O Brasil e a Ilusão da Pátria do Evangelho: A Quimera Roustainguista no Movimento Espírita

Introdução: A promessa frustrada de uma missão espiritual

O Brasil, com sua riqueza natural incomparável e sua posição geoestratégica, tem sido repetidamente apontado como um país do futuro. No entanto, esse “futuro” parece nunca chegar. Em meio a essa expectativa permanente, surgiu uma narrativa peculiar dentro do movimento espírita brasileiro: a ideia de que o Brasil seria a “Pátria do Evangelho”. Essa tese, nunca prevista por Allan Kardec ou pelos Espíritos da Codificação, ganhou força após a publicação do livro Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, atribuído ao espírito Humberto de Campos e psicografado por Chico Xavier.
Longe de representar uma missão autêntica ou uma promessa divina, essa ideia se transformou numa muleta emocional e ideológica, utilizada por instituições como a FEB para perpetuar sua influência e manter o povo em uma ilusão paralisante.

O desvio doutrinário: quando a FEB se tornou uma trincheira roustainguista

Fundada em 1884, a Federação Espírita Brasileira passou por uma guinada decisiva em 1895, com a ascensão de Bezerra de Menezes à sua presidência. Adepto das ideias de Jean-Baptiste Roustaing, Bezerra promoveu a integração das teses roustainguistas à prática institucional da FEB. Roustaing defendia um Espiritismo místico, fortemente influenciado por interpretações dogmáticas e por ideias como o corpo fluídico de Jesus e a infalibilidade de certos médiuns.
Essas posições contrariavam diretamente a proposta de Kardec, que sempre defendeu o controle universal do ensino dos espíritos, a pluralidade das fontes e a razão como critério de análise. A substituição progressiva do Espiritismo racional, experimental e filosófico por uma versão sentimentalista e dogmática criou uma cisão profunda no movimento.

A mistificação do livro “Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho”

Publicado em 1938, esse livro tornou-se um dos pilares da mitologia institucional da FEB. A obra apresenta uma narrativa altamente simbólica, repleta de elementos sobrenaturais e afirmações inverificáveis, que posicionam o Brasil como um instrumento direto da providência divina.
O trecho mais polêmico da obra afirma que Kardec contou com a colaboração de Roustaing como um dos pilares da Codificação. Essa afirmação não apenas é falsa como também ofensiva à memória e ao método kardequiano. Roustaing se colocava em oposição a Kardec, rejeitando o critério de exame racional e substituindo-o por uma crença dogmática e personalista.
A recente remoção silenciosa do nome de Roustaing das apostilas do ESDE, sem qualquer retratação ou nota pública, evidencia o modus operandi da FEB: apagar os rastros de sua orientação doutrinária sem jamais admitir seu erro.

As consequências dessa ilusão para o povo brasileiro

Ao promover a ideia de que o Brasil tem uma missão divina já garantida, cria-se uma cultura de passividade espiritual. O povo brasileiro, já fragilizado por um histórico de desigualdade, corrupção e impunidade, encontra nessa narrativa uma justificativa para a inércia: afinal, se a Providência escolheu o Brasil, tudo dará certo no fim.
A falta de educação moral real, como proposta em O Livro dos Espíritos (questões 614 a 625), somada à ausência de senso crítico e de participação cívica, permite que médiuns fascinados e instituições dogmáticas manipulem milhões. Em vez de promover a emancipação da consciência, como é o verdadeiro objetivo do Espiritismo, essas práticas mantêm os indivíduos infantilizados espiritualmente.

O verdadeiro papel do Brasil à luz do Espiritismo de Kardec

Kardec nunca apontou nações como detentoras de missões exclusivas. Em A Gênese, cap. XVIII, item 27, ele afirma que “os grandes movimentos progressistas se operam geralmente de maneira simultânea em várias partes do globo”. A missão, portanto, é sempre moral, individual e coletiva, nunca nacionalista ou predestinada.
A verdadeira redenção do Brasil não virá por decreto espiritual, mas pelo trabalho dos homens de bem, conforme descrito em O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XX, item 5: “Os verdadeiros ‘obreiros do Senhor’ são todos aqueles que se colocam a serviço do bem com dedicação e desinteresse”.
Portanto, o Espiritismo pode sim desempenhar um papel fundamental na reconstrução moral do Brasil, mas apenas se for o Espiritismo de Kardec — não o dogmático, nem o manipulador.

Conclusão: O Brasil ainda pode se redimir — mas com Kardec, e não com ilusões

Se existe uma missão reservada ao Brasil, ela é condicional: depende do despertar da consciência moral, da reforma íntima, da superação do personalismo e do retorno às bases sólidas da Codificação. Nada disso acontecerá com a perpetuação de mitos, mistificações ou livros apócrifos travestidos de doutrina que, infelizmente, estão há tempos injustamente titulados como “espíritas”.
O Espiritismo no Brasil está em um ponto de inflexão. Cabe aos espíritas sérios e comprometidos com a verdade fazerem a distinção entre a Doutrina dos Espíritos e o sistema institucional comprometido com o passado. Somente então o Brasil poderá começar a cumprir, com dignidade e razão, seu verdadeiro papel no futuro espiritual da humanidade.

Por Marcus Vinicius