apresentar entraves diversos, assim como um resfriado pode tirar nossa capacidade olfativa.

Mas há um terceiro aspecto a se considerar: às vezes o animismo pode ser bem-vindo, conforme fica expresso na seguinte questão de O.L.M. (O Livro dos Médiuns):

223 – 2.ª. As comunicações escritas ou verbais também podem emanar do próprio Espírito encarnado no médium?

“A alma do médium pode comunicar-se, como a de qualquer outro. Se goza de certo grau de liberdade, recobra suas qualidades de Espírito.[…] Porque, ficai sabendo, entre os Espíritos que evocais, alguns há que estão encarnados na Terra. Eles, então, vos falam como Espíritos e não como homens. Por que não se havia de dar o mesmo com o médium?”

De tal forma, se o Espírito do próprio médium pode comunicar-se – o que acontece mais facilmente nos estados de sonambulismo e de êxtase, conforme a resposta à pergunta 223-3a deixa claro – é claro que poderá também trazer conhecimentos válidos e importantes, da mesma forma que faria um Espírito liberto da matéria.

Creio que o assunto do animismo está relativamente bem entendido pelo que foi exposto. Mas e a respeito do medo que médium pode ter de transmitir uma comunicação de baixo teor, isto é, uma comunicação frívola, de linguajar indecente ou enganosa? Cremos que a abordagem seguinte responderá bem a esse respeito.

Influência moral do médium

Levantada a questão do medo que o médium pode ter de dar lugar a uma comunicação de teor menos elevado, precisamos refletir a respeito do papel do médium nesse sentido. Kardec aborda, claro, esse questionamento em OLM, buscando identificar a ligação da moral do médium com a capacidade mediúnica. Vejamos:

226. 1.ª. O desenvolvimento da mediunidade guarda relação com o desenvolvimento moral dos médiuns?

“Não; a faculdade propriamente dita se radica no organismo; independe do moral. O mesmo não se dá, porém, com o seu uso, que pode ser bom, ou mau, conforme as qualidades do médium.”

5.ª. Nas lições ditadas, de modo geral, ao médium, sem aplicação pessoal, não figura ele como instrumento passivo, para instrução de outrem?
“Muitas vezes, os avisos e conselhos não lhe são dirigidos pessoalmente, mas a outros a quem não nos podemos dirigir, senão por intermédio dele, que, entretanto, deve tomar a parte que lhe caiba em tais avisos e conselhos, se não o cega o amor-próprio.

A questão primeira reforça o que dissemos a respeito de a faculdade mediúnica estar radicada no organismo, o que significa que tanto o bom quanto o mau podem ser médiuns de maior ou menor capacidade. Contudo – e aí está o principal objetivo da faculdade mediúnica – o bom ou o mau uso que fazemos dela é que dará os rumos de nossa moral e da vontade de utiliza-la para o progresso próprio, a serviço da humanidade, ou não.

A questão quinta diz assim: o médium, por mais que seja intrumento passivo, precisa estar sempre atento para as comunicações que intermedia, pois, por mais que sejam direcionadas a outrem, podem ter aplicação pessoal – o que reforça o pensamento anterior.

226. 6.ª. Visto que as qualidades morais do médium afastam os Espíritos imperfeitos, como é que um médium dotado de boas qualidades transmite respostas falsas, ou grosseiras?

“Conheces, porventura, todos os escaninhos da alma humana? Demais, pode a criatura ser leviana e frívola, sem que seja viciosa. Também isso se dá, porque, às vezes, ele necessita de uma lição, a fim de manter-se em guarda.”

A questão sexta aponta que, muitas vezes, uma comunicação de baixo teor pode se dar pela simpatia dos médiuns com Espíritos que pensem como ele ou que tenham as mesmas inclinações, mesmo que isso não seja visível no médium, no dia-a-dia. Também podem se dar porque ele, às vezes, precisa de uma lição para se manter em guarda, ou então, supomos, para que o grupo de estudos se mantenha em guarda, pois supomos que um bom médium ainda assim possa intermediar uma comunicação desse teor a fim de colocar à prova a atenção daquele grupo.

Tudo isso, porém, é muito válido se o grupo ou o indivíduo estão atentos e se tratam com seriedade e honestidade das comunicações. Caso contrário, tais comunicações, que acontecerão com mais frequência, levarão à queda de um ou de outro.

226. 8.ª. Será absolutamente impossível se obtenham boas comunicações por um médium imperfeito?

“Um médium imperfeito pode algumas vezes obter boas coisas, porque, se dispõe de uma bela faculdade, não é raro que os bons Espíritos se sirvam dele, à falta de outro, em circunstâncias especiais; porém, isso só acontece momentaneamente, porquanto, desde que os Espíritos encontrem um que mais lhes convenha, dão preferência a este.”

Os Espíritos se comunicam no meio simpático a eles, de preferência.

Nota. Deve-se observar que, quando os bons Espíritos veem que um médium deixa de ser bem assistido e se torna, pelas suas imperfeições, presa dos Espíritos enganadores, quase sempre fazem surgir circunstâncias que lhes desvendam os defeitos e o afastam das pessoas sérias e bem-intencionadas, cuja boa-fé poderia ser laqueada. Neste caso, quaisquer que sejam as faculdades que possua, seu afastamento não é de causar saudades.

Um médium de moral complicada mas de boas capacidades mediúnicas pode ser utlizado por bons Espíritos em situações específicas, como quando não há outro ou quando os Espíritos julgam que produzirão um bem ou que poderão evitar um mal ao fazê-lo. Fora disso, se afastam.

A nota de Kardec diz tudo: se um médium, por suas inclinações, deixa de ser bem assistido (por bons Espíritos) e se torna presa de Espíritos inferiores, é, pelos próprios bons Espíritos, afastado das pessoas sérias e bem intencionadas.

Conclusões sobre a influência moral do médium

  • Um médium de boa moral pode ser alvo de um Espírito mistificador. Isso pode se dar como um alerta, como no caso que Kardec vai abordar.
  • Um médium de moral “questionável” pode ser utilizado, se tiver uma mediunidade poderosa, por um Espírito elevado. Contudo, muito mais frequentemente será alvo de Espíritos inferiores, que acabarão por fazê-lo tombar, sobretudo quando utiliza da própria mediunidade para fins “questionáveis”.

O Falso Padre Ambrósio

Kardec, com a finalidade de estudar o problema, aborda o caso ocorrido na Spiritualiste de la Nouvelle-Orléans (clique aqui para baixar o original, em Francês), onde dois Espíritos engandores haviam se fazido passar pelo Padre Ambrósio e por Clemente XIV, tecendo um diálogo por demais frívolo e vazio.

Kardec faz, então, a evocação dos três Espíritos: O verdadeiro Padre Ambrósio, o falso Pe. Ambrósio e o falso Clemente XIV, mas, antes, declara:

Apressemo-nos, entretanto, em declarar que esse círculo não recebe apenas comunicações de tal ordem; há outras de caráter muito diverso, nas quais encontramos toda a sublimidade do pensamento e da expressão dos Espíritos superiores.

Como é possível verificar na revista original e também na tradução livre feita pela nossa colaboradora, Ariane, na segunda parte (terceira página do documento), as comunicações do verdadeiro Pe. Ambrósio são de cunho bastante mais elevado e profundo.

A conversa de Kardec com os Espíritos e nossas reflexões

Ao Espírito do verdadeiro Pe. Ambrósio:

5. ─ Como pudestes permitir coisas semelhantes em vosso nome? Por que não viestes desmascarar os impostores?

─ Porque nem sempre posso impedir que homens e Espíritos se divirtam.

6. ─ Compreendemo-lo quanto aos Espíritos. Mas, quanto às pessoas que recolheram as palavras, são gente séria; não buscavam divertimentos.

─ Uma razão a mais. Eles deviam pensar logo que tais palavras não poderiam deixar de ser a linguagem de Espíritos zombeteiros.

Nem sempre os bons Espíritos podem impedir tais situações, pois, acima de tudo, respeitam o livre-arbítrio dos demais. Além disso, podem permitir tais situações a fim de que sirva de alerta para o grupo ou indivíduo.

7. ─ Por que os Espíritos não ensinam em Nova Orleans, princípios perfeitamente idênticos aos que aqui ensinam?

─ Em breve lhes servirá a doutrina que vos é ditada. Haverá apenas uma.

8. ─ Desde que essa doutrina deverá ser ali ensinada mais tarde, parece-nos que se o fosse imediatamente aceleraria o progresso e evitaria que alguns tivessem dúvidas prejudiciais.

─ Os desígnios de Deus são sempre impenetráveis. Não há outras coisas que, à vista dos meios que ele emprega para atingir seus objetivos, parecem-vos incompreensíveis? É preciso que o homem se habitue a distinguir o verdadeiro do falso. Nem todos poderiam receber a luz de um jacto sem serem ofuscados.

O Espírito do verdadeiro Pe. Ambrósio deixa claro: a Doutrina Espírita encontrou, na França e no contexto Kardec, a base necessária para se fazer luzir com toda a força, sem ofuscar, já que as ciências estavam muito bem preparadas para receber seus ensinamentos, tratando-os racionalmente e com método científico.

Uma grande lição de Kardec

Falávamos, antes, sobre a necessidade de buscar distinguir as comunicações dos Espíritos, identificando se são honestas ou produtos de enganações e se são de Espíritos mais ou menos sábios (lembrando que uma comunicação pode ser séria e honesta, mas, ainda assim, de pouca ou nenhuma sabedoria). Vejamos, então, as seguintes perguntas e respostas trocadas entre Kardec e o verdadeiro Pe. Ambrósio:

 9. ─ Teríeis a bondade de nos dar vossa opinião pessoal relativamente à reencarnação?  

Os Espíritos são criados ignorantes e imperfeitos. Uma única encarnação não bastaria para que tudo aprendessem. É necessário que reencarnem, a fim de gozarem a felicidade que Deus lhes reserva.  

10. Dá-se a reencarnação na Terra ou somente em outros globos?  

A reencarnação se dá conforme o progresso do Espírito, em mundos mais perfeitos ou menos perfeitos.  

11. Isto não esclarece se pode ocorrer na Terra.  

Sim, pode ocorrer na Terra, e se o Espírito a pede como missão, ser-lhe-á mais meritório do que se a pedisse para avançar mais rapi­damente em mundos mais perfeitos.

Ora, Kardec estava falando sobre um assunto completamente diferente. De repente, começa a perguntar sobre reencarnação? Por que?

Simples: porque ele estava buscando sondar os conhecimentos daquele Espírito, a fim de saber se estava realmente falando com um Espírito sábio ou se falava com um Espírito enganador. Brilhante, não? É assim que deveríamos proceder, ainda hoje e sempre, mas, para isso, é preciso que estejamos atentos, que tenhamos conhecimentos e que saiamos da condição de simples espectadores passivos das comunicações espirituais.

Kardec continua, perguntando, agora, ao falso Pe. Ambrósio:

15. ─ Por que te serviste de um nome respeitável para dizer semelhantes tolices?

Aos nossos olhos os nomes nada valem. As obras são tudo. Como pelo que eu dizia, podiam ver o que eu era realmente, não liguei importância à substituição do nome.

Veja só: o Espírito enganador sabe que os “ouvintes” (sabemos que era através da psicografia a comunicação) poderiam julgar quem ele realmente era, através do que expressava. Portanto, não ligou qualquer importância por utilizar o nome do Pe. Ambrósio.

Lições aprendidas

Vivemos um Espiritismo muito distanciado do Espiritismo “de Kardec” (entre aspas, pois sabemos que o Espiritismo não pertence a ele nem saiu de sua cabeça). E isso não é bom, porque o Espiritismo “de Kardec” é aquela doutrina científica, nascida com base na observação racional dos fenômenos espíritas e na concordância universal do ensinamento dos Espíritos.

Hoje, no meio Espírita, por um lado se persegue o médium pelo “animismo”; por outro, tratam-se muitos médiuns como oráculos, como se suas opiniões — porque qualquer pensamento individual, frente à Doutrina, que não tenha passado pelo crivo da razão e da concordância universal, só pode ser tomado como opinião — de si mesmos ou dos Espíritos que se comunicam, pudessem ser tomadas como a suma expressão da verdade e da sabedoria. Acabamos de ver o quão falsa e perigosa é essa premissa.

Não devemos evocar os Espíritos?

Além disso, criaram-se vários mitos, como o que diz que não devemos evocar os Espíritos (o que só é válido em caso de falta de bons propósitos, o que constituiria, nas palavras de Kardec, uma verdadeira profanação) e como o que diz que as evocações podem resultar em obsessões espirituais. Ora, os Espíritos estão ao nosso redor o tempo todo, e se aproximam de nós segundo suas afinidades com o que somos e pensamos, nas profundidades de nossa alma. Para nos obsediar, basta que queiram se utilizar de nossa ausência de vontade e da nossa permissão e, para isso, não necessitam se comunicar conosco por via mediúnica.

Compete destacar que, se um médium ou grupo mediúnico se torna alvo de obsessão espiritual, é porque ali há um problema moral, ligado às imperfeições de cada um, sobre as quais precisam vigiar. Kardec e inúmeros outros pesquisadores se serviam de médiuns educados e equilibrados para evocar todo tipo de Espírito, sem que nunca sofressem de obsessões por fazê-lo. Apenas para reforçar: essas evocações tinham um propósito sério e eram feitas por pessoas sérias. Fossem feitas por mera curiosidade vazia ou diversão, estariam relacionadas a um problema moral e, então, temos aí o problema destacado.

Essa questão, da possibilidade e da validade ou não de se evocar os Espíritos, já foi muito bem abordada por Kardec em seu artigo “O Espiritismo sem os Espíritos”, na RE de Janeiro de 1866, sobre o qual tecemos algumas considerações importantes em artigo homônimo (clique aqui para acessá-lo).

Também, na Revista de 1858, no artigo “Obsedados e Subjugados” Kardec aborda a questão dos perigos do Espiritismo de forma mais detalhada. Sugerimos a leitura do artigo surgido de nossos estudos.

O Espiritismo precisa de defesa

Muitos afirmam que o Espiritismo não precisa de defesa e, muito mais, que ele precisa de atualização, pois estaria defasado. Começo dizendo que o Espiritismo precisa de defesa SIM. Afirmações contrárias a isso parecem sair de Espíritos contrários à propagação dessa Doutrina, Espíritos esses que, aliás, jamais leram Kardec, que saia em defesa do Espiritismo sempre que oportuno. Não se trata de uma defesa que ataca as religiões ou as crenças, mas uma defesa que aponte as imprecisões e os erros, frente ao Espiritismo, nas afirmações e nas práticas ditas espíritas.

Há muito eu ouço, no meio espírita, em diversas partes: os tempos são chegados. Por muito tempo pensei que se tratava apenas de um aviso a respeito das dificuldades que atravessamos. Contudo, hoje reflito: analisando friamente, vivemos realmente algo muito diferente do que já vivemos em outras épocas da humanidade? Ou será que os Espíritos estavam informando de que são chegados os tempos de restabelecer o que foi corrompido?

Uma coisa é fato: é tempo de começarmos a reorganizar pensamentos e retomar estudos esquecidos ou perdidos durante muito tempo. Alguns pesquisadores tem trazido informações muito importantes, com base em documentos e obras originais, até então desconhecidas, nos permitindo conhecer não apenas o Espiritismo em sua essência, mas também as ciências que lhe deram lugar ou que, junto a ele, formam um conjunto indissociável.

Paulo Henrique de Figueiredo, na obra Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo, nos traz informações a respeito do Espiritualismo Racional. Este formava as Ciências Morais da época e que deram base ao Espiritismo, sendo este, segundo pensamento do próprio professor Rivail, um desenvolvimento do primeiro; na obra Mesmer: a ciência negada do magnetismo, traz informações importantíssimas a respeito do Magnetismo, ciência essa tantas vezes citadas não só por Kardec, mas pelos próprios Espíritos. Por ser o magnetismo uma Ciência muito bem estabelecida em seu tempo, jamais teve explicações aprofundadas por Kardec, que não poderia imaginar que ela seria extinta nas décadas seguintes; e Simoni Privato, em O Legado de Allan Kardec, nos dá informações relativas não apenas a uma suposta adulteração de A Gênese, assunto esse ainda cheio de discussões controversas, atualmente, mas também dá informações importantíssimas a respeito do completo desvio que a Sociedade Espírita Parisiense, depois transformada em Sociedade Anônima e conduzida por Pierre Gaetan Leymarie, sofreu nas mãos deste senhor.

Com base nesses estudos e nos estudos de Kardec, os Espíritas honestamente interessados em ver o retorno de um trabalho sério de pesquisa, junto aos Espíritos, nos moldes de Kardec, precisam fazer a sua parte em defender a Doutrina, divulgando sem acusar e, sobretudo, instigando os grupos mediúnicos a voltar a registrar as comunicações com os Espíritos, aprofundando-se nelas e saindo da mera condição de espectadores pacientes, vivendo sob a mal compreendida frase, que se tornou lema, “o telefone toca de lá pra cá”, para voltar a realizar evocações sérias e que produzam material importante que, um dia, poderá ser analisado de forma independente, novamente (leia este sucinto artigo a respeito dessa reflexão).

Conclusão

Infelizmente, o movimento espírita está bastante distanciado de Kardec e do Espiritismo em sua real face. Passou-se a aceitar os mais diversos despautérios, alegadamente transmitidos por fontes mediúnicas, algumas bastante conhecidas, o que tem causado muito dano não só ao movimento, em si, que está a cada dia mais esvaziado, mas também à imagem do Espiritismo ante à sociedade, que aprendeu, em boa parte, a ver o Espiritismo como aquela opinião que vêm à tona sempre que acontece um desastre qualquer para dizer que, ali, foram vitimados pessoas que estavam resgatando um débito coletivo, sendo, por isso, culpados e merecedores daquele acontecimento. E esse tipo de pensamento é largamente reproduzido acerca das tragédias individuais ou coletivas, causando aversão e distanciamento.

Não bastasse isso, o Espiritismo, desde a morte de Kardec ( em 1869), passou a ser inundado por ideias roustainguistas (de Jean-Baptiste Roustaing), “doutrina” essa que se instalou no meio espírita brasileiro desde antes do início do século XX, inclusive por grande simpatia de Bezerra de Menezes às suas ideias. Embora a FEB, autointitulada “cúpula do Espiritismo no Brasil”, só tenha adotado a obrigação do estudo das obras de Roustaing a partir de 1917 (leia mais aqui), a influência roustainguista (ou rustenistas) já era forte há bastante tempo nesse meio.

Depois, vieram as influências ramatissistas, seguindo o mesmo padrão: ideias de um Espírito claramente pseudossábio (Ramatis), que acredita saber mais do que sabe e que quer se colocar com caraterísticas messiânicas, reescrevendo a verdade e colocando Kardec no lixo, contrariando a Doutrina Espírita e a própria Ciência em inúmeros pontos e, para finalizar, sem citar outros exemplos vários, veio o divinismo, também com o mesmo teor messiânico, dessa vez através de um indivíduo que se autoproclama a reencarnação de Kardec e que também produz os mais diversos tipos de ideias contrárias àquilo que já estava estabelecido pela concordância universal dos ensinamentos dos Espíritos e pela razão.

Enfim: o Movimento Espírita está esquecido de Kardec, a ponto de quase não haver Espiritismo em muitos pontos, e sim um espiritualismo religioso (no sentido da religião dogmática e cheia de rituais, hierarquias e sacerdotes). Precisamos, repito, fazer a nossa parte, ativamente, mas sem contendas, isto é, buscando os grupos e os indivíduos honestamente interessados nessa tarefa, de modo a auxiliar no trabalho de restabelecimento, pois,

o que é de base, não se supera!




O Espiritismo sem os Espíritos

Hoje, 3 de outubro, é aniversário de nascimento de Allan Kardec – Hypolite Leon Denizard Rivail¹, seu nome de registro – e, por entendermos fundamental seu papel no estudo da Doutrina dos Espíritos, à qual denominou Espiritismo, vamos abordar um assunto importantíssimo, que, para quem estuda as obras de Kardec, até pode soar pueril, sem importância: o “Espiritismo sem Espíritos”.

Ora, não será raro aquele que já tenha ouvido as mais diversas afirmações ou que tenha conhecimento do pensamento difundido de que não devemos incomodar os Espíritos, evocando-os. Muitos se baseiam na conhecida frase de Chico Xavier, “o telefone toca de lá pra cá”, imputando a ela um entendimento distorcido e fazendo dela cláusula pétrea no código mediúnico: “não podemos evocá-los. Devemos esperar que eles nos busquem”. Nada mais afastado da verdade e mesmo do propósito do Espiritismo.

Digno de nota, a frase de Chico, pode ser assim interpretada: “podemos evocá-los, mas depende deles, e não de nós, se vão responder ou não”. Outrossim, precisamos lembrar que Chico estava constantemente cercado de milhares de pessoas em busca de uma mensagem de seus entes queridos já falecidos. Chico não podia garantir que poderia atender a todas, sendo levado a dizer, em minhas palavras: “irmãos, eu sou apenas um intermediário e não consigo, sozinho, atender a todos. Por isso, me coloco à disposição deles, permitindo suas comunicações, conforme os bons Espíritos julgarem melhor”.

Essa opinião, contudo, de que não devemos evocar os Espíritos, vêm de muito longe e, aliás, foi muito agradável àqueles que, após Kardec, não desejavam que o método da concordância universal dos ensinos dos Espíritos se mantivesse de pé, posto que colocaria abaixo suas opiniões pessoais. Isso é bem conhecido.

Allan Kardec, na Revista Espírita de Janeiro de 1866, em artigo de título idêntico ao nosso, faz a seguinte observação:

Examinemos agora a questão sob outro ponto de vista. Quem fez o Espiritismo? É uma concepção humana pessoal? Todo mundo sabe o contrário. O Espiritismo é o resultado do ensinamento dos Espíritos, de tal sorte que sem as comunicações dos Espíritos não haveria Espiritismo. Se a Doutrina Espírita fosse uma simples teoria filosófica nascida de um cérebro humano, ela não teria senão o valor de uma opinião pessoal; saída da universalidade do ensino dos Espíritos, tem o valor de uma obra coletiva, e é por isto mesmo que em tão pouco tempo se propagou por toda a Terra, cada um recebendo por si mesmo, ou por suas relações íntimas, instruções idênticas e a prova da realidade das manifestações.

E segue, criticando os inimigos da Doutrina que, por verem na universalidade do ensino dos Espíritos, um grande inimigo às suas ideias próprias:

Pois bem! É em presença deste resultado patente, material, que se tenta erigir em sistema a inutilidade das comunicações dos Espíritos. Convenhamos que se elas não tivessem a popularidade que adquiriram, não as atacariam, e que é a prodigiosa vulgarização dessas ideias que suscita tantos adversários ao Espiritismo. Os que hoje rejeitam as comunicações não parecem essas crianças ingratas que negam e desprezam os seus pais? Não é ingratidão para com os Espíritos, a quem devem o que sabem?

Onde o Movimento Espírita tomou um desvio

Após Kardec, como já sabemos, o Movimento Espírita sofreu enorme desvio, praticamente colocando o mestre lionês e seu método de estudo no esquecimento. Depois disso, chegado ao Brasil, já se encontrava o Movimento bastante alterado em suas bases, esquecido de que o Espiritismo sem os Espíritos é apenas sistema de ideias pessoais, ideias essas que se proliferaram dentre os Espíritas através de mais de um século.

Roustaing, um dos primeiros maiores adversários do Espiritismo, contemporâneo de Kardec, movido por enorme vaidade, através principalmente de Pierre-Gaëtan Leymarie, inseriu seus conteúdos no meio espírita que, se não bastassem serem contrários à Doutrina Espírita em muitos pontos, eram obtidos através de apenas um Espírito – ou seja, nada de universalidade de ensinos. Se houvessem estimulado tal método, veriam tais teorias desmentidas pelos próprios Espíritos, o que não seria interessante à vaidade pessoal do “escolhido”.

Estupefato, descobri, recentemente, que a própria FEB, no início do século XX, defendia as ideias roustainguistas como um complemento a Allan Kardec:

E foi por compreender a sua preponderante utilidade [do Evangelho] que a Federação instituiu o seu estudo nas sessões das terças-feiras, preferindo-o ao Evangelho segundo o Espiritismo [por Allan Kardec], que apenas contém os ensinos morais, Os quatro Evangelhos (Revelação da revelação), ditados a J.-B. Roustaing, por ser completa essa revelação, contendo, não somente o desenvolvimento daqueles ensinos, mas a explicação de todos os atos da vida de Jesus, com uma nova e esclarecedora orientação acerca da natureza e da sua missão messiânica.

(FEB, 1902, p. 1)

Vemos, portanto, desde quando tais ideias danosas se infiltraram no Espiritismo, sobretudo no Brasil, onde diversos médiuns – não questionando seus propósitos e seus valores – passaram a serem tomados como oráculos ou profetas – mais uma vez, nada de universalidade dos ensinos.

Mas será que precisamos disso, hoje?

Muitos, contudo, vão dizer: esse método de Kardec, baseado nas evocações, somente foi útil para o nascimento do Espiritismo. Hoje, não precisamos mais disso, pois já temos muito conteúdo que nos servem de base de ensinamento.

Sim, inquestionavelmente temos, hoje, tanta base de ensinamento moral que, se realmente os compreendêssemos, estaríamos anos-luz à frente em nossa evolução espiritual. Contudo, não se deu o mesmo com os ensinamentos do Cristo que, mesmo assim, nos enviou o Consolador Prometido – a Doutrina dos Espíritos. Por quê? Porque o Espírito avança primeiro em intelectualidade, para apenas depois avançar em moralidade. Como, então, diminuir essa distância? Apenas através da união da fé à ciência. E foi essa a missão de Kardec, tão bem realizada no estudo da Doutrina dos Espíritos.

Ora, não podemos esquecer: o Espiritismo é uma ciência de aspecto moral e filosófico, nascida do estudo e da observação das manifestações espíritas, obtendo, delas, o conhecimento, baseado na universalidade dos ensinamentos dos Espíritos – ou seja, a distribuição dos ensinamentos dos Espíritos por toda a parte, obtendo, desses ensinamentos, a concordância, sob a luz da razão. Chegamos, assim, em uma constatação:

Retirar, do Espiritismo, as evocações, é retirar dele a característica principal: o de uma ciência que, como sempre demonstrou e defendeu Kardec, deveria andar de mãos dadas com a ciência humana.

Então, somos forçados a constatar, também, que as evocações, com finalidade séria, são ainda necessárias e, talvez, sempre serão. Ou será que já sabemos de tudo a respeito das nossas relações com os Espíritos e do mundo dos Espíritos? Ou será que o avanço da ciência humana não trouxe, de um lado, tantas confirmações e, de outro, novas dúvidas, a respeito dessas relações e da nossa natureza espiritual? Ou será que as mistificações não passaram a inundar o Movimento Espírita?

Vamos ver, a respeito da última questão, o pensamento de Cláudio Bueno da Silva no portal O Consolador:

Quando se fala em mistificação, em desvios de rota do movimento espírita, impossível não citar os célebres e traumáticos “ismos”, que causaram tantas controvérsias: o Ubaldismo, de Pietro Ubaldi; o Ramatisismo, de Ramatis; o Roustainguismo, de J. B. Roustaing; o Armondismo, de Edgar Armond; o Divinismo, de Oswaldo Polidoro, e outros “ismos”. Todos eles com uma curiosa característica: em meio a verdades, muitos equívocos destoantes da Revelação Espírita, codificada por Allan Kardec. Embora algumas dessas proposições não tenham surgido propriamente dentro do movimento espírita, nele se infiltraram, deixando resquícios que perduram ainda em muitos centros e federações pelo país.

Mas as investidas das sombras não param. Há algum tempo, muitas casas espíritas foram “invadidas” pela teoria das crianças índigo, versão importada sobre a reencarnação de muitos “anjinhos” inteligentes, cheios de independência e malícia, mas cheios também de rebeldia e agressividade que, segundo a fantasia dos seus “criadores” norte-americanos, têm a missão de renovar (?) a Terra. Muitos espíritas ficaram encantados com a novidade e durante bom tempo não se falou de outra coisa dentro da casa espírita.

CLÁUDIO BUENO DA SILVA – http://www.oconsolador.com.br/ano6/285/claudio_bueno.html

Os próprios Espíritos defendem a nossa comunicação com eles

A leitura e o estudo da obra de Allan Kardec nos demonstra, sem cessar, que os Espíritos vêm de bom grado, sempre que possível, responder às evocações realizadas. Quando Espíritos bondosos ou sábios ficam felizes em transmitir bons ensinamentos; quando Espíritos, ainda inferiores, encontram alívio em exporem suas dificuldades ou em transmitir alguma palavra de conforto aos seus familiares. Outras vezes, conforme permitido, transmitem conselhos importantes, como podemos ver no artigo “Mamãe, aqui estou”, da R.E. de Janeiro de 1858:

Júlia: Mãe, por que te afliges? Sou feliz, muito feliz. Não sofro mais e vejo-te sempre.

A mãe: Mas eu não te vejo! Onde estás?

Júlia: Aqui ao teu lado, com a minha mão sobre a Sra. X (a médium) para que escreva o que te digo. Vê a minha letra (a letra era realmente a da moça).

A mãe: Dizes: minha mão. Então tens corpo?

Júlia: Não tenho mais o corpo que tanto me fez sofrer, mas tenho a sua aparência. Não estás contente porque não sofro mais e porque posso conversar contigo?

A mãe: Se eu te visse, te reconheceria, então?

Júlia: Sim, sem dúvida; e já me viste muitas vezes em teus sonhos.

A mãe: Eu realmente te revi nos meus sonhos, mas pensei que fosse efeito da imaginação, uma lembrança.

Júlia: Não. Sou eu mesma que estou sempre contigo e te procuro consolar; fui eu quem te inspirou a ideia de me evocar. Tenho muitas coisas a te dizer. Desconfia do Sr. Z… Ele não é sincero.

(Esse senhor, conhecido apenas da mãe, citado assim espontaneamente, era uma nova prova de identidade do Espírito que se manifestava.)

A mãe: Que pode fazer contra mim o Sr. Z?

Júlia: Não te posso dizer. Isto me é vedado. Posso apenas te advertir que desconfies dele.

Precisamos, portanto, lembrar que a mediunidade serve justamente para isso: intercâmbio entre os “dois planos”. Se não fosse assim, Deus não nos daria essa capacidade. Sim, é fato que devemos buscar caminhar com nossos próprios pés, sem ceder ao ímpeto de perguntar aos Espíritos sobre tudo. Mas também é fato de que, com seriedade e bom propósito, eles tem muito a nos ajudar, tanto nos assuntos pessoais quanto nos assuntos de importância geral. E isso, aliás, eles fazem constantemente, através da nossa intuição.

Mas, então, se julgamos precisar de comunicações mais claras, que fazer? Viver na dúvida?

Penso que, sobre isso, precisamos pensar com muito cuidado, a fim de realmente não ocuparmos médiuns e Espíritos com algo que nós mesmos podemos entender ou fazer, inclusive galgados nos ensinamentos já existentes no Espiritismo. Deveríamos agir como o estudante que, antes de fazer perguntas tolas, deveria sempre pesquisar o conhecimento já existente, caso contrário poderá ser mesmo repreendido pelo professor: “você não estudou com atenção. O conhecimento está lá; volte e releia”.

Sobre o resto, se há propósito sério, eles nos responderão dentro dos limites permitidos. Se, por outro lado, não houver propósito sério, poderão os bons Espíritos nos dar um belo puxão de orelha, no melhor dos casos; nos outros, poderão responder Espíritos maliciosos, com o intuito de nos provocar dificuldades e desvios, ou apenas de debocharem de nós.

Conclusão

Sendo data memorável, enfim, da vida desse Espírito que conhecemos por Allan Kardec, precisamos, em reconhecendo seu trabalho tão bem realizado e tão dedicado, recuperar a história real do Espiritismo, restaurando sua essência e afastando os escolhos que dela tomaram tão grande parte.

Espiritismo sem Espíritos, isto é, Espiritismo sem concordância universal dos ensinamentos dos Espíritos e, por conseguinte, sem a nossa busca pela comunicação com eles, não é Espiritismo: é apenas opinião pessoal.


  1. Entre os papéis de próprio punho de Allan Kardec há um esboço autobiográfico no qual ele corrige seu primeiro nome, normalmente grafado como Hippolyte, para a verdadeira grafia Hypolite. Canuto Abreu teceu considerações num artigo, que pode ser acessado pelo endereço em https://espirito.org.br/autonomia/allan-kardec-data-e-nome. assim como o manuscrito de Kardec. Também o ano de seu nascimento foi corrigido nesse mesmo documento, tendo nascido em 1803 e não em 1804 como as biografias posteriores registraram equivocadamente. [Paulo Henrique de Figueiredo- Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo]



O Renascimento do Espiritismo

Vivemos a grande escuridão, novamente. Após o Espiritismo raiar na face da Terra como grandiosa luz que poderia nos lançar ao mais acelerado processo de renovação espiritual e moral humana, se espalhando com a velocidade de um raio, sofreu enorme revés e, então, passou a ser lentamente esquecido em suas proposta e verdadeira face originais. Vieram, então, as guerras, o grande desenvolvimento industrial, as enormes facilidades materiais, os enormes lucros e, por trás de grandes sorrisos falsos, de bonitas máscaras sociais, alegres e divertidas, se multiplicam as enormes dores e angústias que, não raro, encontram saída na desistência da vida e no suicídio direto ou indireto.

A humanidade clama. Há choro e ranger de dentes. Eis que, então, o inimaginável acontece e uma doença de facílima transmissão, embora de taxas de mortalidade relativamente baixas, se alastra por toda a superfície do planeta, levando entes queridos, vizinhos e conhecidos, pobres e ricos, em questão de poucas semanas – quase sempre, em menos de 20 dias. A humanidade se mostra, uma vez mais, ferida e vulnerável. O Espírito foi esquecido. A moral foi colocada de lado, como artigo de politicagem. Deus se tornou artigo de fé cega, quase sempre incompreendido e, embora presente em muitas línguas, vazias no coração.

As partidas de pessoas próximas abalam as famílias e os indivíduos. Um grande movimento se acelera: a busca por reaproximação com o espiritual, a busca por consolação, a busca por respostas. E eis que justamente nessa mesma época, começam a se avolumar, aos nossos olhos, grandiosos estudos e preciosas obras, por mãos dedicadas de irmãos entregues ao trabalho da Verdade, trazendo a nós a verdadeira face do Espiritismo e sua história, e grande e preciosa parte, até então incompreendida ou, então, desconhecida.

Vivemos, hoje, processo muito parecido com aquele vivido nos meados do século XIX, nos trazendo uma oportunidade mais uma vez extremamente grandiosa. Vejo e acredito que, como antes, vivemos grande chamamento de volta à espiritualidade. Multiplicam-se por todas as partes os fenômenos mediúnicos, inclusive os físicos, com vistas a chamar a nossa atenção. Como antes, passou a humanidade por gravíssima fase materialista, dando margem às grandes chagas do egoísmo e do orgulho, além de espaço à proliferação de todos os vícios e imperfeições, físicas e morais.

Nos foi dado a conhecer que o Espiritismo sofreu com diversas manipulações e desvios, às vezes criminosos, se não aos olhos da justiça humana, mas ao menos perante a justiça Divina. Letra e Movimento foram adulterados. O Espiritismo, após a morte de Kardec, perde a força gigantesca que vinha desenvolvendo e, com as guerras, encontra, no Brasil, guarida, para ficar em estágio semi-gestacional, no meio religioso, por mais de um século…

Irmãos, como dizia, vivemos momento importantíssimo e singular. O Espiritismo nasceu em momento favorável e necessário, quando a humanidade buscava respostas filosóficas para fazer frente ao negacionismo materialista que, por sua vez, nasceu para enfrentar o dogmatismo ferrenho das velhas religiões. Hoje, o Espiritismo renasce, em sua real exuberância, no momento certo, para atender aos clamores daqueles tantos que buscam respostas ao mesmo materialismo pujante e ferrenho que esfriou as almas durante o último século e colocou o homem no caminho do ganho e do lucro, das paixões efêmeras e do culto ao corpo.

A enorme diferença é que, hoje, encontramos o trabalho já iniciado. Não necessitamos desenvolver o raciocínio do zero, analisando fenômenos físicos, conversando com Espíritos através de pancadas. Basta, a nós, estudar a fundo, com muita sabedoria e dedicação, o Espiritismo e as obras complementares que nos ajudem a melhor compreendê-lo, situando-o de forma contextualizada no momento histórico em que nasceu para, então, trazer aos nossos dias o exato entendimento, que até hoje não tivemos, em maioria, sobre o que realmente é o Espiritismo!

Mas isso não será possível enquanto não agirmos conforme o exemplo daquele que Deus nos deu como exemplo nesse particular. Não falo do nosso exemplo máximo, Jesus, mas, sim, do nosso grande e humilde mestre, afável e caridoso, pesquisador dedicado à humanidade, Allan Kardec. Não, enquanto não seguirmos o seu exemplo, repito, a recuperação do Espiritismo não será possível. Kardec não foi perfeito, como nenhum de nós somos, mas uma coisa muito importante ele exemplificou: a total ausência de personalismo, vaidade e orgulho, bem como a busca por analisar fatos, provas e opiniões, de todos os lados e de todas as fontes, sem, antes, forma ideia previamente concebida. Enquanto nosso personalismo, nossa vaidade, nosso orgulho, nossos preconceitos, enfim, falarem mais alto, não sairemos do mesmo lugar. Não é isso, infelizmente, que tem feito as pessoas que, tomando frágeis argumentos a favor de suas ideias pessoais, continuam renegando os fatos históricos e que, por isso, se afastam do desenrolar do entendimento claro e profundo a respeito do Espiritismo, como já tratei neste artigo.

Espíritas, olhem ao redor: o trabalho nos chama, arduamente! O mundo de regeneração não virá sozinho! A regeneração precisa partir de nós, mas ela não se dará enquanto nos mantivermos parados, sentados, esperando a vida e aquilo que achamos serem castigos, passarem. Precisamos compreender que as dificuldades da vida, que julgamos castigos intransponíveis, são, na verdade, oportunidades valiosas de aprendizado e de correção de nossas imperfeições que nos levam a errar. Precisamos compreender que, assim como Deus não nos impõe castigos, mas, sim, oportunidades difíceis – mas totalmente suportáveis, desde que nós mesmos não aumentemos suas dificuldades – para aprendizado e elevação, também precisamos nós, com o auxílio da Doutrina Espírita, aprendermos a colocar em prática em nossas vidas e, sobretudo, com nossas crianças, a mesma moral: somos imperfeitos e castigar o erro nascido da imperfeição apenas causa retração e, muitas vezes, aumento da imperfeição e do erro. É isso que o Espiritismo vem nos mostrar: ninguém se torna anjo num estalar de dedos e, também, ninguém perde o que já conquistou. Não há anjos caídos, da mesma forma que não há escolhidos por Deus. Todos nós chegaremos à perfeição, sem exceções, mas a velocidade com que lá chegaremos depende, única e exclusivamente, de nós.

Assim, irmãos, mais do que nunca, vale aquela tão importante exortação: “Espíritasamaivos, este o primeiro ensinamento; instruí-vos, este o segundo”. Precisamos deixar de lado as cisões. Precisamos deixar de lado os preconceitos. Precisamos, como Kardec, ouvir todas as opiniões, de todas as fontes, mas apenas como Kardec, entendendo muito bem seu trabalho, seu exemplo e seu método, poderemos nos unir, nos amar e nos instruir. E, sobretudo, precisamos produzir, em nosso bem e em favor do próximo, pois o tempo urge e, após um ano e meio de centros espíritas fechados, muitos sem nenhuma produção, sequer entre seus membros mais próximos, precisamos recuperar o Espiritismo que não é vivido em templos fechados, mas, sim, em nossa intimidade familiar e, daí, para o mundo afora!

Mais uma vez, fica aqui a exortação, o pedido, para que vós, irmãos, leiam também as obras tão importantes e necessárias ao nosso entendimento:

  • O Legado de Allan Kardec, por Simoni Privato
  • Nem céu nem inferno, por Paulo Henrique de Figueiredo e Lucas Sampaio
  • Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo, por Paulo Henrique de Figueiredo
  • Muita Luz, por Berthe Fropo



Desafios da metodologia de Kardec nos dias atuais

À época de Kardec era fácil obter conteúdos com grande garantia de que não haviam sido “contaminados” por outros médiuns ou grupos, isto é, quando um mesmo ensinamento vinha de diversos pontos do globo, ou mesmo da Europa, ao mesmo tempo, era possível ter grande confiança de que o médium da Provença, por exemplo, não teve contato com o médium da Toscana, obtendo deste último e não da espiritualidade o conteúdo transmitido, mesmo que inadvertidamente.

Como adotar uma metodologia necessária, em tempos em que a comunicação pode estar no mesmo segundo do outro lado do globo? Em tempos de Internet e telefonia globais, isso se torna um grande desafio, mas cremos poder minorar essa possibilidade de enviesamento através dos seguintes preceitos metodológicos, de certa forma já prescritos por Allan Kardec:

  1. Os grupos constituídos precisam manter contato entre si, dando notícias de sua existência. 
  2. Através disso, poderão ser formados outros grupos, aos quais chamaremos Grupos Confederativos, por nos faltar termo melhor, constituídos de membros de cada um dos Grupos de Estudo, e que, obrigatoriamente, não sejam os médiuns que participam como medianeiros dos conteúdos transmitidos pela espiritualidade, nos Grupos de Estudo.
  3. Os membros dos Grupos de Estudo poderão compartilhar com os médiuns de seus grupos apenas o conhecimento que já tenha passado pelo crivo da concordância e da razão, através da verificação pelos Grupos Confederativos.
  4. Os conteúdos obtidos através dos médiuns de cada grupo de estudo não podem ser compartilhados com outros grupos de estudo, nem com outras pessoas fora desse grupo, senão com aquelas pertencentes aos Grupos Confederativos.

Desta forma, garante-se grande confiabilidade de que os ensinamentos provenientes de diversos grupos de estudo, através de seus médiuns participantes, não estão enviesados por conteúdos de outros grupos e médiuns. O trabalho do Grupo Confederativo, então, seria coordenar esses conteúdos, buscando analisá-los à moda de Kardec, aceitando aqueles que se mostrem concordantes e que atendam ao crivo da razão e da lógica, bem como aos ensinamentos já anteriormente positivados pelo mesmo método. Há, ainda, o problema que sempre existiu de determinado conteúdo estar enviesado por outros conteúdos previamente conhecidos, mas não necessariamente corretos, como é o caso da teoria dos sete corpos astrais. Contudo, aos grupos dotados de boa-fé e humildade, poderão facilmente verificar quais são os conteúdos que (1) vão contra aquilo que já estava positivado pela própria codificação kardequiana e que (2) poderão ser facilmente desmentidos pelo próprio estudo.

Lembramos que nossa condição não será a de pesquisadores que se ponham a fazer as mais variadas perguntas, esperando que sejam respondidas conforme nossa vontade, mas sim a de pessoas que, partindo do preceito da humildade e da disponibilidade em aprender, estarão atentas aos ensinamentos recebidos, procurando compreendê-los em sua extensão, dentro dos limites que a espiritualidade superior traçar para nós, assim como era feito à época de Allan Kardec. Assim, como Kardec, precisaremos organizar perguntas de forma construtiva, avançando ou modificando os rumos conforme forem dadas as respostas.